sábado, 9 de julho de 2022

A revolucionária rota que ligou América à Ásia por mais de 2 séculos


Chegada da Nau Victória a Sevilha em 1522 foi um marco na história da navegação, mas também uma indicação de que outras rotas para a Ásia deveriam ser encontradas

Setembro de 2022 marca o 500º aniversário do retorno à Espanha do que restava da frota de Fernão de Magalhães (1480-1521). A frota havia saído em 1519 em busca de uma passagem pelo continente americano até a Ásia.

 

O objetivo do marinheiro português, que chefiava uma frota espanhola, eram as Ilhas das Especiarias — ou Ilhas Molucas, na Indonésia — com as quais Cristóvão Colombo (1451-1506) havia sonhado décadas atrás. Mas a viagem, que se tornaria a primeira circunavegação (em torno de um lugar) do mundo, custaria caro. Apenas 18 dos 250 tripulantes iniciais sobreviveram. E só 1 dos 5 navios originais retornou ao porto.

E também a um preço alto seria vendida a única carga que Juan Sebastián Elcano (1476-1526) trouxe na Nau Victória: especiarias, especialmente cravo. Apenas a carga de um navio pagou por toda a expedição.

Por isso, era essencial encontrar uma rota mais curta para a Ásia e, sobretudo, que não envolvesse dar a volta ao mundo. E nesta equação a variável chave seria o México.

Em seu livro La plata y el Pacífico: China, Hispanoamérica y el nacimiento de la globalización, 1565-1815 ("A prata e o Pacífico: China, América Espanhola e o nascimento da globalização, 1565-1815"), os historiadores Juan José Morales e Peter Gordon contam como encontraram essa viagem de regresso, e como essa união dos dois continentes transformou o México, nas palavras dos autores, na "primeira cidade global".

A BBC News Mundo entrevistou Morales, natural da Espanha, mas que vive em Hong Kong há mais de três décadas, sobre a história da "rota da prata" que durou mais de dois séculos entre Acapulco e Manila.

BBC News Mundo - A chegada de Cristóvão Colombo àquele continente que mais tarde se chamaria América é um fato histórico tão relevante que às vezes nos esquecemos que a Coroa espanhola realmente queria chegar à Ásia, e que nunca desistiu desse objetivo original.

Morales - De fato, para os espanhóis foi um misto de decepção e descrença que tal território se interpusesse, e com o passar dos anos e os perímetros daquele território serem descobertos, foi uma decepção atrás da outra.

Também a resistência contra esse novo nome: América. Os espanhóis estavam muito relutantes em usar esse termo e essa palavra praticamente não existia há vários séculos. São as Índias.

De tal forma que quando as Índias forem finalmente alcançadas, depois daquela missão impossível que era cruzar o Pacífico, todo aquele território vai se chamar Índias Ocidentais.

Fernão de Magalhães chega às Filipinas em 1521 e lá morre. Juan Sebastián Elcano continua e realiza a primeira circunavegação do mundo. E embora tenha sido uma aventura dolorosa devido às perdas humanas, é economicamente bem-sucedida porque o que eles trocaram com o cravo foi capaz de pagar toda a expedição e muito mais.

Mais tarde, outras expedições partirão para esses territórios da Espanha e também do México, após a conquista de Hernán Cortés (1485-1547, conquistador espanhol).

Porque as viagens da Espanha, por este difícil estreito que será chamado de Magalhães, eram inviáveis. As únicas viagens viáveis eram as que partiam do México.

BBC News Mundo - Quando falamos de Ásia e Europa, geralmente pensamos na Rota da Seda, mas não era isso que a Espanha procurava na Ásia.

Morales - A principal razão para os europeus irem para a Ásia são as especiarias, não as sedas da China.

O que acontece é que a relação da Europa com a Ásia está, digamos, norteada pelas "maravilhas" do Oriente descritas por Marco Polo em seu livro; são exageros e fantasias.

Mas há algo mais prático no final do século 15, que são as especiarias. Cravo e noz-moscada das Molucas, pimenta da Índia e canela do Ceilão (hoje Sri Lanka).

Especiarias são aqueles produtos que possuem um valor internacional que justifique o investimento nesses embarques. Mas apenas cruzar o Pacífico em uma direção era uma tarefa árdua.

Estamos falando de velejar em barcos de madeira que dependem de correntes e ventos, além de tripulações que foram dizimadas por doenças, escorbuto, desnutrição, tempestades.

Um dos sobreviventes dessas expedições foi Andrés de Urdaneta (1508-1568, explorador espanhol), que foi feito prisioneiro pelos portugueses e transferido para a península Ibérica. Acabaria como frade agostiniano no seminário da Cidade do México.

