sexta-feira, 16 de maio de 2008

Sobre cotas raciais


“Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais”

Tramita no Supremo Tribunal Federal duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade que tratam das cotas raciais, a ADIM 3.330 e a ADIM 3.197. A primeira questiona o Prouni e a segunda os vestibulares das universidades estaduais do Rio de Janeiro.

Naturalmente, o julgamento criará jurisprudência, o que poderá afetar o tratamento da questão em todo o país.

Pois bem: um grupo de expressivas personalidades, de todas as áreas - entregou ao Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, uma carta denominada “Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais”.

Dentre as personalidades que assinam o documento estão Caetano Veloso e Nelson Motta, Ferreira Gullar e Gerald Thomas, João Ubaldo Ribeiro e Lya Luft, Demétrio Magnoli, Yvonne Maggie e Reinaldo Azevedo. Só pesos pesados.

Como o bom debate já está colocado (inclusive tramitando na mais alta corte do país ) publico abaixo o documento, seguido dos 113 signatários. E mais abaixo o documento da corrente contrária, que defende o sistema de cotas.

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Para o Ministro Gilmar Mendes, Supremo Tribunal Federal
Excelentíssimo Sr. Ministro Gilmar Mendes:

Duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 3.330 e ADI 3.197) promovidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), a primeira contra o programa PROUNI e a segunda contra a lei de cotas nos concursos vestibulares das universidades estaduais do Rio de Janeiro, serão apreciadas proximamente pelo STF. Os julgamentos terão significado histórico, pois podem criar jurisprudência sobre a constitucionalidade de cotas raciais não só para o financiamento de cursos no ensino superior particular e para concursos de ingresso no ensino superior público como para concursos públicos em geral. Mais ainda: os julgamentos têm o potencial de enviar uma mensagem decisiva sobre a constitucionalidade da produção de leis raciais.
Nós, intelectuais da sociedade civil, sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos negros e outros movimentos sociais, dirigimo-nos respeitosamente aos Juízes da corte mais alta, que recebeu do povo constituinte a prerrogativa de guardiã da Constituição, para oferecer argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica da República.
Na seara do que Vossas Excelências dominam, apontamos a Constituição Federal, no seu Artigo 19, que estabelece: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. O Artigo 208 dispõe que: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”. Alinhada com os princípios e garantias da Constituição Federal, a Constituição Estadual do Rio de Janeiro, no seu Artigo 9, § 1º, determina que: “Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, idade, etnia, raça, cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental, por ter cumprido pena nem por qualquer particularidade ou condição”.
As palavras da Lei emanam de uma tradição brasileira, que cumpre exatos 120 anos desde a Abolição da escravidão, de não dar amparo a leis e políticas raciais. No intuito de justificar o rompimento dessa tradição, os proponentes das cotas raciais sustentam que o princípio da igualdade de todos perante a lei exige tratar desigualmente os desiguais. Ritualmente, eles citam a Oração aos Moços, na qual Rui Barbosa, inspirado em Aristóteles, explica que: “A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade.” O método de tratar desigualmente os desiguais, a que se refere, é aquele aplicado, com justiça, em campos tão distintos quanto o sistema tributário, por meio da tributação progressiva, e as políticas sociais de transferência de renda. Mas a sua invocação para sustentar leis raciais não é mais que um sofisma.
Os concursos vestibulares, pelos quais se dá o ingresso no ensino superior de qualidade “segundo a capacidade de cada um”, não são promotores de desigualdades, mas se realizam no terreno semeado por desigualdades sociais prévias. A pobreza no Brasil tem todas as cores. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2006, entre 43 milhões de pessoas de 18 a 30 anos de idade, 12,9 milhões tinham renda familiar per capita de meio salário mínimo ou menos. Neste grupo mais pobre, 30% classificavam-se a si mesmos como “brancos”, 9% como “pretos”, e 60% como “pardos”. Desses 12,9 milhões, apenas 21% dos “brancos” e 16% dos “pretos” e “pardos” haviam completado o ensino médio, mas muito poucos, de qualquer cor, continuaram estudando depois disso. Basicamente, são diferenças de renda, com tudo que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao ensino superior.
Apresentadas como maneira de reduzir as desigualdades sociais, as cotas raciais não contribuem para isso, ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções dos desafios imensos e das urgências, sociais e educacionais, com os quais se defronta a nação. E, contudo, mesmo no universo menor dos jovens que têm a oportunidade de almejar o ensino superior de qualidade, as cotas raciais não promovem a igualdade, mas apenas acentuam desigualdades prévias ou produzem novas desigualdades:
• As cotas raciais exclusivas, como aplicadas, entre outras, na Universidade de Brasília (UnB), proporcionam a um candidato definido como “negro” a oportunidade de ingresso por menor número de pontos que um candidato definido como “branco”, mesmo se o primeiro provém de família de alta renda e cursou colégios particulares de excelência e o segundo provém de família de baixa renda e cursou escolas públicas arruinadas. No fim, o sistema concede um privilégio para candidatos de classe média arbitrariamente classificados como “negros”.
• As cotas raciais embutidas no interior de cotas para candidatos de escolas públicas, como aplicadas, entre outras, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), separam os alunos proveniente de famílias com faixas de renda semelhantes em dois grupos “raciais” polares, gerando uma desigualdade “natural” num meio caracterizado pela igualdade social. O seu resultado previsível é oferecer privilégios para candidatos definidos arbitrariamente como “negros” que cursaram escolas públicas de melhor qualidade, em detrimento de seus colegas definidos como “brancos” e de todos os alunos de escolas públicas de pior qualidade.
A PNAD de 2006 informa que 9,41 milhões de estudantes cursavam o ensino médio, mas apenas 5,87 milhões freqüentavam o ensino superior, dos quais só uma minoria de 1,44 milhão estavam matriculados em instituições superiores públicas. As leis de cotas raciais não alteram em nada esse quadro e não proporcionam inclusão social. Elas apenas selecionam “vencedores” e “perdedores”, com base num critério altamente subjetivo e intrinsecamente injusto, abrindo cicatrizes profundas na personalidade dos jovens, naquele momento de extrema fragilidade que significa a disputa, ainda imaturos, por uma vaga que lhes garanta o futuro.
Queremos um Brasil onde seus cidadãos possam celebrar suas múltiplas origens, que se plasmam na criação de uma cultura nacional aberta e tolerante, no lugar de sermos obrigados a escolher e valorizar uma única ancestralidade em detrimento das outras. O que nos mobiliza não é o combate à doutrina de ações afirmativas, quando entendidas como esforço para cumprir as Declarações Preambulares da Constituição, contribuindo na redução das desigualdades sociais, mas a manipulação dessa doutrina com o propósito de racializar a vida social no país. As leis que oferecem oportunidades de emprego a deficientes físicos e que concedem cotas a mulheres nos partidos políticos são invocadas como precedentes para sustentar a admissibilidade jurídica de leis raciais. Esse segundo sofisma é ainda mais grave, pois conduz à naturalização das raças. Afinal, todos sabemos quem são as mulheres e os deficientes físicos, mas a definição e delimitação de grupos raciais pelo Estado é um empreendimento político que tem como ponto de partida a negação daquilo que nos explicam os cientistas.
Raças humanas não existem. A genética comprovou que as diferenças icônicas das chamadas “raças” humanas são características físicas superficiais, que dependem de parcela ínfima dos 25 mil genes estimados do genoma humano. A cor da pele, uma adaptação evolutiva aos níveis de radiação ultravioleta vigentes em diferentes áreas do mundo, é expressa em menos de 10 genes! Nas palavras do geneticista Sérgio Pena: “O fato assim cientificamente comprovado da inexistência das ‘raças’ deve ser absorvido pela sociedade e incorporado às suas convicções e atitudes morais Uma postura coerente e desejável seria a construção de uma sociedade desracializada, na qual a singularidade do indivíduo seja valorizada e celebrada. Temos de assimilar a noção de que a única divisão biologicamente coerente da espécie humana é em bilhões de indivíduos, e não em um punhado de ‘raças’.” (“Receita para uma humanidade desracializada”, Ciência Hoje Online, setembro de 2006).
Não foi a existência de raças que gerou o racismo, mas o racismo que fabricou a crença em raças. O “racismo científico” do século XIX acompanhou a expansão imperial européia na África e na Ásia, erguendo um pilar “científico” de sustentação da ideologia da “missão civilizatória” dos europeus, que foi expressa celebremente como o “fardo do homem branco”.
Os poderes coloniais, para separar na lei os colonizadores dos nativos, distinguiram também os nativos entre si e inscreveram essas distinções nos censos. A distribuição de privilégios segundo critérios etno-raciais inculcou a raça nas consciências e na vida política, semeando tensões e gestando conflitos que ainda perduram. Na África do Sul, o sistema do apartheid separou os brancos dos demais e foi adiante, na sua lógica implacável, fragmentando todos os “não-brancos” em grupos étnicos cuidadosamente delimitados. Em Ruanda, no Quênia e em tantos outros lugares, os africanos foram submetidos a meticulosas classificações étnicas, que determinaram acessos diferenciados aos serviços e empregos públicos. A produção política da raça é um ato político que não demanda diferenças de cor da pele.
O racismo contamina profundamente as sociedades quando a lei sinaliza às pessoas que elas pertencem a determinado grupo racial – e que seus direitos são afetados por esse critério de pertinência de raça. Nos Estados Unidos, modelo por excelência das políticas de cotas raciais, a abolição da escravidão foi seguida pela produção de leis raciais baseadas na regra da “gota de sangue única”. Essa regra, que é a negação da mestiçagem biológica e cultural, propiciou a divisão da sociedade em guetos legais, sociais, culturais e espaciais. De acordo com ela, as pessoas são, irrevogavelmente, “brancas” ou “negras”. Eis aí a inspiração das leis de cotas raciais no Brasil.
“Eu tenho o sonho que meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação na qual não serão julgados pela cor da sua pele mas pelo conteúdo de seu caráter”. Há 45 anos, em agosto, Martin Luther King abriu um horizonte alternativo para os norte-americanos, ancorando-o no “sonho americano” e no princípio político da igualdade de todos perante a lei, sobre o qual foi fundada a nação. Mas o desenvolvimento dessa visão pós-racial foi interrompido pelas políticas racialistas que, a pretexto de reparar injustiças, beberam na fonte envenenada da regra da “gota de sangue única”. De lá para cá, como documenta extensamente Thomas Sowell em Ação afirmativa ao redor do mundo: um estudo empírico (Univer Cidade, 2005), as cotas raciais nos Estados Unidos não contribuíram em nada para reduzir desigualdades mas aprofundaram o cisma racial que marca como ferro em brasa a sociedade norte-americana.
