terça-feira, 29 de outubro de 2019

O BARATO SAI CARO - BONITO É NÃO JOGAR FORA



Como o comportamento de consumo dos jovens está mudando o negócio das redes de fast-fashion

Em 24 de abril de 2013, um prédio de oito andares desabou em Daca, capital de Bangladesh. A tragédia deixou mais de 1.000 mortos e 2.500 feridos — e provocou o maior terremoto na indústria da moda na última década. No edifício, havia fábricas que produziam para algumas das maiores marcas e lojas do mundo, da Gucci à Prada, da Benetton à Primark. O acidente chamou a atenção para as condições precárias em que eram confeccionadas muitas das roupas vendidas nas ruas e nos shoppings das capitais globais a milhares de quilômetros dali e deu início a uma mudança no modo de consumir que reverbera até hoje.

Nenhum segmento foi tão afetado quanto o fast-fashion — a fórmula básica de “produz-consome-descarta-repete” —, abastecido por roupas descartáveis produzidas por mão de obra barata e vendidas a preços baixos. No final do mês passado, o pedido de recuperação judicial da Forever 21, uma das gigantes desse mercado, mostrou o tamanho do desafio. A marca buscou a proteção da Justiça para renegociar dívidas com credores que podem chegar a US$ 10 bilhões e deverá fechar ao menos 350 de suas 800 lojas pelo mundo.

A derrocada da empresa não se resume às dificuldades do fast-fashion. Para especialistas, a situação da Forever 21 é resultado de uma sucessão de erros. A companhia demorou a entrar no varejo on-line, que avançou fortemente desde 2010. Os jovens, seu público-alvo, compram cada vez mais pela internet, o que gerou uma queda no movimento em lojas físicas e em shoppings e uma feroz concorrência com marcas digitais, segundo um relatório da consultoria internacional Euromonitor.

Por trás do colapso, porém, há o desafio que ameaça toda a indústria da moda: a mudança de comportamento do consumidor. Cada vez mais conectado e informado, ele está ávido por experiências personalizadas e defende a sustentabilidade — ambiental, social e econômica.

“As gerações millennium e Z têm outra narrativa, são muito engajadas, atentas a isso. Deixam de comprar de marcas das quais discordam da conduta. O mercado está no corpo social. Não dá para separar. A empresa percebe a agenda social e faz ajustes de conduta para criar engajamento”, explicou Lilyan Berlim, pesquisadora do reLAB — Laboratório de Pesquisa em Práticas Sustentáveis da ESPM. Ela relembrou que o fast-fashion se fortaleceu nos anos 1980 e 1990, quando a produção se deslocou para países pobres, onde não havia monitoramento das condições de trabalho nas fábricas, e avaliou que a tragédia de Bangladesh foi um divisor de águas.

De lá para cá, gigantes da moda mergulharam numa análise criteriosa de sua cadeia de fornecedores, com o intuito de coibir práticas como o uso de mão de obra infantil ou análoga à escravidão em suas produções. Foi na esteira do acidente que nasceu o Fashion Revolution, iniciativa global disposta a transformar a forma como se produz e se consome moda em práticas mais sustentáveis e éticas e que tem um braço no Brasil. O movimento publica anualmente o Índice de transparência na moda . O ranking de 2019 lista 200 companhias, trazendo três grandes no topo: Adidas, Reebok e Patagonia, todas de artigos esportivos. Bateram 64% dos 250 pontos totais. Ou seja, mesmo quem está na ponta ainda tem muito a ajustar.

Exceto no caso de aparelhos celulares, considerados “vitais”, os mais jovens já não veem tanto sentido no verbo “possuir”. Preferem alugar, dividir, trocar — daí a exigência por itens de maior qualidade e durabilidade. Entendem que serviços baseados em compartilhamento oferecem melhor preço, acesso mais conveniente e diversas novas escolhas, aponta uma pesquisa da consultoria PwC.

Na moda, a onda que arrebanha pequenos negócios já começa a arrastar o grande varejo. Redes multinacionais trabalham para fisgar esse consumidor mais leal a propósitos que a marcas. De metas de redução de emissão de carbono, passando pelo desenvolvimento de insumos que causem menor impacto ao meio ambiente, a serviços de assinatura mensal para alugar roupas de grife, o vestuário costura sua transformação para manter o negócio girando. “O consumidor está mudando. É cada vez mais exigente em sua decisão de compra. Quer produtos sustentáveis, mas também que a indústria trabalhe para gerar menos impacto. Quer transparência sobre práticas e ética. As empresas que estão nascendo agora já vêm com a obrigação de ser verdes ou não se mantêm. E, para ficar, quem já está no jogo tem de se transformar”, explicou Margareth Utimura, da consultoria Nielsen Brasil.

Dados de mercado indicam que o grupo identificado pela Nielsen como o do consumidor que pensa verde já é relevante no Brasil. São pessoas que mudam hábitos por causa do meio ambiente e que afirmam não comprar produtos de empresas que fazem testes em animais ou associadas a trabalho escravo. Isso pesa na decisão de compra. “Elas já representam 7,7 milhões de lares no Brasil e 18,2% do faturamento do segmento de higiene e beleza. Ainda haverá muito crescimento”, apostou Utimura.