Lá, o rei Felipe 2º escreveu-lhe em 1560 para pedir a este navegador e cosmógrafo, com mais de 60 anos, para participar da expedição de 1564 de Miguel López de Legazpi, com destino às Filipinas, mas com a missão de descobrir uma rota de regresso ao México.

E Urdaneta descobriu essa rota indo para o paralelo 40, perto do Japão, e depois de pegar correntes favoráveis chegaria finalmente a Acapulco.

Acho que, na história da navegação, na história dos descobrimentos, falamos de Colombo, falamos de Magalhães, e o grande esquecido é Urdaneta.

Porque parece que as descobertas envolvem ir a algum lugar, mas não voltar. E sua descoberta foi saber voltar. Trata-se da viagem de regresso ou torna-viagem.

É a Urdaneta que devemos estar conectados em um mundo globalizado, pois foi ele quem fechou o elo perdido para unir dois continentes tão importantes quanto a América e a Ásia.

E não só ele descobriu a rota, mas ele e sua equipe vão traçá-la tão bem que esta rota será usada — tanto de e para o México e as Filipinas — por 250 anos, até 1815, com a Guerra da Independência Mexicana (1810-1921).

Um navio por ano de Acapulco a Manila, que pode levar cerca de 45 dias, e um navio por ano de Manila a Acapulco, que pode levar até seis meses. E que recebeu o nome de Galeão de Manila ou Nau da China.

BBC News Mundo: Se a seda chinesa não era o principal objetivo dessas expedições, como o gigante asiático acabou se envolvendo nessa rota?

Morales: São os chineses que, vendo a chegada de outras pessoas, começam a navegar a partir do sul da China para estimular o comércio com os espanhóis.

E os espanhóis são os primeiros a se surpreender ao perceber que essa gente tem tudo: sedas a bom preço, móveis preciosos e coisas que não se via na Europa, como porcelanas (no Velho Continente e no mundo islâmico, o que tínhamos era terracota coberta com um esmalte metálico, mas porosa).

Em outras palavras, o encontro com esse conhecimento chinês é acidental, não foi o objetivo inicial. Claro, ter se estabelecido nas Filipinas para os espanhóis é um pouco como estabelecer um escritório de representação, promoção e inteligência.

E aí os chineses também se instalam e estão em número infinitamente maior do que os espanhóis, o que gera o deslocamento da população local e um ressentimento que só foi resolvido com a miscigenação ao longo dos anos.

E há também um intercâmbio comercial, mas a China era o país mais rico da Terra, o mais populoso, o mais urbanizado, onde o comércio sempre teve grande preponderância.

Por exemplo, vamos ver o que aconteceu com a seda. No nosso livro citamos fontes originais dos séculos 16 e 17 nas quais as autoridades espanholas do Novo Mundo dizem que "aqui só querem usar roupa chinesa", porque são de muito boa qualidade e muito baratas.

E isso arruína as alcaicerías, que é o nome dos lugares onde a seda é vendida na Espanha, especialmente na região da Andaluzia.

Até Cortés havia estabelecido fábricas de seda no México. Mas nem os espanhóis, nem os mexicanos podem competir com a seda que vem da China — tanta crua quanto bordada — por mais protestos que haja, porque são efeitos do comércio.

BBC News Mundo: Mas os espanhóis têm algo a oferecer àquela China do século 16. E comparado à "Rota da Seda", o sr. fala em seu livro da "Rota da Prata".

Morales: Esta é uma das grandes surpresas ou coincidências da história. A China transformou gradualmente sua economia, movendo-a para o padrão prata.

Antes da prata existir como moeda, o que existia era o escambo, mas isso não é mais possível com uma economia cada vez mais sofisticada, com uma população cada vez maior e uma sociedade urbanizada.

Os chineses também inventaram o papel-moeda, mas isso criou inflação e uma distância entre a economia real e o que estava no papel, razão pela qual fracassou na dinastia Son e na era mongol; o que é a nossa Idade Média.

Mas na dinastia Ming, entre o século 14 e o século 17, a economia é paulatinamente baseada na prata.

A China tinha reservas limitadas. Havia reservas de prata no Japão, mas a China e o Japão nunca se deram muito bem. Assim, os portugueses, de Macau, foram introduzidos como intermediários para esse comércio, já em 1550, 1560.

E em 1565 os espanhóis aparecem com uma quantidade de prata para inundar o mundo.

Potosí, que hoje pertence à Bolívia, mas na época fazia parte do Vice-Reino do Peru, era uma montanha com uma quantidade impressionante de prata. E também havia Zacatecas e outros lugares do Vice-Reino da Nova Espanha, atual México.