“É um impasse racial no qual estamos presos há muitos anos”, na constatação do senador Barack Obama, em seu discurso pronunciado a 18 de março, que retoma o fio perdido depois do assassinato de Martin Luther King. O “impasse” não será superado tão cedo, em virtude da lógica intrínseca das leis raciais. Como assinalou Sowell, com base em exemplos de inúmeros países, a distribuição de privilégios segundo critérios etno-raciais tende a retroalimentar as percepções racializadas da sociedade – e em torno dessas percepções articulam-se carreiras políticas e grupos organizados de pressão.
Mesmo assim, algo se move nos Estados Unidos. Há pouco, repercutindo um desencanto social bastante generalizado com o racialismo, a Suprema Corte declarou inconstitucionais as políticas educacionais baseadas na aplicação de rótulos raciais às pessoas. No seu argumento, o presidente da Corte, juiz John G. Roberts Jr., escreveu que “o caminho para acabar com a discriminação baseada na raça é acabar com a discriminação baseada na raça”. Há um sentido claro na reiteração: a inversão do sinal da discriminação consagra a raça no domínio da lei, destruindo o princípio da cidadania.
Naquele julgamento, o juiz Anthony Kennedy alinhou-se com a maioria, mas proferiu um voto separado que contém o seguinte protesto: “Quem exatamente é branco e quem é não-branco? Ser forçado a viver sob um rótulo racial oficial é inconsistente com a dignidade dos indivíduos na nossa sociedade. E é um rótulo que um indivíduo é impotente para mudar!”. Nos censos do IBGE, as informações de raça/cor abrigam a mestiçagem e recebem tratamento populacional. As leis raciais no Brasil são algo muito diferente: elas têm o propósito de colar “um rótulo que um indivíduo é impotente para mudar” e, no caso das cotas em concursos vestibulares, associam nominalmente cada jovem candidato a uma das duas categorias “raciais” polares, impondo-lhes uma irrecorrível identidade oficial.
O juiz Kennedy foi adiante e, reconhecendo a diferença entre a doutrina de ações afirmativas e as políticas de cotas raciais, sustentou a legalidade de iniciativas voltadas para a promoção ativa da igualdade que não distinguem os indivíduos segundo rótulos raciais. Reportando-se à realidade norte-americana da persistência dos guetos, ele mencionou, entre outras, a seleção de áreas residenciais racialmente segregadas para os investimentos prioritários em educação pública.
No Brasil, difunde-se a promessa sedutora de redução gratuita das desigualdades por meio de cotas raciais para ingresso nas universidades. Nada pode ser mais falso: as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada. Há um programa inteiro de restauração da educação pública a se realizar, que exige políticas adequadas e vultosos investimentos. É preciso elevar o padrão geral do ensino mas, sobretudo, romper o abismo entre as escolas de qualidade, quase sempre situadas em bairros de classe média, e as escolas devastadas das periferias urbanas, das favelas e do meio rural. O direcionamento prioritário de novos recursos para esses espaços de pobreza beneficiaria jovens de baixa renda de todos os tons de pele – e, certamente, uma grande parcela daqueles que se declaram “pardos” e “pretos”.
A meta nacional deveria ser proporcionar a todos um ensino básico de qualidade e oportunidades verdadeiras de acesso à universidade. Mas há iniciativas a serem adotadas, imediatamente, em favor de jovens de baixa renda de todas as cores que chegam aos umbrais do ensino superior, como a oferta de cursos preparatórios gratuitos e a eliminação das taxas de inscrição nos exames vestibulares das universidades públicas. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o Programa de Cursinhos Pré-Vestibulares Gratuitos, destinado a alunos egressos de escolas públicas, atendeu em 2007 a 3.714 jovens, dos quais 1.050 foram aprovados em concursos vestibulares, sendo 707 em universidades públicas. Medidas como essa, que não distinguem os indivíduos segundo critérios raciais abomináveis, têm endereço social certo e contribuem efetivamente para a amenização das desigualdades.
A sociedade brasileira não está livre da chaga do racismo, algo que é evidente no cotidiano das pessoas com tom de pele menos claro, em especial entre os jovens de baixa renda. A cor conta, ilegal e desgraçadamente, em incontáveis processos de admissão de funcionários. A discriminação se manifesta de múltiplas formas, como por exemplo na hora das incursões policiais em bairros periféricos ou nos padrões de aplicação de ilegais mandados de busca coletivos em áreas de favelas.
Por certo existe preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil não é uma nação racista. Depois da Abolição, no lugar da regra da “gota de sangue única”, a nação brasileira elaborou uma identidade amparada na idéia anti-racista de mestiçagem e produziu leis que criminalizam o racismo. Há sete décadas, a República não conhece movimentos racistas organizados ou expressões significativa de ódio racial. O preconceito de raça, acuado, refugiou-se em expressões oblíquas envergonhadas, temendo assomar à superfície. A condição subterrânea do preconceito é um atestado de que há algo de muito positivo na identidade nacional brasileira, não uma prova de nosso fracasso histórico.
“Quem exatamente é branco e quem é não-branco?” – a indagação do juiz Kennedy provoca algum espanto nos Estados Unidos, onde quase todos imaginam conhecer a identidade “racial” de cada um, mas parece óbvia aos ouvidos dos brasileiros. Entre nós, casamentos interraciais não são incomuns e a segregação residencial é um fenômeno basicamente ligado à renda, não à cor da pele. Os brasileiros tendem a borrar as fronteiras “raciais”, tanto na prática da mestiçagem quanto no imaginário da identidade, o que se verifica pelo substancial e progressivo incremento censitário dos “pardos”, que saltaram de 21% no Censo de 1940 para 43% na PNAD de 2006, e pela paralela redução dos “brancos” (de 63% para 49%) ou “pretos” (de 15% para 7%).
A percepção da mestiçagem, que impregna profundamente os brasileiros, de certa forma reflete realidades comprovadas pelos estudos genéticos. Uma investigação já célebre sobre a ancestralidade de brasileiros classificados censitariamente como “brancos”, conduzida por Sérgio Pena e sua equipe da Universidade Federal de Minas Gerais, comprovou cientificamente a extensão de nossas miscigenações. “Em resumo, estes estudos filogeográficos com brasileiros brancos revelaram que a imensa maioria das patrilinhagens é européia, enquanto a maioria das matrilinhagens (mais de 60%) é ameríndia ou africana” (PENA, S. “Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas?”, Estudos Avançados 18 (50), 2004). Especificamente, a análise do DNA mitocondrial, que serve como marcador de ancestralidades maternas, mostrou que 33% das linhagens eram de origem ameríndia, 28% de origem africana e 39% de origem européia.
Os estudos de marcadores de DNA permitem concluir que, em 2000, existiam cerca de 28 milhões de afrodescendentes entre os 90,6 milhões de brasileiros que se declaravam “brancos” e que, entre os 76,4 milhões que se declaravam “pardos” ou “pretos”, 20% não tinham ancestralidade africana. Não é preciso ir adiante para perceber que não é legítimo associar cores de pele a ancestralidades e que as operações de identificação de “negros” com descendentes de escravos e com “afrodescentes” são meros exercícios da imaginação ideológica. Do mesmo modo, a investigação genética evidencia a violência intelectual praticada pela unificação dos grupos censitários “pretos” e “pardos” num suposto grupo racial “negro”.
Mas a violência não se circunscreve à esfera intelectual. As leis de cotas raciais são veículos de uma engenharia política de fabricação ou recriação de raças. Se, individualmente, elas produzem injustiças singulares, socialmente têm o poder de gerar “raças oficiais”, por meio da divisão dos jovens estudantes em duas raças polares. Como, no Brasil, não sabemos quem exatamente é “negro” e quem é “não-negro”, comissões de certificação racial estabelecidas pelas universidades se encarregam de traçar uma fronteira. A linha divisória só se consolida pela validação oficial da autodeclaração dos candidatos, num processo sinistro em que comissões universitárias investigam e deliberam sobre a “raça verdadeira” dos jovens a partir de exames de imagens fotográficas ou de entrevistas identitárias. No fim das contas, isso equivale ao cancelamento do princípio da autodeclaração e sua substituição pela atribuição oficial de identidades raciais.
Na UnB, uma comissão de certificação racial composta por professores e militantes do movimento negro chegou a separar dois irmãos gêmeos idênticos pela fronteira da raça. No Maranhão, produziram-se fenômenos semelhantes. Pelo Brasil afora, os mesmos candidatos foram certificados como “negros” em alguma universidade mas descartados como “brancos” em outra. A proliferação das leis de cotas raciais demanda a produção de uma classificação racial geral e uniforme. Esta é a lógica que conduziu o MEC a implantar declarações raciais nominais e obrigatórias no ato de matrícula de todos os alunos do ensino fundamental do país. O horizonte da trajetória de racialização promovida pelo Estado é o estabelecimento de um carimbo racial compulsório nos documentos de identidade de todos os brasileiros. A história está repleta de barbaridades inomináveis cometidas sobre a base de carimbos raciais oficialmente impostos.
A propaganda cerrada em favor das cotas raciais assegura-nos que os estudantes universitários cotistas exibem desempenho similar ao dos demais. Os dados concernentes ao tema são esparsos, contraditórios e pouco confiáveis. Mas isso é essencialmente irrelevante, pois a crítica informada dos sistemas de cotas nunca afirmou que estudantes cotistas seriam incapazes de acompanhar os cursos superiores ou que sua presença provocaria queda na qualidade das universidades. As cotas raciais não são um distúrbio no ensino superior, mas a face mais visível de uma racialização oficial das relações sociais que ameaça a coesão nacional.
A crença na raça é o artigo de fé do racismo. A fabricação de “raças oficiais” e a distribuição seletiva de privilégios segundo rótulos de raça inocula na circulação sanguínea da sociedade o veneno do racismo, com seu cortejo de rancores e ódios. No Brasil, representaria uma revisão radical de nossa identidade nacional e a renúncia à utopia possível da universalização da cidadania efetiva.
Ao julgar as cotas raciais, o STF não estará deliberando sobre um método de ingresso nas universidades, mas sobre o significado da nação e a natureza da Constituição. Leis raciais não ameaçam uma “elite branca”, conforme esbravejam os racialistas, mas passam uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos brasileiros. Essa linha divisória atravessaria as salas de aula das escolas públicas, os ônibus que conduzem as pessoas ao trabalho, as ruas e as casas dos bairros pobres. Neste início de terceiro milênio, um Estado racializado estaria dizendo aos cidadãos que a utopia da igualdade fracassou – e que, no seu lugar, o máximo que podemos almejar é uma trégua sempre provisória entre nações separadas pelo precipício intransponível das identidades raciais. É esse mesmo o futuro que queremos?


