sexta-feira, 9 de maio de 2008

Deus ex machina

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Humilhas, avanças, provocas, agrides, espancas, torturas, aprisionas indefesos – e quem bate e violenta é a tropa de choque?
Te tornaste carne, sexo e prostituta de incubo de Saturno –
e ensandecidamente acusas o outro de estupro? (...)

Leia o poema Uma oração para canalhas clicando aqui.
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Deus ex machina

O Brasil se tornou um país de martírios e tragédias. Vivemos a purgar episódios que nos remetem – diuturnamente – aos rincões mais profundos e inóspitos do inferno.

A freqüência com que ocorrem é tamanha que passamos a ostentar um certo esgar de desdém, hipnotizados que fomos pela barbárie mais intensa e explícita... E passamos a considerar o hediondo como fugaz, efêmera normalidade. Resulta deste comportamento um ser de áurea mortífera, espírito zumbi, face esculpida à indiferença, incapaz de expressar sentimento de repulsa e indignação, coração granítico, daqueles forjados a aço temperado, que não pulsa e nem sente, que não abriga, não dá guarida e nem ama.

O Brasil se tornou uma terra de martírios e tragédias. Enquanto purgamos uma e estamos a lamber as feridas – sempre em estágio de chaga exposta - já experimentamos o presságio da próxima se anunciando com estapafúrdia e estardalhaço.

Dia 07 de fevereiro de 2.007. Em torno de 21h30min de uma quarta-feira mais que comum, Rosa Cristina Fernandes tomava o caminho de volta para casa. Com ela uma amiga da família e os filhos Aline, 13 anos de idade, e João Hélio, 6 tenros anos.

Num cruzamento o sinal fechou e Rosa Cristina - como fazem os motoristas responsáveis - parou o carro no sinaleiro. O semáforo que deveria proteger os cidadãos da hecatombe do trânsito serviu como sinal para que os marginais avançassem na execução do plano terrífico, pois que, avidamente, aguardavam para a perpetração do mal, para a consecução do inominável. Emergindo abruptamente da escuridão das trevas, três homens armados abordaram Rosa Cristina exigindo que todos abandonassem o veículo. As armas de fogo apontadas, engatilhadas, prontas para a mortandade, os gritos e berros ensandecidos dos bandidos, as ordens ameaçadoramente imperativas... E só deu tempo da pobre mãe avisar aos meliantes que não havia conseguido destravar e soltar o cinto de segurança que já abraçara João Hélio para a vida, mas que agora o garroteava para a morte.

Os bandidos arrancaram na velocidade máxima dando a mínima para a pequena criança dependurada do lado de fora do Corsa Sedan.

João Hélio, 6 anos de idade, foi arrastado por quatro bairros.

Todos os que presenciaram a cena nefasta gritaram aos latrocidas, avisando-os do inocente João sendo massacrado, decaptado, desfigurado...

João Hélio, 6 anos de idade, foi arrastado por sete quilômetros, sete quilômetros que - para os que involuntariamente acompanharam a cena – passaram como sete mil, e para o anjinho vitimado pelos súcubos e íncubos, sete trilhões de inesgotáveis e infindáveis quilômetros...

Um motoqueiro, em desespero, passou a seguir o veículo, sinalizando com os faróis, gritando desesperadamente, alertando que João Hélio estava sendo arrastado, preso ao cinto, batendo todas as partes do frágil corpinho no asfalto duro e áspero, chocando-se com o meio fio, com os postes, com os obstáculos do caminho...

“Zoando”, como dizem na gíria os filhos mais diletos do demônio, os latrocidas - destilando sarcasmo e ironia - respondiam de dentro do carro:

- O que esta sendo arrastado não é uma criança, é um mero boneco de Judas.