Mas não é só a quantidade de dinheiro. Os espanhóis também inventam um método de extração de mercúrio, e aqui está outra coincidência. Depois de descobrir Potosí, eles descobrem Huancavelica no Peru com os maiores depósitos de mercúrio.

De tal forma que conseguiram o dinheiro de forma rápida, econômica e eficiente, e infelizmente com uma exploração muito triste do ser humano.

BBC News Mundo - E o que acontece com o México nessa troca de produtos e culturas?

Morales: Dizemos que a Cidade do México é a primeira cidade global.

Os galeões com mercadorias chegam a Acapulco, mas Acapulco não era uma cidade estável, era apenas um porto provisório que foi montado quando as embarcações chegavam.

Quando o galeão é visto na Califórnia, um sistema de alarme é acionado, calcula-se quando chegará a Acapulco, prepara-se um mercado provisório que em poucos dias comprará e distribuirá as mercadorias.

As mercadorias vão de Acapulco à Cidade do México e lá são vendidas no El Zócalo, no chamado 'El Parián'. El Parián é a primeira Chinatown da América e também é o nome de Chinatown em Manila.

Há pinturas da Plaza del Zócalo — por exemplo, uma de Cristóbal de Villalpando (1649-1714), um dos grandes pintores mexicanos — na qual você pode ver alguns mercados com telhados vermelhos, que é o mercado chinês, o mercado asiático.

Há uma pequena parte que vai de Acapulco a Veracruz, por um caminho difícil, e em Veracruz é carregada para os navios que vão para Havana e de lá a Frota das Índias a leva primeiro para Sevilha e, quando o Guadalquivir (rio Guadalquivir) já não admitia navios de grande calado, para Cádiz.

Mas é o México que recebe a primeira influência e do México irradia para o restante da América, para o Peru, para Cuzco, para Potosí, para a Colômbia.

Então são os mexicanos que têm, digamos, esse grande poder de transação, são os verdadeiros catalisadores, são eles que recebem essa influência e essa influência se manifesta não só no comércio. O México vai se tornar o centro intelectual de informações sobre a China.

A cidade já tinha uma tipografia, uma universidade, uma catedral, seminários e um grande comércio livreiro. E é no México que se consolidam as informações do primeiro livro sobre a China que finalmente superará Marco Polo.

É "História das coisas mais notáveis, ritos e costumes do grande reino da China", escrita no México por Juan González de Mendoza (1545-1618, bispo, explorador, escritor e sinologista espanhol), que obtém todas as informações de quem esteve nas Filipinas e na China.

Foi publicado em 1585 em Roma, traduzido para todas as línguas europeias e teve mais de 40 edições. Foi o mais vendido da época.

Será também um centro diplomático. A primeira embaixada japonesa na Europa passa pelo México até a Espanha para ver o rei Filipe 2º e depois o papa. E os japoneses voltam pelo México.

BBC News Mundo: E como isso mudará a sociedade hispano-americana?

Morales: Alexander von Humboldt (geógrafo, polímata, naturalista, explorador prussiano), em seu 'Ensaio Político sobre o Reino da Nova Espanha', escreveu que quando visitou Acapulco em 1803, "ainda era a feira comercial mais celebrada do mundo".

A chegada ao porto de Acapulco de um enorme galeão todos os anos por quase 250 anos evidencia um fluxo de mercadorias asiáticas de tal magnitude devido à sua qualidade, quantidade e variedade que necessariamente influenciaria a cultura material da América hispânica, não apenas do México.

Sempre foi evidente, simplesmente esquecemos sua origem. Só agora vem à tona timidamente, por exemplo, a influência asiática na culinária americana.

Para mim, a manifestação mais extraordinária dessa influência asiática e amostra de sofisticação do mundo hispânico ocorre nas artes, dando origem a uma arte híbrida ou mestiça, principalmente nas chamadas artes decorativas, criadas na América hispânica, mas com extraordinária Marca asiática, além das habituais influências espanholas e flamengas.

São inúmeros os exemplos: a pintura sobre biombo, tela de origem chinesa, mas cujo uso foi mais importante no Japão, e que inspirou artistas americanos, tornando-se o meio natural e mais difundido da pintura na Nova Espanha. Influências que chegaram até o uso generoso da folha de ouro na imitação das telas do período Momoyama no Japão.

Móveis de inspiração asiática, especialmente móveis lacados com uma resina americana semelhante à laca chinesa ou japonesa chamada "pasto", e com designs e estilos claramente inspirados em produtos asiáticos. Esses móveis produzidos na Colômbia são bem conhecidos.

O uso generoso da madrepérola em obras pictóricas conhecidas como "concheado".