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Assinam:

Adel Daher – Diretor do Sindicato dos Ferroviários de Bauru e MS
Adelaide Jóia – Socióloga e Mestre em Educação Infantil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Adriana Atila – Doutora em Antropologia Cultural, IFCS, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Aguinaldo Silva – Jornalista, telenovelista
Alba Zaluar – Titular de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Livre-docente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), colunista da Folha de S. Paulo
Almir Lima da Silva – Jornalista, Centro de Cultura Negra de Macaé-RJ
Alzira Alves de Abreu – Pesquisadora do CPDOC da Fundação Getulio Vargas
Amâncio Paulino de Carvalho – Professor da Faculdade de Medicina Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Ana Maria Machado – Escritora, membro da Academia Brasileira de Letras
Ana Teresa A. Venancio – Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Ângela Porto – Pesquisadora Titular, Fundação Oswaldo Cruz
Antonio Cicero – Poeta e ensaísta
Antonio Risério – Antropólogo
Arlindo Belo da Silva – Conselheiro Fiscal da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Químico (CNQ–CUT)
Bernardo Lewgoy – Professor Adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Bernardo Sorj – Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Bernardo Vilhena – Poeta
Bila Sorj – Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Bolivar Lamounier – Cientista Político
Caetano Veloso - cantor e compositor
Carlos A. de L. Costa Ribeiro – Professor e Consultor em Ciências do Meio Ambiente
Carlos Pio – Professor da Universidade de Brasília (UNB)
Carlos José Serapião – Professor Titular aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professor Titular da Universidade da Região de Joinville–SC
Celso Castro – Antropólogo, professor do CPDOC da Fundação Getulio Vargas
César Benjamin – Editor
Charles Pires – Diretor do Sindicato dos Funcionários Publicos Municipais de Florianópolis e membro da Executiva da CUT-SC
Cremilda Medina – Jornalista e professora Titular da Universidade de São Paulo (USP)
Cynthia Maria Pinto da Luz – Advogada, Conselheira Nacional do Movimento Nacional em Defesa dos Direitos Humanos
Claudia Travassos – Pesquisadora Titular, Fundação Oswaldo Cruz
Darcy Fontoura de Almeida – Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Demétrio Magnoli – Sociólogo, integrante do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo (USP)
Diomédes Matias da Silva Filho – Diretor do Sindicato dos Professores do Estado de Pernambuco
Domingos Guimaraens – Poeta e artista plástico
Edmar Lisboa Bacha – Economista
Eduardo Giannetti – Economista
Eduardo Pizarro Carnelós – Advogado, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça
Elizabeth Balbachevsky – Professora Associada do Departamento de Ciência Política e pesquisadora sênior do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP)
Esteffane Emanuelle Ferreira – Estudante, Coordenação do DCE da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
Eunice Durham – Professora Emérita da FFLCH da Universidade de São Paulo (USP)
Fernando Gomes Martins – Associação de Moradores do Parque Bandeirantes e Movimento Hip Hop Sumaré-SP
Ferreira Gullar – Poeta
Flávio Rabelo Versiani – Professor Titular do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UNB)
Francisco João Lessa – Advogado, Direção do PT-SC
Francisco Johny Rodrigues Silva – Coordenador do Fórum Afro da Amazônia (FORAFRO)
Francisco Martinho – Professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Francisco Mauro Salzano – Professor Emérito do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
George de Cerqueira Leite Zarur – Professor Internacional da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO)
Gerald Thomas – Dramaturgo, criador e diretor da Companhia de Ópera Seca
Gilberto Horchman – Pesquisador, Fundação Oswaldo Cruz
Gilberto Velho – Professor Titular de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Academia Brasileira de Ciências
Gilda Portugal – Professora de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Gilson Schwartz – Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Cidade do Conhecimento
Glaucia Kruse Villas Bôas – Professora Associada de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Gursen De Miranda – Professor Adjunto da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Presidente da Academia Brasileira de Letras Agrárias
Helda Castro de Sá – Coordenadora da Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia
Helena Severo – Cientista social, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas (NEP) do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro
Helga Hoffmann – Economista, integrante do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo (USP)
Heloisa Helena T. de Souza Martins – Professora aposentada de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP)
Isabel Lustosa – Pesquisadora Titular da Fundação Casa de Rui Barbosa
João Rodarte – Empresário
João Ubaldo Ribeiro – Escritor
José Álvaro Moisés – Professor Titular do Departamento de Ciência Política e Diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP)
José Arbex Jr. – Jornalista e professor do Departamento de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
José Augusto Guilhon Albuquerque – Professor Titular (aposentado) de Relações Internacionais da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP)
José Carlos Miranda – Coordenador Nacional do Movimento Negro Socialista
José Goldemberg – Ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP)
José de Souza Martins – Professor Titular (aposentado) de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP)
José Roberto Pinto de Góes – Historiador e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Karina Kuschnir – Antropóloga, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Leão Alves – Presidente do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro
Leonel Munhoz Coimbra – Analista de Controle Externo, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental da Escola Nacional de Administração Pública
Lourdes Sola – Presidente da Associação Internacional de Ciência Política e professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP)
Luciana Villas-Boas – Diretora do Grupo Editorial Record
Luciene G. Souza – Mestre em Saúde Pública, Fundação Nacional de Saúde
Luiz Alphonsus – Artista Plástico
Luiz Fernando Dias Duarte – Professor Associado do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Luiz Werneck Vianna – Professor Titular do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)
Lya Luft – Escritora
Manolo Garcia Florentino – Professor do Departamento de Historia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Marcelo Hermes-Lima – Professor de Bioquímica Médica da Universidade de Brasília (UNB)
Marcos Chor Maio – Pesquisador da da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Margarida Cintra Gordinho – Editora
Maria Alice Resende de Carvalho – Socióloga
Maria Cátira Bortolini – Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Maria Conceição Pinto de Góes – Professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Maria Herminia Tavares de Almeida – Cientista Política
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti – Professora Associada do Instituto de Filosofia e Ciencias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Maria Sylvia Carvalho Franco – Professora Titular da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Mariza Peirano – Professora Titular, Antropologia, Universidade de Brasília (UNB)
Maurício Soares Leite – Professor Adjunto, Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Moacyr Góes – Diretor de teatro e cineasta
Monica Grin – Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Nelson Motta – Produtor musical, jornalista e escritor
Patrícia Vanzella – Professora Adjunta, Departamento de Música da Universidade de Brasília (UNB)
Pedro Paulo Poppovic – Empresário
Peter Henry Fry – Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Reinaldo Azevedo – Jornalista, articulista da revista VEJA e editor do “Blog do Reinaldo Azevedo”
Renata Aparecida Vaz – Coordenação do Movimento Negro Socialista–SP
Renato Lessa – Professor Titular de Teoria Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), Presidente do Instituto Ciência Hoje
Ricardo Ventura Santos – Pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz e Professor Adjunto do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Roberta Fragoso Menezes Kaufmann – Procuradora do Distrito Federal, Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB) e Professora de Direito Constitucional
Roberto Romano da Silva – Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Rodolfo Hoffmann – Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Ronaldo Vainfas – Professor Titular da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Roque Ferreira – Coordenação da Federação Nacional de Trabalhadores de Transporte sobre Trilho–CUT
Ruth Correa Leite Cardoso – Antropóloga
Serge Goulart – Secretário da Esquerda Marxista do PT
Sergio Danilo Pena – Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro titular da Academia Brasileira de Ciências
Simon Schwartzman – Pesquisador do Instituto de Estudos do Tabalho e Sociedade (IETS)
Simone Monteiro – Pesquisadora Associada, Fundação Oswaldo Cruz
Wanderley Guilherme dos Santos – Cientista Político
Wilson Trajano Filho – Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UNB)
Yvonne Maggie – Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
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Agora é a vez da corrente que defende idéia oposta. No instante em que publico este documento, seus formuladores ainda estão colhendo assinaturas de apoio, razão porque, no pé da página, encontram-se listados apenas alguns nomes. E todos também pesos pesados.

O debate promete. Aliás, vem prometendo já faz algum tempo. Uma coisa é certa. As cabeças dos juízes da mais alta corte do país vão ferver.

Segue o documento “120 anos de luta pela igualdade racial no Brasil. Manifesto em defesa da justiça e constitucionalidade das cotas.”

Exmo Sr. Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal
Gilmar Mendes
Brasília