Quando os bandidos abandonaram o Corsa, a alma angelical de João Hélio já havia sido resgatada por um Deus colérico, indignado tamanha a covardia e monstruosidade reinante sob os céus. Do lado de fora do carro, pendurado qual manta de carne lacerada, o que sobrara do pequeno arcanjo, um corpo completamente desfigurado, irreconhecível, o crânio esmagado, uns poucos restos do que sobrara da cabeça; e ao longo do trajeto, partes dos órgãos e massa encefálica.

Não bastou. O Brasil tem sede e fome de tragédias.

Em outro caso ocorrido em São Paulo, uma mãe acostumou-se a torturar o filho biológico utilizando, dentre outros instrumentos de tortura, uma chave de fenda colocada no céu da boca da criança.

Em tempos em que o amor pulverizou-se, só inocentes úteis acreditam que os casos de crianças sexualmente violentadas, estupradas, ocorrem com mais freqüência em casais que passaram por vários casamentos, com filhos de várias relações. Ledo e tosco engano. Os dados mais recentes dão conta que em 80% dos estupros registrados, os pais biológicos estão envolvidos.

Há tempos os valores familiares e religiosos estão sendo diuturnamente jogados na lata de lixo, e os resultados são eloqüentes.

Pouco mais da meia noite. A estudante Suzane Richthofen, 19 anos, chegou em casa e foi se certificar que os pais dormiam. Conforme combinara com o namorado, Daniel Cravinhos, 21 anos, acendeu a luz do corredor. Era a senha fatídica. Daniel e o irmão dele, Cristian, 26 anos, entraram no quarto dos pais de Suzane armados com barras de ferro e, impiedosamente, massacraram o casal Manfred e Marisa Richthofen.

Tão logo perpetraram a chacina, Suzane e Daniel foram curtir a noite na suíte presidencial de um motel de luxo de São Paulo, e Cristian foi saborear um suculento sanduíche do MacDonald’s.

Na época do crime, Suzane cursava o 1º ano de Direito na PUC. Além de bela, expansiva e rica, alcançou a faixa preta em caratê e falava fluentemente inglês, alemão e espanhol.

Ao que se sabe, o problema que a afligia era a declarada aversão dos pais ao namorado que “não estudava, não tinha emprego fixo e nem tinha pretensões maiores na vida, além de usuário de drogas”.

O sangue frio da trinca impressionou até mesmo os policiais. Tão logo efetuaram o assassinato, orquestraram dar ao ocorrido características de latrocínio - roubo seguido de morte. Suzane correu para a biblioteca e lá espalhou diversos papéis e contas. Acompanhada pelos dois comparsas, pegou o revólver 38 que o pai mantinha escondido no fundo falso da gaveta do lavabo e o colocou no chão, bem rente ao pai. Cuidaram de não deixar impressões digitais utilizando luvas cirúrgicas roubadas da mãe, que era médica. Tanto Daniel como Cristian tiveram o cuidado de se valerem de meias-calças para não deixarem vestígio que fosse, sequer um pelinho de qualquer parte das pernas.

O delegado Armando de Oliveira Costa Filho até hoje se sensibiliza quando relembra algumas passagens deste caso que prostrou o Brasil. Como em um dos interrogatórios, quando “explicava que eles seriam responsabilizados por seus atos, Suzane perguntou se poderia vender o carro”. E conclui sempre com um misto de indignação e ceticismo: "a brutalidade aumentou dentro dos lares. Os valores não mais existem.”

Existe um fosso gigantesco entre as famílias que idealizamos – sempre fraternas e solidárias – e as que a realidade vai nos apresentando no dia a dia.