Tapeçarias ou têxteis em geral com motivos chineses, como a fénix, o jilin (animal mítico chinês misturado com um cão e um leão), produzidos no Vice-Reino do Peru, entre outros locais.

Ou a famosa cerâmica produzida em Puebla de Los Angeles conhecida como Talavera poblana, cuja primeira inspiração é a cerâmica hispano-mourisca de Talavera em Toledo, mas no México adotará motivos orientalizantes: branco e azul, desenhos orientais — paisagens, crianças chinesas com guarda-sóis — e as formas essencialmente chinesas como cabaças duplas e potes de ombros largos.

BBC News Mundo: Quantas pessoas da Ásia acabaram morando no território do atual México e o que fizeram?

Morales: Avaliar com exatidão a população de origem asiática que se instalou na Nova Espanha durante o período dos galeões não é fácil, entre outras razões, porque essa população tendia a se fundir com a população local, tendência induzida pela terminologia complexa que foi cunhada nos primeiros séculos do vice-reino.

Eles foram chamados de "chineses" para todos os da Ásia, sem distinção, e "indiano-chineses" para os das Filipinas. Como em geral os "chineses" chegaram como escravos, principalmente das colônias portuguesas de Macau e Goa, embora tenham sido logo alforriados, a intenção de todos eles era libertar-se do estigma ou suspeita e passar despercebidos como "índios", isto é, vassalos da coroa que pagam impostos.

Sobre suas ocupações, as fontes estão dispersas. Os mais conhecidos são os autos da Audiência de México que aludem às ações dos barbeiros espanhóis contra a concorrência dos barbeiros "chineses" exigindo que seu número seja limitado e que sejam excluídos de certos bairros da cidade, uma ação que ocorre nos anos de 1635 e 1667 e que alude a um número considerável de barbeiros "chineses".

Embora alguns estudiosos suponham que sejam chineses da China, é mais provável que sejam asiáticos de outras origens.

O frade dominicano inglês Thomas Gage fala de ourives chineses quando esteve na Nova Espanha entre os anos de 1625-1637. Do contexto de seus testemunhos, aqui parece que eles eram chineses da China, embora, é claro, tivessem vindo das Filipinas.

Quanto aos filipinos, sabemos que eles compunham principalmente as tripulações dos galeões e que muitos preferiram ficar no México após o desembarque em Acapulco.

Em geral, os ofícios exercidos pelos emigrantes asiáticos na América espanhola eram os de artesão, pequeno comerciante e agricultor. Na América, eles não se envolveram no comércio relacionado ao galeão de alta qualidade e maior valor, concorrência exclusiva dos mercadores mexicanos.

A representante mais famosa dessa população no século 17 foi Catarina de San Juan, conhecida como China Poblana, uma mulher elogiada por sua piedade e virtudes que não era chinesa, mas originária da Índia portuguesa e que veio como escrava. A lenda dizia que seu suposto vestido com as cores vermelha, verde e branca da bandeira mexicana se tornasse o traje tradicional e fosse chamada assim, china poblana.

Há poucos dias, o jornal espanhol El País noticiou um estudo recente da Universidade de Stanford (Estados Unidos) que confirma a pegada genética asiática na população mexicana e principalmente "que os habitantes de Acapulco são os que têm maior presença de ancestrais asiáticos e transpacíficos em seu DNA", algo que, considerando o que falei, não deve nos surpreender.

BBC News Mundo: Hoje, essa história que o Sr. conta em seu livro não é tão conhecida fora dos círculos acadêmicos. Por que não sabemos mais sobre outros processos de globalização?

Morales: O inglês Adam Smith, o autor de "A Riqueza das Nações", escreveu que "a prata do novo continente parece ser uma das principais mercadorias que permite o comércio entre os dois extremos do antigo (Ásia e Europa) e faz muito para que essas regiões distantes do mundo querem estar conectadas umas às outras".

Ele não disse a palavra globalização, que é uma invenção moderna, mas a expressou brilhantemente porque foi assim.

São os espanhóis, ao chegar à Ásia, que descobrem que o que Marco Polo havia dito estava errado, ou que a distinção entre Catai e China estava errada.

É Martín de Herrada (1533-1578, missionário cristão espanhol enviado às Filipinas) em 1575 quem diz "mas hey, Catay e China são a mesma coisa". Ele faz essa distinção, que depois é citada no livro de Juan González de Mendoza, mas isso é esquecido.

Por que isso foi esquecido? Primeiro por causa dos povos espanhóis, mas também pelo sucesso da maneira britânica de fazê-lo.

Acredito que o sucesso do Império Britânico tenha sido estabelecer uma narrativa que seus próprios colonizados ou conquistados compraram, como se diria em termos ingleses, sem dúvida.

BBC News Mundo, Matías Zibell


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