A EFERVESCÊNCIA DAS COTAS NO BRASIL DO SÉCULO XXI

Aos 120 anos da declaração da abolição da escravatura, vivemos uma verdadeira
efervescência na luta pela inclusão étnica e racial no ensino superior brasileiro: dezenas de
universidades já implementaram sistemas de cotas, bônus ou outras modalidades de ações
afirmativas, enquanto várias outras estão discutindo projetos similares.
As avaliações realizadas até o momento mostram que, sem sombra de dúvida,
apenas nos últimos cinco anos houve um índice de ingresso de estudantes negros no ensino
superior maior do que jamais foi alcançado em todo o século XX. A caracterização desse
avanço sem precedentes em nossa história como um privilégio de raça, menospreza o fato
de que as medidas responsáveis por esse cenário trouxeram um conjunto novo de
oportunidades que estava vedada a milhões de pessoas que ocupam os estratos mais baixos
de nossa sociedade.
No presente momento as iniciativas de inclusão racial e social no Brasil no campo
do ensino superior contam com uma história rica e complexa, embora inconclusa, que
certamente pode juntar-se ao repertório de outras notáveis conquistas ao redor do mundo. A
história a que nos referimos se baseia em um processo concreto de luta pela igualdade após
um século inteiro de exclusão dos negros do ensino superior, e não mais na controversa
ideologia do mito de uma ‘democracia racial’ que, de fato, nunca tivemos. Todos esses
avanços nos habilitam inclusive, a iniciar um diálogo horizontal e uma troca de
experiências com outros países que também encontraram seus próprios caminhos de
superação do racismo popular e institucional, da discriminação e da segregação, como a
Índia, os Estados Unidos, a África do Sul e a Malásia. E como nesses outros países, que
periodicamente enfrentam fortes reações conservadoras, acreditamos que o nosso processo,
ainda incompleto e em busca de constante aperfeiçoamento, deve manter seu curso e
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continuar a trazer para o interior das universidades brasileiras aqueles grupos sociais
historicamente excluídos. É importante relembrar que hoje o debate é público e aberto, mas
há cerca de duas décadas atrás o tema das ações afirmativas e do acesso dos negros ao
ensino superior era um tema tabu para a elite brasileira. Tal avanço junto à opinião pública
é notável, e não deve ser desprezado.
A demanda por políticas compensatórias específicas para os negros no Brasil não é
recente e nem está baseada em qualquer modelo estrangeiro. Pelo contrário, insere-se na
busca da justiça social em uma sociedade que historicamente se mostra racista, sexista,
homofóbica e excludente. As cotas e o Prouni significam uma mudança e um compromisso
ético do Estado brasileiro na superação de um histórico de exclusão que atinge de forma
particular negros e pobres. A superação da posição da neutralidade estatal que podemos
observar no Prouni é também aquela esperada diante do Projeto de Lei 73/99. Não se trata
de leis raciais, como dizem os 113 anti-cotas, mas um posicionamento do Estado brasileiro
coerente com os acordos internacionais de superação do racismo, de luta pelos direitos
humanos dos quais o país é signatário.
A primeira apresentação formal de uma proposta por ações afirmativas surgiu
justamente na Convenção Nacional do Negro Brasileiro, realizada em 1945 e 1946, no Rio
de Janeiro. Um dos resultados desse evento foi o documento denominado “Manifesto à
Nação Brasileira”. As reivindicações ali apresentadas foram publicadas no primeiro número
do jornal Quilombo, dirigido pelo extraordinário intelectual, artista e político brasileiro
Abdias do Nascimento, juntamente com o também grande intelectual e acadêmico
Guerreiro Ramos. Um dos tópicos do “Manifesto” determinava como parte do programa
definido pela Convenção “trabalhar pela valorização (sic) e valoração do negro brasileiro
em todos os setores: social, cultural, educacional, político, econômico e artístico”. Para
atingir esses objetivos, os editores do jornal Quilombo fizeram cinco proposições. A
terceira proposição foi assim definida: “lutar para que, enquanto não for tornado gratuito o
ensino em todos os graus, sejam admitidos brasileiros negros, como pensionistas do Estado,
em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior do
país, inclusive nos estabelecimentos militares”.
O que o “Manifesto à Nação Brasileira” propunha era uma ação afirmativa que se
fundamentava na reparação dos danos causados pelo racismo da república brasileira, a qual
havia decretado a igualdade formal sem oferecer nenhuma política concreta que ajudasse a
superar a desigualdade fundante da condição sofrida pelos negros como cidadãos livres
após 1889, que reconhecesse as terras dos quilombos e todas as formas de organização e
produção (inclusive cultural e religiosa) que os escravizados constituíram em suas práticas
de resistência e lutas por libertação. Pelo contrário, a linha de cor foi logo mobilizada
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diante dos fluxos de imigrantes europeus na ilusão – racista - de resolver o enigma –
deixado em herança pela escravidão - da construção do “povo brasileiro” pelo seu
branqueamento.
Embora o excedente de seu trabalho tenha sido responsável pela construção do
patrimônio do próprio Estado Brasileiro, e sua cultura tenha ajudado a constituir a
sociedade brasileira, após a instauração da República, a comunidade negra foi
simplesmente abandonada pelos poderes públicos como se não tivessem um saldo devedor
para com estes. Para completar o quadro funesto dos projetos da nossa Primeira República
autoritária para com a população negra, ela transferiu recursos do Estado para a promoção
de uma política imigratória baseada em critérios claramente raciais. Seu objetivo foi
declarado diversas vezes por autoridades públicas, como o antigo diretor do Museu
Nacional, João Batista Lacerda, que em 1916 previa o fim da população negra no Brasil em
menos de um século, e o predomínio final do ‘sangue branco’.
Apesar do empenho, o projeto autoritário e racista da Primeira República falhou. Os
negros resistiram às práticas de extermínio, e hoje encontram-se presentes em todas as
instâncias da vida nacional onde as barreiras raciais existentes, como o racismo
institucional por exemplo, não impeçam sua liberdade de ação.
Um dos mais importantes marcos na longa luta pelas cotas e outras formas
de inclusão racial foi a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a
Vida, que congregou em Brasília 50 mil manifestantes no dia 20 de novembro de 1995. No
documento entregue pelas lideranças negras ao então Presidente da República Fernando
Henrique Cardoso, estava incluída a seguinte demanda: “Desenvolvimento de ações
afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às
áreas de tecnologia de ponta”.
Foram necessários mais de 50 anos para que o programa de promoção da população
negra exposta no jornal negro Quilombo começasse a se transformar em política de Estado:
o ProUni, iniciado em 2005, e também o sistemas de cotas nas universidades públicas, que
oferecem bolsa para uma parcela dos egressos por esse sistema são herdeiros diretos dessa
proposta e de sua renovação prática por parte de um dos mais generosos movimentos
brasileiros, aquele dos pré-vestibulares populares. Foram os pré-vestibulares populares que
começaram a fazer o que se transformou no ProUni, constituindo a base social que
concretiza a demanda pelas cotas. Ou seja, foram os pré-vestibulares populares que
concretamente mostraram que, com políticas concretas de inclusão racial, a diversidade
pode começar enfim a constituir-se efetivamente, deixando de ser a retórica que encobre a
discriminação de cor. Essas políticas públicas formam a base sobre a qual o Brasil pode se
transformar em uma referência global extremamente positiva.
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A difusão das ações afirmativas é fruto de uma luta histórica e uma extraordinária
mobilização social que produziu uma efervescência de debates em ambientes políticos e
acadêmicos em todas as regiões do país. A colocação das cotas nas pautas de votações das
Universidades brasileiras implicou mobilização, pressão, articulação e produção intelectual
de idéias, argumentos, modelos e propostas de como promover a igualdade étnica e racial
no ensino superior, em uma intensidade sem paralelo em nenhuma década passada da
história do Brasil.
Foi a essa luta histórica, protagonizada pelo movimento negro, que levou o Estado
Brasileiro a elaborar o “Plano Nacional de Combate ao Racismo e a Intolerância”, a assim
denominada “Carta do Rio”, que foi o resultado de um debate amplo, interracial e interétnico,
no processo preparatório para a III Conferência Mundial Contra o Racismo ocorrida
em Durban, na África do Sul, conduzido ao longo dos anos de 2000 e 2001, e que
determinou “que sejam implementadas ações afirmativas na área da educação como
instrumento fundamental de promoção da igualdade” e, mais especificamente, “que sejam
estabelecidas cotas para a população negra, nas universidades”.
Entre as Universidades, as primeiras a instituírem cotas para negros, em 2002,
foram a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do
Norte Fluminense (UENF), não por iniciativa própria, mas por meio de uma lei aprovada
em 2001 na Assembléia Estadual do Rio de Janeiro. Mais uma vez foi decisivo o trabalho
do movimento negro, dos pré-vestibulares e outros setores, não apenas na proposição da
Lei, mas também em todas as audiências públicas e debates internos que aconteceram nas
duas Universidades. Ainda em 2002, a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) adotou
cotas na graduação e na pós-graduação.
A partir daí outras universidades passaram a adotar cotas. Em 2003, a Universidade
de Brasília tornou-se a primeira instituição federal de ensino superior a aprovar cotas para
negros e a primeira também a tomar essa decisão exclusivamente com base na autonomia
acadêmica, a partir de uma proposta apresentada em 1999.
Na recente história da luta pela inclusão racial, inúmeras outras iniciativas já
demonstraram a pertinência e a acolhida pela sociedade organizada de idéias e projetos que
propõem algum tipo de inclusão com recorte de raça. A repercussão positiva de tais
iniciativas mostra que elas se adequam perfeitamente aos ideais de justiça partilhados por
amplos setores da sociedade brasileira que vêem nas ações afirmativas uma forma legítima
de democratizar o acesso de camadas excluídas da população a um tipo de bem (o ensino
superior) que historicamente esteve sempre ao alcance de poucos. Os poucos que não
coincidentemente partilham um mesmo nível de renda e uma mesma cor.
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Legitimadas socialmente e academicamente, e demonstrando a justiça, a pertinência,
as vantagens de tal sistema, outras propostas de implementação de ações afirmativas
surgiram ao longo de todo o território nacional. Ainda em 2003, a Universidade Federal do
Paraná (UFPR) e a Universidade Federal de Alagoas (UFAL) aprovaram as cotas. Logo em
2004 a Universidade Federal da Bahia (UFBA) também aderiu ao sistema.
Começando então com uma meia dúzia de universidades com cotas em 2003, em
2007 já tínhamos mais de cinqüenta instituições de ensino superior, entre universidades
federais, estaduais, autarquias municipais e CEFETs estabeleceram alguma modalidade ou
mecanismos de acesso que direcionava uma porcentagem mínima de suas vagas a
candidatos negros e indígenas.
Dessa forma, contrariando todas as irresponsáveis previsões apocalípticas sobre
uma suposta guerra racial, ou sobre a racialização de todos os aspectos da vida nacional, os
projetos de implementação de ações afirmativas e outras formas de acesso da população
negra ao ensino superior, apenas ganharam em legitimidade social.
Nesse sentido, o ano de 2007 foi especialmente importante para a consolidação das
ações afirmativas como uma alternativa possível no repertório das políticas públicas para a
democratização do ensino público no Brasil. Diversas universidades no Sul do país, em um
espaço de tempo de apenas poucos meses aprovaram sistemas cotas, contrariando um certo
estereótipo de que os estados do Sul seriam especialmente racistas. Na verdade, como
haveremos de enfatizar, a maior reação às cotas se dá no triângulo Rio de Janeiro-São
Paulo-Minas Gerais.
Eis um quadro atualizado da realidade dos sistemas de inclusão por ações
afirmativas no ensino superior brasileiro, todos criados apenas nesta primeira década do
presente século.