Quando a imprensa noticiou as torturas a que era submetida a pequena Lucélia, escrevi o poema transcrito abaixo:

O mundo não será das Calabresis ou Uma oração para canalhas

Quantas Calabresis não se encontram escondidas, disfarçadas, infiltradas, dissimuladas, em nossos lares e corações?
Vês, na obra de Goya, Saturno devorando o próprio filho?
Simulas indignação, desprezo, repulsa?
Como não tivesses incrustadas nos recônditos de tu’alma as palavras de Machado:
“O cinismo é a sinceridade dos patifes”.
Extorques e acusas o outro... Cretina!
Roubas e o ladrão é o outro... Mesquinha!
Corrompes e quem é canalha senão o outro? Torpe e soturna!
Liquidas, exterminas, assassinas e eis que sentencias o outro.
Urdes, engendras e conspiras contra a pátria e o outro é o traidor.
Em que te diferes de Saturno?
Não és tu a insana canibal a acusar o outro de sê-lo?
Quantos filhos devoraste impiedosamente enquanto acusavas o outro
do infanticídio, do aborto?
Em que te diferes de Saturno, mulher?
Não és tu que corrompes de maneira vil e torpe a verdade e cultuas satanicamente
a mentira, ao tempo em que propagas ao mundo que corrupto e mentiroso é o outro?
Não cultuaste tão diligentemente a Cannabis sativa – a que apelidaras “doce marijuana” – para agora avançares sobre o outro acusando-o de viciado, peçonhento, maconheiro?
Devoras o fruto de teu ventre e acusas Saturno?
Promoves a intriga e apontas o dedo para o primeiro que vislumbras?
Ensinas a covardia e abusas da mais tenra e amada criança ¬–
e quem assediou acabou de fugir?
Humilhas, avanças, provocas, agrides, espancas, torturas, aprisionas indefesos –
e quem bate e violenta é a tropa de choque?
Te tornaste carne, sexo e prostituta de incubo de Saturno –
e ensandecidamente acusas o outro de estupro?
Tua fantasia doce, angelical, cândida e inofensiva – tecida para embair o mundo –
desmoronou... e vestes ‘coitadinha’, calças ‘sofridinha’, maquilas ‘vitimismo’.
Já não podes posar de cavaleira impoluta.
Praticas aos olhos do mundo o adultério –
e, doidivanas, acusas todos os homens de cometê-lo?
Jamais relutaste em atirar a primeira, a segunda e a terceira pedra.
Jamais renunciaste às tuas prioridades absolutas:
Tu sempre em primeiro lugar
Tu sempre em segundo lugar
Tu sempre em terceiro lugar
És Judas, o Iscariotes, e te queres Santa Joana d’Arc.
És Joaquim Silvério dos Reis, o coronel venal, e te queres Tiradentes.
És Calabar e te queres Maria Quitéria.
“Acuse-os sempre de fazer o que você faz” é teu lema, teu jargão, teu valor mais
nobre e soberano.
Não, mulher, tu não consegues mais surpreender qualquer homem de bem.
Como não recordar Nietzsche: “Todo homem vai se tornando aquilo que é”?
E Terêncio: “Sou homem. Nada do que é humano me é estranho”?
Não declares que no mundo só existem traficantes, suicidas e latrocidas
por teres reduzido teu universo a uma sórdida, nefasta e insalubre masmorra.
Não declares o fim da bondade, da humildade e do altruísmo
porque integras a súcia, a récua, a farândola, a caterva das máfias e quadrilhas dos malfeitores lobos do homem...
Lobos ferozes e insanos em pele de cordeiro.
Queres conduzir todas as batalhas – quem hoje não sabe? – para a lama fétida
onde fermenta o pior do excremento humano.
Saibas, urge que compreendas: o mundo pulsa, a vida lateja – vigorosa, voluptuosa,
graciosa – de homens e mulheres dignos, éticos, honestos.
Fervilha, em cada casa, em cada rua, em cada esquina,
uma multidão de anjos guerreiros, nobres paladinos da justiça.
Milhões e milhões de sábios valentes que diuturnamente pelejam
para resgatar o mundo de patifes, canalhas e cafajestes como tu,
que desdenham e odeiam a verdade,
que veneram e cultuam a mentira,
que idolatram e tecem loas à traição e à ignomínia.
O mundo, mulher, não duvides, foi, é, e será sempre dos bons, dos justos, dos simples!
Como não orar para que canalhas e patifes percebam que o sol não morreu
tão-somente porque o horizonte encontra-se crispado de nuvens densas
e sombriamente carregadas?
Não, mulher, para glória de Deus e dos homens,
Tu não mataste o sol.
O mundo não será das Calabresis!
O universo regozija-se, pois que dá de ombros ao jogo nauseabundo
das Calabresis!