No fim de 2013, a ONG Repórter Brasil, especializada em conteúdo sobre questões trabalhistas, lançou o aplicativo Moda Livre. A ferramenta, que monitora as ações das principais empresas para combater o trabalho escravo, já supera os 100 mil downloads. Traz uma lista com mais de 120 marcas, com um perfil de cada uma e as ações adotadas, além do histórico de denúncias. Nesse último ponto, a direção da ONG apontou que haverá mudanças. “Vamos mexer no histórico de denúncias, queixa antiga do setor, que argumentava que seu perfil era eternamente penalizado por algo que aconteceu lá atrás, mesmo depois de adotar processos corretivos”, explicou Carlos Juliano Barros, um dos coordenadores do Moda Livre.

A Renner, por exemplo, gigante varejista gaúcha que já atua no Uruguai e está chegando à Argentina, tem classificação amarela no Moda Brasil — entre verde, amarela e vermelha. Pesa uma denúncia de 2014 contra a companhia, que terminou adotando rígidos processos de auditoria da cadeia de fornecedores, todos certificados e auditados regularmente, e avança com compromissos sustentáveis. “Anunciamos uma série de metas a cumprir até 2021. Uma é ter os fornecedores com certificação socioambiental. Outra é ter 80% de produtos de menor impacto ambiental. No passado, chegamos perto de 20%”, disse Eduardo Ferlauto, gerente de Sustentabilidade da companhia.

Cresce também a chamada logística reversa, para recolher tanto roupas usadas quanto embalagens de frascos e perfumes nas lojas Renner. É uma trilha percorrida também pela C&A, que se prepara para abrir capital em Bolsa no Brasil no próximo dia 28. O programa de recolhimento de roupas da C&A, chamado ReCiclo, já recolheu mais de 30 mil peças desde novembro de 2017, com pontos de coleta em lojas da varejista. Perto de 70% das roupas estavam em boas condições e foram encaminhadas à revenda, e a receita é encaminhada a projetos de educação para famílias de baixa renda.

Episódios negativos podem, ao mesmo tempo, causar dano à marca e forçar transformações. Exemplo disso foi o anúncio feito pela grife de luxo Burberry, em setembro do ano passado, de que deixaria de incinerar mercadorias não vendidas e de usar pele de animais. A decisão veio meses depois de um relatório financeiro mostrar que, em 2017, a companhia havia queimado o equivalente a 28,6 milhões de libras em roupas, perfumes e acessórios não comercializados. A justificativa para isso? Evitar que as mercadorias fossem roubadas ou vendidas por um preço baixo demais.

O estoque excedente na indústria da moda — em média, 30% nas coleções — se tornou polêmico. Não só ele, mas a produção crescente e descartável de vestuário, uma bomba-relógio para o meio ambiente.

A cada segundo, em todo o mundo, o equivalente a um caminhão de lixo lotado de roupas é descartado num aterro ou incinerado, diz uma pesquisa do fim de 2017 da Fundação Ellen MacArthur, que reúne grandes conglomerados de setores estratégicos para promover a economia circular. Isso representa uma perda de US$ 500 bilhões por ano com vestuário praticamente não usado e dificilmente reciclável. Se nada for feito, alerta o relatório, a indústria têxtil, sozinha, vai engolir 25% da meta de emissão de carbono global até 2050.

Mesmo líderes mundiais do varejo de moda estão se ajustando. H&M e Zara anunciaram metas de uso de insumos sustentáveis em suas roupas e de menor impacto ambiental na produção e na operação. A H&M se tornou, recentemente, controladora da Sellpy, plataforma digital para venda de roupas usadas, da qual é sócia desde 2015. Mas isso não significa derrocada no varejo físico. Ainda que a H&M tenha fechado 140 lojas em 2018, neste ano vai abrir mais de uma centena. No terceiro trimestre, registrou seu primeiro lucro antes de impostos em mais de quatro anos. A Zara vai na mesma direção. Segundo analistas, a ideia é aliar as práticas mais sustentáveis à troca de pontos de venda menos rentáveis por outros que garantam mais resultando, sem deixar de lado a estratégia digital.

Para fugir desse destino cinzento, é preciso desenvolver roupas desenhadas para durar mais, ser usadas mais vezes, além de poderem ser facilmente alugadas, revendidas ou recicladas. E, claro, produzidas com tecidos e insumos que não liberem toxinas e poluentes. Os novos caminhos e os novos negócios se confundem. Patagonia e Levi’s, por exemplo, fecharam uma parceria com a Yerdle, plataforma americana que permite a revenda de roupas de grandes marcas, dando crédito ao usuário para trocar por outras mercadorias, novas ou usadas. Também serve para distribuir as mercadorias que não foram vendidas, em vez de descartar ou incinerar o estoque excedente.

Esses novos negócios avançam, a exemplo de plataformas como as estrangeiras Rent the Runway e Vestiaire Collective, ambas de assinatura mensal para compartilhamento de roupas. O grupo americano URBN, dono da Urban Outfitters e da Anthropologie, montou um serviço de assinatura mensal. Nesse caso, cada membro pode escolher até oito peças, recebidas em casa em até dois dias. Depois, devolve pelo correio, sem precisar se preocupar nem em lavar os itens. A empresa montou um centro de distribuição específico para a operação, que conta com serviço de lavagem a seco, já que sustentabilidade é central. A assinatura custa US$ 80 mais taxas e permite usar roupas que juntas custariam até US$ 800, em média, diz a empresa. Se o cliente gostar muito de uma peça, poderá comprá-la, claro.
Por Glauce Cavalcanti, na Revista Época




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