MAPA DAS INSTITUIÇÕES ESTADUAIS E MUNICIPAIS DE ENSINO
SUPERIOR COM AÇÕES AFIRMATIVAS
INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR COM AÇÃO AFIRMATIVA:
COTAS/NÚMERO DE VAGAS PARA INDÍGENAS
1) Universidade Federal do Pará/PA (50% para candidatos de escolas públicas, destes 40%
para pretos e pardos)
2) Universidade Federal de Roraima/RR (60 vagas em licenciatura indígena para indígenas)
3) Universidade Federal de Tocantins/TO (5% para indígenas)
6
4) Universidade de Brasília/DF (20% para negros e 10 vagas para indígenas)
5) Escola Superior de Ciências da Saúde/DF (40% para candidatos de escolas públicas)
6) Universidade Federal da Grande Dourados/MS (60 vagas em licenciatura indígena para
indígenas)
7) Universidade Federal do Maranhão/MA (25% para candidatos de escolas públicas, 25%
para negros, 1 vaga para indígena e 1 vaga para deficiente físico em cada curso)
8) Universidade Federal do Piauí/PI (5% para candidatos de escolas públicas)
9) Universidade Federal de Alagoas/AL (20% para negros de escolas públicas, e destes
60% para mulheres)
10) Universidade Federal da Bahia/BA (45% para candidatos de ensino médio público,
sendo 2% p/ indígenas, 37,5% para negros e 5,5% para outros candidatos de ensino médio
público)
11) Universidade Federal do Recôncavo Baiano/BA (45% para candidatos de ensino médio
público, sendo 2% p/ indígenas, 37,5% para negros e 5,5% para outros candidatos de ensino
médio público)
12) Universidade Federal de Juiz de Fora/MG (50% para candidatos de escolas públicas, e
destes 25% para negros)
13) Universidade Federal do Espírito Santo/ES (40% para candidatos que cursaram quatro
séries do ensino fundamental e todo o ensino médio em escolas públicas e ter renda familiar
até 07 salários mínimos)
14) Universidade Federal de São Paulo/SP (10% prioritariamente para negros de ensino
médio público, se não houver preenchimento, completar com outros candidatos de escolas
públicas)
15) Universidade Federal de São Carlos/SP (50% para candidatos do ensino médio público,
sendo 35 % destes para negros e 01 vaga não cumulativa por curso p/ indígenas,
progressivamente)
16) Universidade Federal do ABC/SP (50% para candidatos de escolas públicas, destas
27% para negros e 0,4% p/ indígenas)
17) Universidade Federal do Paraná/PR (20% para negros, 20% para candidatos de
educação básica pública, 10 vagas para indígenas)
18) Universidade Federal Tecnológica do Paraná/PR (50% para candidatos de escolas
públicas)
7
19) Universidade Federal de Santa Catarina/SC (20% para candidatos de educação básica
pública, 10% para negros, prioritariamente de educação básica pública, e 6 vagas para
indígenas)
20) Universidade Federal do Rio Grande do Sul/RS (30% para candidatos de escolas
públicas, sendo metade para negros)
21) Universidade Federal de Santa Maria/RS (em 2008, 20% para candidatos de escolas
públicas, 10% para negros, 5% para deficientes físicos e 5 vagas para indígenas)
22) Universidade Federal do Pampa/RS (em 2008, 20% para candidatos de escolas
públicas, 10% para negros, 5% para deficientes físicos e 5 vagas para indígenas)
- BÔNUS:
23) Universidade Federal de Pernambuco/PE (10% a mais na nota, para candidatos de
escolas públicas)
24) Universidade Federal Rural de Pernambuco/PE (10% a mais na nota, para candidatos
de escolas públicas no interior de PE)
25) Universidade Federal do Rio Grande do Norte/RN (percentuais a mais para candidatos
de escolas públicas, variáveis por curso)
26) Universidade Federal Fluminense/RJ (10% a mais na nota para candidatos de escolas
públicas com exceção de colégios de aplicação, colégios federais, universitários e militares;
reserva de 20% das vagas de licenciaturas em matemática, física ou química para
professores da rede pública)
Em discussão: Universidade Federal de Uberlândia/MG, Universidade Federal de Mato
Grosso/MT, Universidade Federal do Ceará/CE, Universidade Federal de Roraima/RR,
Universidade Federal da Paraíba/PB, Universidade Federal de Goiás/GO, Universidade
Federal do Rio de Janeiro/RJ, Universidade Federal de Ouro Preto/MG, Universidade
Federal de Grande Dourados/MS, Universidade Federal de Sergipe/SE, Universidade
Federal de Minas Gerais/MG
INSTITUIÇÕES ESTADUAIS E MUNICIPAIS DE ENSINO SUPERIOR COM AÇÕES
AFIRMATIVAS
COTAS/NÚMERO DE VAGAS (indígenas)
27) Universidade Estadual do Amazonas/AM (80% para estudantes do Amazonas que não
tenham curso superior completo nem o estejam cursando em instituição pública de ensino,
destes, 60% para candidatos do ensino médio público)
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28) Universidade Estadual do Mato Grosso/MT (25% para negros de escolas públicas ou
privadas com bolsa)
29) Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/MS (20% para negros, 10% para
indígenas)
30) Universidade Estadual de Goiás/GO (20% para negros, 20% para candidatos de escolas
públicas, 5% para deficientes ou indígenas)
31) Fundação de Ensino Superior de Goiatuba/GO (10% para candidatos de escolas
públicas, 10% para negros e 2% para indígenas e portadores de deficiência)
32) Universidade Estadual de Pernambuco/PE (20% para candidatos de escolas públicas,
fora escolas técnicas federais e militares)
33) Universidade Estadual da Bahia/BA (40% para afrodescendentes do ensino médio
público)
34) Universidade Estadual de Feira de Santana/BA (50% para candidatos com ensino
médio e pelo menos dois anos do ensino fundamental (5ª a 8ª série) em escolas públicas e,
dessas, 80% serão ocupadas por negros)
35) Universidade Estadual de Santa Cruz/BA (50% para candidatos de ensino médio
público, dessas 75% para negros, 02 vagas para índios ou quilombolas em cada curso)
36) Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia/BA (50% para candidatos de escolas
públicas, destes, 60% para negros e 5% para índios e seus descendentes)
37) Universidade Estadual de Minas Gerais/MG (20% para afrodescendentes, 20% para
candidatos de escolas públicas, 5% deficientes físicos e indígenas, todos com baixa renda)
38) Universidade Estadual de Montes Claros/MG (20% para afrodescendentes, 20% para
candidatos de escolas públicas, 5% deficientes físicos e indígenas, todos com baixa renda)
39) Universidade Estadual do Rio de Janeiro/RJ (20% para escola pública, 20% para negros
e 5% deficientes físicos ou indígenas ou filhos de policiais mortos em serviço – até R$ 630
per capita)
40) Universidade Estadual do Norte Fluminense/RJ (20% para escola pública, 20% para
negros e 5% deficientes físicos ou indígenas ou filhos de policiais mortos em serviço – até
R$ 630 per capita)
41) Centro Universitário Estadual da Zona Oeste/RJ (20% para escola pública, 20% para
negros e 5% deficientes físicos ou indígenas ou filhos de policiais mortos em serviço – até
R$ 630 per capita)
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42) Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro/RJ (20% para escola pública,
20% para negros e 5% deficientes físicos ou indígenas ou filhos de policiais mortos em
serviço – até R$ 630 per capita)
43) Centro Universitário de Franca/SP (20% para negros, 5% para candidatos de escolas
públicas e 5% para deficientes)
44) Universidade Estadual de Londrina/PR (até 40% para candidatos de escolas públicas,
destas até metade para negros, dependendo da demanda, 6 vagas para indígenas)
45) Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR (10% para candidatos oriundos de escolas
públicas e 5% para candidatos negros de escolas públicas e 6 vagas para indígenas
integrantes das tribos paranaenses)
46) Universidade Estadual de Maringá/PR (seis vagas para indígenas integrantes das tribos
paranaenses)
47) Universidade Estadual do Oeste do Paraná/PR (idem)
48) Universidade Estadual do Paraná/PR (idem)
49) Universidade Estadual do Norte do Paraná/PR (idem)
50) Universidade Estadual do Centro-Oeste/PR (idem)
51) Escola de Música e Belas Artes do Paraná/PR (idem)
52) Faculdade de Artes do Paraná/PR (idem)
53) Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana/PR (idem)
54) Fundação Faculdade Luiz Meneghel/PR (idem)
55) Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão/PR (idem)
56) Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Cornélio Procópio/PR (idem)
57) Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho/PR (idem)
58) Faculdade Estadual de Educação Física de Jacarezinho/PR (idem)
59) Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro de Jacarezinho/PR (idem)
60) Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí/PR (idem)
61) Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Paranaguá/PR (idem)
62) Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória/PR (idem)
63) Centro Universitário de São José/SC (70% para candidatos que cursaram a 2ª e 3ª séries
do ensino médio público de São José/SC)
10
64) Faculdade Municipal de Palhoça/SC (80% para residentes em Palhoça/SC e que
cursaram a 3ª série do ensino médio em escola pública)
65) Universidade Estadual do Rio Grande do Sul/RS (50% para candidatos de baixa renda –
renda familiar per capita de até R$ 410, 10% para deficientes físicos)
Bônus
66) Universidade Estadual de Campinas/SP (de uma média padronizada de 500 pontos,
adiciona 30 pontos para candidatos de escolas públicas e 40 pontos se for também
preto/pardo/indígena)
67) Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto/SP (de uma média padronizada de 500
pontos, adiciona 30 pontos para candidatos de escolas públicas e 40 pontos se for também
preto/pardo/indígena)
68) Universidade de São Paulo/SP (3% a mais na nota para candidatos de ensino médio
público)
69) Faculdade de Tecnologia de São Paulo/SP (3% a mais na nota para negros, 10% a mais
para candidatos do ensino médio público e 13% a mais para negros do ensino médio
público)
DISCUTEM: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/BA, Universidade do Estado
de Santa Catarina/SC, Universidade Estadual do Pará/PA
55 Instituições de Ensino Superior Público adotam Ações Afirmativas Étnico-raciais.
42 IES públicas adotam cotas
33 IES públicas adotam cotas étnico-raciais
TOTAL: 69 Instituições de Ensino Superior Público adotam Ações Afirmativas
O que esse quadro pressupõe é uma extraordinária mobilização e uma efervescência
de debates ocorridos nos ambientes universitários em todas as regiões do país. Os projetos
elaborados por estas instituições implicaram mobilização, pressão, articulação e produção
intelectual de idéias, argumentos, modelos e proposições sobre como promover a igualdade
étnica e racial no ensino superior, em uma intensidade sem paralelo em nenhuma década
passada da história do Brasil.
A luta pelas cotas é uma explosão de criatividade e seus resultados positivos para a
produção de conhecimento e ampliação dos saberes científicos e artísticos estão apenas no
começo. Junto com os novos estudantes negros e indígenas que hoje ingressam nas
universidades surgem novos temas de pesquisa, demandas por novos currículos e também
demandas por mais professores negros e indígenas. Afinal, não somente os saberes
11
africanos, afro-brasileiros e indígenas foram excluídos das nossas universidades que sempre
reproduziram apenas os saberes europeus em uma relação claramente neo-colonial, mas o
conjunto dos docentes e pesquisadores sempre tem sido majoritariamente branco.
A porcentagem média dos docentes das universidades públicas mais importantes do
país raramente ultrapassa 1%. Assim, o grande movimento atual pelas cotas, que por
enquanto cresce como uma frente fragmentada e articulada de autônomos em cada campus
de cada cidade e estado do país conduz inevitavelmente a uma meta geral, já vislumbrada:
que as medidas de inclusão de negros e índios possam ocorrer em todas as universidades
públicas.


Os diferentes projetos de inclusão elaborados pelas várias universidades têm se
caracterizado pela variedade de modelos, baseados em reflexões locais, e levando em
consideração as necessidades de atendimento e as formações sociais particulares de cada
região. A diversidade e a criatividade das propostas são conseqüências claras do
envolvimento tanto dos setores acadêmicos com a comunidade nas quais elas estão
inseridas, assim como do diálogo inter-racial que lhes dão origem e estão na base da
legitimidade que as tornaram possíveis. Tais projetos atestam a motivação de vários setores
da sociedade em tentar encontrar soluções adaptadas à realidade da discriminação, do
racismo e da exclusão locais.
O empenho e as dificuldades que enfrentaram as dezenas de Comissões e Grupos de
Trabalho que foram criadas nas comunidades universitárias de Norte a Sul do país nos
últimos anos para a implementação dos projetos de ação afirmativa, nos remetem às
diversas associações e confederações abolicionistas que surgiram no Brasil ao longo da
década de 1880. Em ambos os casos, trata-se de um tipo de aliança marcada pela
diversidade étnica, política e social que concentra esforços para a viabilização de projetos
que visam não a desagregação da sociedade brasileira ou à guerra racial (como defendem
nossos opositores do presente assim como os opositores da Abolição da escravatura no
passado) mas para a inclusão de um maior número de pessoas no campo de alcance dos
recursos que lhes permitam desfrutar de todas as possibilidades dos direitos de cidadania.
O movimento atual pelas cotas, de dimensão verdadeiramente nacional, já marca um
episódio igualmente importante na luta por justiça social na história do Brasil
Independente. Guardadas as devidas proporções (pois trata-se de um movimento
absolutamente pacífico e baseado estritamente no convencimento através do debate racional
nos espaços públicos), é equivalente, em entusiasmo e energia, ao movimento de
consolidação da Constituição na Índia, aos movimentos pelos direitos civis nos Estados
Unidos e ao movimento de Verdade e Reconciliação que mobilizou a África do Sul com a
queda do apartheid .
12
Atualmente, o país conta com mais de 20 mil cotistas negros cursando a graduação
em universidades brasileiras de todas as regiões. Paralelamente a esse grande movimento
de inclusão racial nas universidades públicas, funciona desde 2005 o ProUni, que abre as
portas das universidades para jovens de baixa renda, com uma porcentagem, entre eles, de
negros, através de um sistema de bolsas do Ministério da Educação. Somente em três anos
o ProUni já alocou 440.000 bolsas e conta com 310.000 alunos, assim distribuídos segundo
a classificação do IBGE:
Brancos 142.275
Pardos 98.494
Negros 39.128
Amarelos 6.318
Indígenas 903
Não-informados 22.961
Se juntarmos os dois movimentos de abertura do ensino superior para brancos de
baixa renda e para os não-brancos, as cotas nas universidades públicas e o ProUni em
apenas cinco anos serão capazes de colocar quase meio milhão de estudantes negros que
ingressarão no mercado ou na pós-graduação, levando consigo a esperança pessoal e
familiar, num acontecimento de proporções monumentais, sem paralelo qualquer na história
da sociedade brasileira.