Não bastou. O Brasil tem sede e fome de tragédias.

Agora estamos às voltas com o caso da pequena Isabella, brutalmente assassinada no dia 29 de março. A polícia acusa e indicia o pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina Jatobá. O ministério público deve acatar e dar prosseguimento à ação. Mas a população já apresentou seu veredicto: estão julgados e condenados. Procura apenas uma oportunidade para executar a sentença, fazendo justiça com as próprias mãos.

Para a elaboração do laudo, três médicos legistas foram mobilizados. Deram como causa da morte asfixia seguida de politraumatismo. A conclusão a que chegaram foi que, mesmo antes de ser arremessada do 6º andar, Isabelle já não tinha esperanças dada a esganadura que sofrera.

O suplício de Isabella teve a duração de séculos e mais séculos de séculos. Os legistas afirmam que durou sete minutos. Quem a agrediu apertou o frágil pescoço da criança por cerca de três minutos, quando ela desmaiou. Sem oxigênio, a pressão e os batimentos cardíacos despencaram celeremente. Nesse instante ocorreu a convulsão que conduziu secreções para o nariz e os pulmões.

Diante da TV, o Brasil assiste, atônito, a performance dos âncoras dos telejornais. O clima de revolta e indignação encontra-se no ápice.

O edifício onde reside Alexandre Jatobá, pai de Anna Carolina, chegou a ter o portão principal arrombado por manifestantes que desejavam invadir o prédio. Intentavam um linchamento público que só não ocorreu devido a chegada de seis viaturas policiais.

Quantos, no silêncio das noites, não oraram suplicando a Deus pela inocência do pai, pois que, confirmadas as acusações da polícia, estaria evidenciado o quão impiedosa e satânica pode se conformar a natureza humana e o quanto de indigente e miserável pode se travestir a natureza paterna.

Infelizmente a vida não é como desejamos e imaginamos. Entre nossos sonhos e a realidade existe uma infinidade de possibilidades, e muitas delas tecidas a sangue e infortúnio. Em sua peça mais longa, Hamlet, Shakespeare discorre sobre a intensa dor de Hamlet ao descobrir que o tio Cláudio matara covardemente seu pai para casar-se com sua mãe, de modo a usurpar o trono da Dinamarca. É nesta peça que se encontra uma das mais celebres frases da literatura universal: "Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que supõe sua vã filosofia".

De que mais serão capazes de urdir e tramar as mentes e corações pervertidos, aqueles enlameados pelo rancor, obliterados pelo ódio – e que exalam, em essência, falsa-inofensiva-normalidade?

Quando nos livraremos da maldição dos que assacam e conspiram contra a vida, contra os sonhos dos que, simplesmente, aspiram viver?

Dói e avilta saber que muitos pais são completamente destituídos do amor paternal; que muitas mães desconhecem, desdenham e refugam tudo que se assemelhe ao espírito maternal.

Os que lidam com teatro utilizam, com certa freqüência, de um expediente herdado das antigas tragédias gregas e romanas. Em latim, denomina-se “deus ex machina” que, em tradução livre, significa um deus por meio de uma máquina. É utilizado quando, nas peças teatrais, a trama dramática se mostra por demais complexa, difícil de alinhavar, de alcançar o desfecho satisfatório. Então a estratégia consiste em fazer surgir do nada um deus para ensinar a saída, mostrar a ponta do novelo, apontar a direção a seguir.

O Brasil tornou-se eterno refém de suas tragédias. Onde, quando e como será a próxima? Urge um deus ex machina.

Antônio Carlos dos Santos – criador da Metodologia de Planejamento Estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de Teatro Popular de Bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br