sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Uma platéia salafra?


O teatro na forma como o conhecemos no ocidente, originou-se das grandes marchas carnavalescas em homenagem ao deus grego Dionísio.

Nessas ocasiões o povo acorria em massa e participava intensamente, rompendo com os padrões vigentes: num passe de mágica, eis que o despossuido estava investido do poder e da riqueza; o feio e rejeitado transformava-se em belo e querido; o fraco em rei e a devassa em vestal.

As ruas e os largos espaços públicos foram os templos primeiros dessa milenar arte popular.

Com o correr do tempo, novas necessidades delimitaram outros compromissos e o arranjo sucessivamente repactuado desafogava novas demandas.

A ruptura com as antigas origens ia conformando espaços mais restritos, até que o palco à italiana aprisionou o teatro entre quatro paredes.

A pujança e o vigor do Renascimento medieval deram origem à Commedia dell’art que, novamente reintroduziu no panorama teatral o caráter libertário do teatro: a improvisação, as ruas e praças públicas como espaços prioritários, a alegria intensa, a magia, a fantasia,...

Em raros momentos da história, atores e platéia conseguiram estabelecer uma relação bem resolvida.

Um ou outro, quando não os dois, quase sempre se mostram insatisfeitos, com as expectativas sempre por atender. E não me refiro simplesmente à satisfação emocional, a tornada visível com a vaia e o aplauso. E sim aquela mais profunda, que tem a ver com a essência da relação que se espera de um e outro: postura diante das grandes questões existenciais e políticas, visão de vida, compromissos sociais.

Este descompasso levou ao que, no teatro contemporâneo, os artistas e encenadores passaram a denominar descompromisso, alienação ou apatia da platéia.

E para qualificar a participação e fazer com que a platéia rompa com a passividade, os atores passaram a recorrer a modelos e artifícios inovadores, alternativos, que escapassem das práticas convencionais.

Antonin Artaud quando criou o Teatro Jarry, fez questão de estrear com um espetáculo de Max Robur, Gigogne. Na apresentação, o protagonista dirigia-se à platéia nos seguintes termos:

“Meus senhores, minhas senhoras, vocês não passam de uns salafrários!”

E Artaud se decepcionou com a reação do público, pois a Companhia se preparou para uma resposta instantânea, peremptória, em certo grau, violenta.

Nos dias que correm, é comum provocar o espectador para que ele abandone o estado de apatia, obliteração e indiferença ante os fatos que o espetáculo desvela.

Na realidade, os que lidam com o teatro jamais se conformaram com uma platéia cujo papel se limite a tão efêmera participação, à mera assistência bem comportada.

No Dadaísmo, movimento cultural que se originou em Zurique nos idos da 1ª guerra mundial, Tristan Tzara e Hugo Ball, dentre outros, preocuparam-se em sistematizar a idéia de uma “comunhão coletiva que abale a diferença entre poesia e teatro”, uma linguagem que agite e faça vibrar em lugar de apenas significar.

Enfurecido com as concepções reducionistas quando o texto dramático comprime ao invés de expandir o teatro, encarcerando-o inexoravelmente na literatura, Edward Gordon Graig protestava:

“... a arte do teatro nasceu do gesto, do movimento, da dança(...) o dançarino foi o pai do dramaturgo”. E rispidamente criticava os que escreviam para o teatro sem entender sua real dimensão: “nossos autores dramáticos são escritores de palavras”. No que conseguiu a cumplicidade de Artaud que condenava o teatro ocidental exatamente por viver aprisionado à ditadura despótica da palavra.

Estava evidente a diferença entre os escritores que simplesmente escreviam para teatro e os verdadeiros dramaturgos. E Áppia trata de esclarecer o descompasso:

“(...) quem diz dramaturgo diz também encenador. Seria um sacrilégio especializar as duas funções. Podemos então estabelecer que se o autor não acumula ambas, não será capaz nem de uma, nem de outra coisa, pois é na penetração recíproca que deve nascer a arte viva.”

O processo de Dada exigia uma reação diferente da platéia, uma reação viva, vigorosa, imprescindível ao processo, sem a qual a manifestação cultural não atingiria seu objetivo.

Hoje já não se apresenta estranha a idéia de que é necessário mexer com o espectador, incomodá-lo, faze-lo vibrar, pressentir, reagir aos fatos que se desenrolam diante dele, abjurando a indiferença.

No Dadaísmo a procura era pela comunhão coletiva, uma sinergia que reduzisse a pó a diferença entre texto e teatro, palco e platéia.

A busca por uma maior interação entre platéia e palco levou a uma profusão de caminhos, propostas, concepções, escolas, movimentos...

Artaud, por exemplo, perseguiu um espetáculo multifacetário, circular, capaz de pulverizar os dois mundos fechados onde se escondem palco e platéia, “um espetáculo que espalhe suas irradiações visuais e sonoras sobre a massa de espectadores”.

Mas foi Adolphe Appia um dos primeiros a insurgir, exigindo a supressão dos espaços entre artistas e platéia.

Appia chegou a desejar o desaparecimento do público, conclamando os espectadores a tornarem-se atores, apregoando uma arte dramática com ou sem espectadores.

Num diálogo de Mama de Tirésias, estreado em 1917, Guillaume Apollinaire define esta concepção cênica e este teatro que se buscava:

“Aqui tentamos infundir um espírito novo ao teatro
Uma alegria, uma volúpia, uma virtude
Para substituir esse pessimismo velho de mais de um século
O que é bem antigo para uma coisa tão aborrecida
A peça foi feita para um teatro antigo
Pois não nos teriam construído um teatro novo
Um teatro redondo com dois palcos
Um no centro, o outro formando como que um anel
Em redor dos espectadores e que permitirá
A grande apresentação de nossa arte moderna
Casando frequentemente, sem ligação aparente, como na vida
Os sons, os gestos, as cores, os gritos, os ruídos
A música, a dança, a acrobacia, a poesia, a pintura,
Os coros, as ações e os cenários múltiplos
Vocês encontrarão aqui ações
Que se juntam ao drama principal e o ornamentam
As mudanças de tom, do patético ao burlesco
E o uso racional das inverossimilhanças
E de atores, coletivos ou não
Que não são forçosamente extraídos da humanidade
Mas de todo o universo
Pois o teatro não deve ser uma arte enganosa”.


Nesta desesperada busca pelo teatro pretendido, livre de peais e entraves, os caminhos trilhados não foram poucos, muitos levando a contextos contrários aos desejados.

Vsevolod Meyerhold (1874-1940)

Enquanto Artaud se envereda pelo teatro metafísico e mágico, Piscator, Reinhardt, Stanislavski, Meyerhold e Brecht desenvolvem o teatro político.

Stanislavski registrou em suas recordações como Graig montou Hamlet em Moscou:

“ Graig não queria entreatos e cortinas. Os telões devem ser uma continuidade arquitetônica da platéia (...). A platéia e o palco não se distinguem um do outro e encontramo-nos transportados para um outro mundo”.

Uma nova relação entre platéia e artistas é uma busca que remete às origens do teatro. Nada tem de novo. E jamais chegará a termo. Sempre estará por fazer, por construir. E é importante que seja assim. O desencontro entre o artista e sua platéia (e vice versa), o milenar descompasso entre um e outro é, na realidade, mais um dos mistérios a garantir a perpetuação desta milenar manifestação artística. Porque onde o conflito não radicaliza, o teatro perde e se liquefaz.

Antônio Carlos dos Santos é dramaturgo, criador da metodologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br


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