RESSENTIMENTO E NEGATIVIDADE: AS REAÇÕES CONTRA AS POLÍTICAS
DE COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES

1. Os 113 Anticotas
A hipocrisia daqueles que pretenderam que o Brasil se transformasse – do dia para a
noite – de último grande pais escravocrata em exemplo mundial de harmonia racial e dos
que hoje, na mesma linha, declaram que séculos de escravidão não deixaram nenhuma
herança “racista” em nosso País se desenvolve a partir de uma série de falácias históricas,
sociológicas e políticas. No plano histórico, escamoteia-se o duro e dramático trabalho e as
lutas do movimento negro e outros movimentos anti-racistas para construir um novo e
material horizonte de igualdade racial. Ignoram-se até as dificuldades que a própria retórica
da harmonia racial encontrou para afirmar-se. No nível sociológico e antropológico, usam-
13
se as falácias do discurso do racismo biológico para negar a existência do racismo ao invés
de reforçar a luta contra essa monstruosidade que a racionalidade moderna produziu: a
existência de movimentos anti-racistas e de leis de repressão da discriminação racial não se
baseia no reconhecimento da existência das raças, mas na necessidade de combater as
discriminações geradas por esse pensamento que se pretende cientifico. Enfim, no nível
político, eles cometem uma tríplice impostura: i) dizem que no Brasil apenas existe uma
questão social, ou seja, ignoram a correlação sistemática que todos os estudos estatísticos
indicam entre linhas de cor e curvas da pobreza, bem como que as cotas promovem também
os outros segmentos de população discriminados pelo atual sistema de acesso ao ensino
superior; ii) afirmam o mérito como único critério republicano, o que é duplamente falso:
porque uma sociedade democrática sabe que o mérito deve ser um ponto de chegada e não
um ponto de partida e é exatamente nessa medida que a democracia será sempre mais
estável e mais próspera; porque toda política de desenvolvimento do conhecimento implica
em sistemas de cotas (bolsas!) justamente destinadas a promover a excelência pelo subsídio
a determinados segmentos de população; iii) reivindicam o pacto republicano, mas ignoram
que tal pacto não é algo dado, mas um algo que precisamos construir para avançarmos nas
conquistas democráticas.
Neste ano fomos novamente surpreendidos, no dia 28 de abril passado, com mais
um Manifesto intitulado “113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Cotas Raciais”, entregue a
este Supremo Tribunal Federal em apoio à Ação de Inconstitucionalidade (ADI) impetrada
pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) pelo Partido
Democratas. O teor do manifesto amplia pontos já tratados ligeiramente em um Manifesto
anterior, intitulado “Todos são Iguais na República Democrática”, entregue ao Congresso
Nacional no dia 30 de maio de 2006 pelo mesmo grupo de pessoas, naquela vez insurgindose
contra o PL da Lei de Cotas e contra o Estatuto da Igualdade Racial. Mas quem são, e a
quem representam os 113 que exigem a expulsão de 440 mil estudantes negros e de baixa
renda das universidades brasileiras?
Apesar de se apresentarem como “intelectuais da sociedade civil, sindicalistas,
empresários e ativistas dos movimentos negros e outros movimentos sociais”, eles são
basicamente acadêmicos: 80 deles são professores universitários e pesquisadores; desses
80, apenas um é negro. Representam, portanto, uma pequena parte da elite acadêmica
branca centrada no eixo Rio de Janeiro-São Paulo que solicitam o retorno ao estado de
exclusão do racismo institucional que imperava indiscriminadamente nas universidades
brasileiras, e a manutenção dos índices de presença da população negra que existia há 10
anos atrás. Que o patronato das escolas particulares, que lucram com os padrões de
exclusão educacional existentes façam tal exigência, é perfeitamente compreensível. Que
professores universitários, majoritariamente de instituições públicas de ensino superior,
14
sindicalistas e ativistas do movimento negro partilhem exatamente esse mesmo projeto de
aumento da desigualdade, é algo difícil de se justificar à opinião pública. No caso
específico desses acadêmicos, há uma dimensão ético-política grave na sua postura. Por um
lado, recebem verbas importantes para pesquisa das instituições públicas de fomento; e por
outro, aliam-se as instituições privadas que nem sequer participam do esforço pela
expansão e democratização do acesso ao ensino superior brasileiro.
Outro ponto importante é que os 113 se definem como “intelectuais da sociedade
civil, sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos negros e outros movimentos
sociais”. Significativamente, não incluem o segmento dos estudantes. Um grupo de 80
educadores que se aliaram a sindicalistas, empresários e ativistas, mas não conseguiram
estabelecer nenhuma parceria com os estudantes! Cometeram um lapso, de fato, porque há
uma estudante entre os 113. Aqui fala o inconsciente político desse grupo.
É preciso saber, no entanto, o que essa solicitação significa. Nem mesmo nos anos
mais duros as universidades da África do Sul eram tão segregadas como as universidades
brasileiras no período de sua assim chamada tradição republicana igualitária a que os
opositores das ações afirmativas glorificam.
Mas a representatividade desse grupo de professores e pesquisadores é menor do
que se imagina. Eles não falam nem mesmo pela maioria dos professores das instituições de
onde se originam. Por outro lado, não resta dúvida de que este grupo não representa nem
minimamente a comunidade negra brasileira. As associações civis, culturais e religiosas
negras, os vários setores do movimento negro organizado, os pesquisadores, docentes e
estudantes negros, todos em sua esmagadora maioria assinam o nosso manifesto.
A posição que sustentamos no presente Manifesto tem como premissa a valorização
da diversidade racial e social na produção e na disseminação das idéias. Este é um dos
motivos que justifica a defesa das cotas e de outras modalidades de ação afirmativa. O que
questionamos é a supremacia de pessoas brancas no corpo discente e, mais ainda, docente
das universidades brasileiras. Sendo assim, não nos é possível deixar de analisar o
Manifesto ao qual nos opomos nos termos de sua composição. Seus signatários, que aderem
ao projeto educacional defendido pela instituição representativa das escolas particulares, as
quais tentam agora barrar os projetos de inclusão racial e social em andamento, reproduzem
o mesmo padrão de exclusão racial existente nas universidades brasileiras antes das cotas:
90% de brancos e 10% de não-brancos.
Os paralelos entre o contexto do abolicionismo e o da luta pelas ações afirmativas
são por demais sugestivos para serem ignorados. Entre esses dois diferentes contextos,
reproduz-se a mesma desigualdade no que se refere à distribuição da economia, da política,
do poder acadêmico e do midiático. Em 1885, por exemplo, quando caiu o gabinete Dantas
15
e com ele o projeto mais favorável ao abolicionismo, Prudente de Morais, com sua
tendência mais de centro, propôs que as províncias mais progressistas avançassem a seu
modo no caminho da abolição sem esperar por São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais,
onde se concentravam os grupos escravocratas mais poderosos, e que controlavam os dois
gabinetes conservadores pós-Dantas, a saber, Saraiva e Cotegipe.
A base de origem dos signatários também obedece à mesma lógica de concentração
do poder. Praticamente um terço do total de assinantes vem da UFRJ (16), USP (11) e
Unicamp (5), com adesões importantes da UFMG. Grandes expoentes dessas instituições,
sobretudo das áreas de Ciências Sociais e Humanidades, têm se mobilizado intensamente
na mídia, como se representassem a posição oficial dessas universidades. Em certo sentido,
as imagens públicas da UFRJ, da USP, da Unicamp e da UFMG foram seqüestradas por um
pequeno e muito influente grupo de professores a ponto de elas simbolizarem a resistência
às cotas, ficando silenciada até agora uma corrente pró-cotas que existe e que também se
mobiliza no interior dessas importantes universidades.
Significativamente, a maior reação aos projetos de inclusão racial e social iniciado
em 1999, está concentrada ainda hoje nas universidades mais importantes dos mesmos três
estados onde os mais poderosos escravocratas do país no século XIX bradaram
furiosamente contra a Lei dos Sexagenários, a Lei do Ventre Livre e, mais ainda, contra a
Abolição. O poder acadêmico que se opõe aos projetos de inclusão, com enorme influência
no MEC, no CNPq, na CAPES, no Executivo como um todo e na mídia hegemônica, está
quase que totalmente concentrado nos Estados do Sudeste. Em 8 anos de lutas pelas cotas
vemos a repetição do padrão conservador das elites dessa região, enquanto as demais têm
aderido paulatinamente aos projetos de inclusão racial nas universidades.
2. Manipulando o sonho de Martin Luther King.
Como no Manifesto de 2006, os anticotas retomam agora o famoso discurso de
Martin Luther King, “eu tive um sonho”. O que não dizem é que King sempre calçou o seu
sonho universalista na necessidade de reparações e políticas compensatórias, inclusive de
cotas. Três anos antes de pronunciar o discurso do sonho, King havia visitado a Índia a
convite pessoal de Nehru, tendo oportunidade de conhecer de perto o sistema de cotas para
os dalits (intocáveis). Lembremos inclusive que a política de cotas foi inventada na Índia
por B. R. Ambedkar, um dos fundadores da nação indiana ao lado de Nehru e Gandhi.
Ambedkar foi o relator da Constituição indiana e introduziu cotas para os dalits diretamente
no texto constitucional. Em um texto publicado na revista Nation em 1961, King relatou
16
entusiasmado o modo com que o jovem Estado indiano enfrentou a sua dívida histórica
pelos séculos de racismo e discriminação pautando suas políticas públicas “não somente
pela igualdade, mas por tratamento especial de modo a permitir que as vítimas da
discriminação saltassem do atraso à competência. Assim, milhões de rúpias são reservadas
anualmente para bolsas, empréstimo e oportunidades especiais em emprego para os
intocáveis”. E concluiu, fascinado: “Quem dera nós aqui nos Estados Unidos tivéssemos
alcançado esse nível de moralidade” (Equality now: the President has the Power. Em: A
Testament of Hope).
Em outro momento, voltou a advogar medidas de ação afirmativa: “Uma sociedade
que tomou medidas especiais contra o negro por centenas de anos deve agora tomar
medidas especiais para ele, para prepará-lo para competir em bases iguais e justas” (Where
we go from here). E numa entrevista famosa para a revista Playboy no ano de sua morte,
King defendeu abertamente o sistema de cotas: “Se uma cidade tem 30% de população
negra, é lógico supor que os negros devem ter pelo menos 30% dos postos de trabalho de
todas as firmas; e trabalho em todas as categorias e não somente nas áreas mais humildes”.
3. O suposto fracasso das ações afirmativas nos Estados Unidos
Os 113 cidadãos citam apenas o livro de Thomas Sowell (escondendo as dúzias de
resenhas especializadas que demoliram as suas teses) para afirmar categoricamente que “as
cotas raciais nos Estados Unidos não contribuíram em nada para reduzir desigualdades, mas
aprofundaram o cisma racial que marca como ferro em brasa a sociedade norte-americana”.
Deixando de lado a retórica apocalíptica e inflamada do ferro em brasa, o fato é que Sowell
praticamente não apresenta dados, nem quantitativos nem etnográficos, para fundamentar
sua rejeição ideológica e política às ações afirmativas, onde quer que elas tenham sido
implementadas. Existe uma grande unanimidade na academia norte-americana que o estudo
mais sistemático, fidedigno e autorizado feito até hoje sobre o impacto das ações
afirmativas nos Estados Unidos foi aquele coordenado por William Bowen e Derek Bok,
ex-reitores, respectivamente, das Universidades Princeton e Harvard, conclui que o impacto
do sistema de ações afirmativas na promoção da igualdade racial foi extraordinário. Eis
uma síntese de suas conclusões, apresentada na obra de Joaquim Barbosa Gomes e que
deve ser mais divulgada no Brasil: “o percentual de negros formados em Universidades e
escolas profissionais pulou, entre 1960 e 1995, de 5.4% para 15.5% do total de graduados;
nas faculdades de Direito o progresso foi de 1% para 7.55%, ou seja, mais de 700%; em
Medicina, de 2.2% em 1964, para 8.1% em 1955; as empresas americanas em geral, que no
início dos anos 60 não tinham negros em cargos executivos [como no Brasil em 2000!],
atualmente abrigam 8% de negros nas posições de executivos e administradores; o número
17
total de agentes públicos eleitos negros (governadores, prefeito, delegados, juízes,
promotores, xerifes etc) passou, entre 1965 e 1995, de 280 para 2.987!” (Ações Afirmativas
e Princípio Constitucional da Igualdade, pág. 114).
4. O Conceito de Raça e as Políticas de Inclusão
A parte do documento dedicado à genética do documento é particularmente confusa
e inútil, além de contraditória para os seus próprios objetivos. Seu interesse é minar a
realidade da diferença entre os seres humanos pelo fenótipo e demonstrar a mestiçagem
genética que caracteriza a todos nós, da espécie homo sapiens sapiens. Com isso,
pretendem invalidar a possibilidade de que se adotem cotas para negros nas universidades
ao “demonstrar” que “cientificamente” não existem negros. Para tanto, passam a afirmar
que há negros com carga genética mais européia que africana – obviamente, uma carga
genética que não se revela na aparência física da pessoa. Querem retirar a mestiçagem do
seu lugar exteriorizante, isto é, do sentido comum de que uma pessoa é “mestiça” quando
sua aparência não é nem de um branco nem de um negro e colocá-la em um lugar invisível
de porcentagens de matéria genética somente detectado em laboratório.
“Apenas 5% da variação genômica humana ocorre entre as chamadas ‘raças’.
Ademais, somente 0.01% do genoma humano varia entre dois indivíduos. Em outras
palavras, toda a discussão racial gravita em torno de 0,0005% do genoma humano!” (Sérgio
Pena e Maria Cátira Bortoloni, “Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas
universitárias e demais ações afirmativas?” Estudos Avançados, v. 18, n. 50, 2004, p. 46).
E para que insistir em negar aquilo que ninguém afirma? A quem estão atacando
realmente? Não a nós, certamente, porque os defensores das cotas jamais falamos em raça
no sentido biológico do termo. Somos nós, que defendemos políticas públicas para a
comunidade negra, que enfatizamos ser o racismo brasileiro o resultado histórico de uma
discriminação dos brancos contra as pessoas de fenótipo africano. Foi essa representação
social negativa que influenciou a exclusão dos negros do ensino superior, daí a necessidade
de políticas compensatórias para as pessoas que são vítimas dessa mesma representação.
Paradoxalmente, eles também enunciam a inutilidade do argumento genético para o
conceito social e histórico de raça:
“Por outro lado, mesmo não tendo o conceito de raças pertinência biológica alguma,
ele continua a ser utilizado, qua construção social e cultural, como um instrumento de
exclusão e opressão. Independente dos clamores da genética moderna de que a cor do
indivíduo é estabelecida apenas por um punhado de genes totalmente desprovido de
18
influência sobre a inteligência, talento artístico ou habilidades sociais do indivíduo e talvez
a principal fonte de preconceito.” (id.ibid.)
Diante disso, é totalmente irrelevante invocar marcadores de DNA para concluir que
“em 2000, existiam cerca de 28 milhões de afrodescendentes entre os 90,6 milhões de
brasileiros que se declaravam “brancos” e que, entre os 76,4 milhões que se declaravam
“pardos” ou “pretos”, 20% não tinham ancestralidade africana.” Sabemos muito bem que
isto nada tem a ver com racismo. O jovem dentista negro que em 2005 foi confundido, em
São Paulo, com um assaltante, poderia estar nesse contingente genético de “falsos negros”
– o que de nada teria servido, pois a polícia o fuzilou devido a sua aparência de negro e não
por sua carga genética.
Não resta dúvida de que o texto lança mão da genética para descaracterizar a
identificação de uma pessoa como negra, e com isso questionar a possibilidade da
efetivação de uma reserva de cotas para negros. Contudo, o artigo citado no Manifesto de
autoria de Pena e Bortolini nos apresenta a seguinte afirmação:
“Tendo em vista a nova capacidade de se qualificar objetivamente, por meio de
estudos genômicos, o grau de ancestralidade africana de cada indivíduo, pode a genética
definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Prima
facie poderia parecer que sim, mas a nossa resposta é um enfático NÃO!” (id.ibid.)
Contraditoriamente, para seus interesses, retiram a importância da sua ciência para o
debate em que se envolveram. Mais surpreendente ainda é o que afirmam na página
seguinte do mesmo artigo:
“Não compete à genética fazer prescrições sociais. A definição sobre quem deve se
beneficiar [dessas medidas] deverá ser resolvida na esfera política, levando em conta a
história do país, o sofrimento de seus vários segmentos e análises de custo e benefício.” ( p.
47)
Se os próprios cientistas admitem que a genética não pode definir quem são os
beneficiados das cotas, para que gastar uma página do manifesto falando de DNA
mitocondrial? E como pode então o decano dos geneticistas anticotas, Francisco Salzano,
sustentar a seguinte proposta: “Nós estudamos o material genético de um grupo de negros e
pardos de Porto Alegre que apresentou mais de 50% de ancestralidade européia. A coisa é
mais complicada no Brasil. É claro que um estudante pode solicitar uma análise de seus
marcadores de DNA nos Estados Unidos e na Europa, já que ainda não se faz esse tipo de
exame aqui, e reivindicar uma vaga nas cotas” (O Globo, 10 de fevereiro de 2006).
Salzano parece não compreender o argumento dos seus próprios colegas, que pelo
menos admitem o efeito social do fenótipo. A conclusão é muito simples: não é a ciência
19
genética que fundamenta a rejeição às cotas, mas a posição ideológica e política dos
cientistas enquanto cidadãos.
Mais uma vez oscilantes entre falar do material genético e do fenótipo, os anticotas
requentam a matéria sensacionalista dos gêmeos que foram identificados diferentemente
pela comissão da UnB em 2007. Seu argumento é frágil, pois esconde o principal:
independentemente do equívoco da comissão em relação a dois candidatos, o fato é que
essa universidade já conta com 3000 estudantes cotistas negros em pleno processo de
formação e sem nenhuma crise constatada. Mesmo que tivesse acontecido uma dúzia de
incidentes como esse, ainda assim a porcentagem de erros das cotas na UnB como política
pública continuaria baixíssima.
Seus argumentos genéticos são invocados ainda na tentativa de desqualificar a
reivindicação por reparações aos descendentes de escravos no Brasil. Daí chegarem a
afirmar que “não é legítimo associar cores de pele a ancestralidades e que as operações de
identificação de “negros” com descendentes de escravos e com “afrodescendentes” são
meros exercícios da imaginação ideológica.” Não é legítimo em que sentido? Se uma
pessoa negra é vítima de racismo e se tivemos um passado de 350 anos de escravidão, é
mais que do que legítimo tentar eliminar a obra da escravidão, que é a discriminação
sofrida até hoje pelos que portam a aparência física dos africanos escravizados.

O BRASIL NO CONTEXTO MUNDIAL DAS REPARAÇÕES

O Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para a Eliminação do
Racismo trabalha justamente nesta direção: a escravidão é considerada, como o holocausto
judeu, um crime contra a humanidade imprescritível e por isso insta os países da Diáspora
Africana nas América e no Caribe a desenvolver políticas de ações afirmativas para os
descendentes de africanos escravizados – o Brasil, lembramos, foi o país que mais
escravizou africanos e foi o último a abolir a escravidão. Tratar aqueles afrodescendentes
brasileiros de “meros exercícios de imaginação ideológica” é, por um lado, um insulto à
memória dos escravos brasileiros e de seus descendentes atuais (como se não existisse
memória oral nas nossas milhares de comunidades negras). Mais ainda, demonstra o atraso
político, em pleno século XXI, quando se observa um esforço mundial por superar o
racismo, a escravidão, o colonialismo e o imperialismo que culminaram no século XIX.
Prestar conta do seu passado racista, colonialista e genocida diante dos escravizados e dos
povos indígenas originários é uma discussão política que atravessa atualmente os cinco
continentes, e esses 113 querem calar essa discussão no Brasil. Estados Unidos, Inglaterra,
Canadá, México, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Argentina, Nova Zelândia, Austrália,
20
Malásia, Índia, África do Sul, dentre tantos outros países, não estão “fabricando raças”, mas
enfrentando os seus racismos históricos.
A posição dos 113 é paralela à da elite conservadora que reage desesperadamente
para manter o poder que acumulou no período da escravidão, do colonialismo e das
republicas branqueadas ou excludentes construídas em um momento político ultrapassado e
que agora são obrigadas a enfrentar as demandas de uma agenda política que exige justiça
social, convivência multi-étnica e multi-racial, com divisão proporcional de poder e de
riqueza.
Como plataforma internacional, o Manifesto dos 113 isola o Brasil atual das forças
progressistas do mundo, como os Manifestos escravocratas isolaram o Brasil no século
XIX. A maior vergonha de sua posição é negar que a condição de branco signifique
vantagem na vida brasileira. Como não querem admitir os privilégios da brancura em um
país racista, invocam a ciência para decretar que “não existe raça”; logo, não existe raça
branca; logo, ninguém é branco. Felizmente, essa tergiversação cada vez convence menos;
tanto assim que as cotas para negros é uma realidade que cresce e conta com a aprovação
da maioria da população brasileira.
Argumentos barrocos e bizantinos tentam escamotear a realidade. E na medida em
que se apegam a esse universalismo vago que silencia os genocídios causados pelo
colonialismo e a escravidão, se esses 113 estivessem na Nova Zelândia, seriam contra as
políticas públicas para os Maoris; se estivessem na Austrália, se oporiam às Comissões do
Estado de reparação para os aborígenes; se estivessem no Canadá, reagiriam contra as
vagas especais para os Inuit no Congresso e nas universidades; se estivessem na Índia, não
aceitariam que o Estado desse nenhum apoio especial aos intocáveis. Enfim, seu perfil
político e ideológico é o da elite neocolonialista dos quatro cantos do mundo.
O Manifesto dos 113 termina com uma visão catastrófica das relações raciais que
mais parece um desejo dos assinantes, tal seu deslocamento da realidade: “leis raciais não
ameaçam uma ‘elite branca’, conforme esbravejam os racialistas, mas passam uma fronteira
brutal no meio da maioria absoluta dos brasileiros. Essa linha divisória atravessaria as salas
dos brasileiros. Essa linha divisória atravessaria as salas de aula das escolas públicas, os
ônibus que conduzem as pessoas ao trabalho, as ruas e as casas dos bairros pobres”.
Estamos aqui, nos limites do delírio. UnB, UERJ, UENF, UFPR, UFAL, UNEB, todas têm
cotas para negros há 5 anos e não há indícios de que essa linha divisória tenha se instalado.
A palavra que já se estabeleceu para designar os estudantes negros, cotistas é justamente
“cotistas”, e este termo técnico-burocrático é empregado quando se trata de discutir
aspectos concretos dessa política pública. Não há nenhuma nova “lei racial” operando
quando os cotistas e seus colegas brancos tomam ônibus ou caminham pelas ruas, a não ser
21
o racismo brutal cotidiano que todos bem conhecemos pelas páginas dos jornais e sobre a
qual podemos refletir a partir dos sucessivos mapas da Desigualdade confeccionados pelo
IPEA com base nos dados do IBGE.
Admitir alunos negros como cotistas não implica nenhuma “crença na raça” como
eles alegam (quantas vezes termos que repeti-lo?) e nem na fabricação de “raças oficiais”.
Chegam, além disso, a afirmar que o sistema de cotas “inocula na circulação sangüínea da
sociedade o veneno do racismo, com seu cortejo de rancor e ódio”. Aqui, querem nos
enganar como se esse veneno ainda não existisse na sociedade brasileira e que somente
agora está sendo introduzido pelo sistema de cotas. Em que evidências recentes brasileiras
se baseiam para defender uma perspectiva de convivência inter-racial tão negativa? Quem
está cheio de rancores e ódios? Os cotistas? Não temos notícia disso. Seus colegas brancos?
Até agora a convivência inter-racial nas universidades com cotas tem sido relativamente
tranqüila. A sociedade brasileira que majoritariamente aprova as cotas? Ou será a
imaginação ideológica dos 113?
Essa retórica da catástrofe é exatamente a mesma que circulava no Brasil
republicano na última década da escravidão quando crescia o movimento abolicionista. Em
um artigo famoso, publicado no dia 6 de agosto de 1888, no jornal Cidade do Rio, José do
Patrocínio respondia os escravistas que anunciavam caso a abolição ocorresse: seria o
fracasso da lavoura e todos os capitais se retrairiam. Patrocínio mostrou que as exportações
cresceram nos meses seguintes à abolição e a alfândega arrecadou mais que nos meses
equivalentes de 1887. Nas palavras do grande abolicionista: “Infelizmente, os escravistas
puseram e os fatos dispuseram. Todas as profecias de terror foram desmentidas.”
(Campanha Abolicionista, Fundação Biblioteca Nacional, 1996, p. 240.)

AS COTAS SÃO CONSTITUCIONAIS

A Constituição de 1988, com base no pluralismo, valor fundamental para o
surgimento e a preservação das sociedades democráticas, marca um significativo avanço
para a efetividade dos direitos dos brasileiros pertencentes a grupos tradicionalmente
excluídos. Por diversos de seus dispositivos, a Lei Maior rompe com o mito da democracia
racial, assegurando o direito à diferença, ao reconhecer e valorizar as especificidades
étnico-raciais, sociais, religiosas e culturais dos povos que compõem o Brasil.
Em relação à igualdade, nosso sistema constitucional, priorizando os direitos
fundamentais e a dignidade da pessoa humana, estabeleceu a isonomia não somente em
sentido formal, mas também em sentido material (art. 3º, inciso III). O constituinte,
ancorado nos princípios fundadores da República, reconheceu o profundo quadro de
22
injustiças que atrelam o país ao atraso e estabeleceu objetivos fundamentais a serem
alcançados pelo Estado por meio de ações que se consubstanciem em políticas públicas de
promoção da cidadania.
Atentemos ao que diz a doutrina mais abalizada: “A definição jurídica objetiva e
racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é
concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são
marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade (...). A ação
afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social
a que se acham sujeitas as minorias” (Carmem Lúcia Antunes Rocha, Ação Afirmativa- O
conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica, in Revista Trimestral de Direito
Público. n. 15:18).
No mesmo sentido: “Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como
um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou
voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem
nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no
passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens
fundamentais como a educação e o emprego” (Gomes, Joaquim Barbosa. In: Ação
Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001).
Por derradeiro temos ainda: "Não basta não discriminar. É preciso viabilizar – e
encontrar, na Carta da República, base para fazê-lo – as mesmas oportunidades. Há de terse
como página virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima
de tudo, afirmativa.E é necessário que essa seja a posição adotada pelos nossos
legisladores. [...]. A neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso; é
necessário fomentar-se o acesso à educação [...]. Deve-se reafirmar: toda e qualquer lei que
tenha por objetivo a concretude da Constituição Federal não pode ser acusada de
inconstitucionalidade" (Cf. Mello, Marco Aurélio. Óptica Constitucional – A igualdade e as
Ações Afirmativas. In: Revista latino americana de Estudos Constitucionais, v. 01, Belo
Horizonte Del Rey, 2003, p 11-20).
Essas ações, que são erigidas pelo próprio sistema normativo, para se tornarem
legítimas, devem estar revestidas na proporcionalidade. Nesse cenário, elementos como
sexo, raça, credo religioso, dentre outros, podem servir de base ao discrímen na esfera
normativa, desde que haja equivalência e equilíbrio entre a norma e seus fins. Por isso, o
legislador, ao criar as políticas de cotas, buscou dar efetividade aos objetivos estabelecidos
na própria Constituição, consagrando o conteúdo jurídico, democrático e também
afirmativo da igualdade.
23
Em relação ao princípio do mérito, devemos ressaltar que o mesmo vem sendo
apregoado pelos adversários das cotas como uma idéia abstrata e autônoma, desvinculada
de qualquer causalidade social, a flutuar num vácuo histórico. Essa idéia está a merecer
reformulação drástica e urgente. As universidades que adotaram cotas buscam levar em
consideração a história dos atores envolvidos na corrida imposta pelo vestibular. Tanto
assim é que estes certames vêm passando por reformulações, buscando levar em
consideração, como critérios plúrimos de ingresso na universidade, o mérito de trajetória,
ou seja, os dados históricos dos candidatos às vagas oferecidas pelas instituições de ensino
superior. Isso implica, em um primeiro momento, assimilar o caráter substantivo do
princípio da igualdade, para, a seguir, privilegiar o mérito objetivo. Ressalte-se ainda que
os estudantes promovidos pelas políticas de inclusão precisam alcançar os padrões
objetivos de avaliação estabelecidos pelas universidades. Nesse sentido é que as cotas estão
em perfeita sintonia com o mérito descrito no artigo 208 V da Constituição.
Não podemos perder de vista que o Brasil é signatário da Convenção Internacional
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Decreto nº 65.810 - de 8
de dezembro de 1969), a qual estabelece em seu artigo 4º: "Não serão consideradas
discriminações racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o
progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou indivíduos que necessitem da
proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo
ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não
conduzam, em conseqüência, á manutenção de direitos separados para diferentes grupos
raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos".
Também devemos ressaltar a importância do pioneirismo desta Corte ao adotar
administrativamente as políticas de cotas raciais através da Concorrência para contratação
de profissionais de serviços de jornalismo - 3/2001, pela qual 20% das vagas eram
destinadas aos negros.
Por esses fundamentos, entendemos que as cotas são perfeitamente constitucionais,
pois se afirmam numa postura capaz de realizar – política e juridicamente – o princípio do
pluralismo, informador da educação pelo nosso sistema constitucional, e assimilar o que
vem sendo preconizado pela comunidade jurídica, como se extrai das dezenas de decisões
judiciais favoráveis às políticas de cotas, gradualmente consolidadas nos Tribunais dos
Estados e Regiões onde existem universidades que implementaram essas políticas de
inclusão.
24

PELA IGUALDADE RACIAL PLENA E IRRESTRITA NO ENSINO SUPERIOR
BRASILEIRO

A luta pela igualdade racial e a justiça inclusiva no Brasil iniciou-se no mesmo dia
13 de maio de 1988. Ainda comemorando a abolição, as associações e os intelectuais
negros começaram a se mobilizar para recuperar a desvantagem que os escravos e seus
descendentes haviam acumulado ao longo de 350 anos de opressão e de resistência.
Encontramo-nos atualmente em um momento de encruzilhada dessa luta: por um lado, é
lícito dizer que estamos agora no melhor ano de todos já vividos pela comunidade
universitária afro-brasileira. Com todo o racismo e toda a exclusão hoje existente no ensino
superior, temos mais jovens negros e de baixa renda nas nossas universidades neste
semestre de 2008 do que tínhamos em 2007 e assim retrospectivamente.
Acreditamos ter apresentado argumentos sólidos em favor da justiça e da
constitucionalidade das políticas reparatórias de inclusão atualmente em curso. Mostramos
igualmente a fragilidade e a imprecisão dos argumentos da pequena elite acadêmica branca
que ainda reage a um processo histórico de proporções grandiosas. Sobre os 113
reacionários ao ProUni e às cotas, queremos enfatizar o seguinte: nada têm a propor a não
ser adiar para um futuro incerto – quem sabe para daqui a 120 anos – a possibilidade de
uma igualdade de oportunidades entre negros, brancos e indígenas no Brasil. Literalmente,
o caminho por eles apontado é um caminho regressivo. Seu horizonte é o 13 de maio de
1888: a promessa vazia e fria de uma igualdade que não existia e que não se cumpriu após
120 anos. Confiamos, contudo, que esta Corte rejeitará a debilidade argumentativa e o
atraso histórico embutidos nesta ADI.
A perspectiva, portanto, é de avançar cada vez mais na direção de um ano
acadêmico em que a proporção de estudantes negros nas nossas universidades públicas seja
equivalente à da sua porcentagem da população brasileira como um todo. Esperar e lutar
por essa equanimidade de acesso para negros, brancos e indígenas no ensino superior não é
nada mais que esperar por justiça social e racial. E o especial deste 13 de maio de 2008 é
que esta perspectiva de justiça está mais enraizada na juventude negra e pobre do nosso
país do que jamais esteve. Afinal, já são centenas de milhares de estudantes cursando neste
momento o ensino superior através do sistema de cotas e do ProUni.
25
CONCLUSÃO
Esse é o quadro, Senhores Ministros, que temos diante de nós. Está nas mãos de
Vossas Excelências não apenas o destino das centenas de milhares de estudantes que,
graças às políticas de inclusão, conseguiram o sonhado ingresso na universidade. Está nas
mãos de Vossas Excelências a decisão que possibilitará ou não a continuidade das medidas
que fizeram este país começar a ajustar contas com seu passado escravista e seu presente
discriminatório, rumo a um futuro sem injustiças e concretamente democrático. Para as
Vossas mãos se voltam os olhos de milhões de brasileiros cheios de esperança num Brasil
mais justo, mais solidário, que, com base nos princípios constitucionais, se afirma
materialmente contra desigualdades incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.
Uma vez superada essa reação ressentida dos que se opõem à inclusão racial e à
justiça social, crescerá a esperança e se intensificará ainda mais o presente movimento de
consolidação definitiva da igualdade racial no Brasil.
Brasília, 13 de maio de 2008.
120 anos de "abolição" da escravatura
Organizadores e redatores do manifesto:
Alexandre do Nascimento – PVNC-RJ
Carla Patrícia Frade Nogueira Lopes-juíza, Escola da Magistratura-DF
Carlos Alberto Medeiros
Carlos Henrique Romão de Siqueira-CEPPAC-UnB
Frei David Raimundo dos Santos-EDUCAFRO-SP
João Jorge Rodrigues-Olodum-BA
José Jorge de Carvalho-UnB
Marcelo Tragtenberg – UFSC
Renato Ferreira-PPCOR-RJ
Valter Roberto Silvério-UFSCAR


Alguns signatários:

- Augusto Boal - Artista, Professor e Diretor Artístico do Centro de Teatro do Oprimido - CTO/RJ.
- Bloco Afro Olodum
- Diretório Central Dos Estudantes da UFBA -Entidade Representativa Dos Estudantes da UFBA
- Fábio Konder Comparato – Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, doutor em direito da Universidade de Paris e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra.
- Lázaro Ramos – ator
- MSU - Movimento dos Sem-Universidade
- Muniz Sodré – Professor Titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
- MV BILL - cantor e produtor
- Norma Bengell - atriz e diretora
- Oscar Niemeyer – Arquiteto
- Paulo Betti – ator e diretor
- Taís Araújo - atriz
- Wagner Moura – ator
- Zezé Motta - atriz