sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

LITERATURA - Shakespeare e a tragédia humana

 


THE OBSERVER: O perigo iminente sempre foi a fonte do grande drama explorado em suas peças   


Em maio de 2020, Robert De Niro, em conversa no programa Newsnight, da BBC TV, parecia incapaz de descrever a política norte-americana. Finalmente, ele exclamou: “É como Shakespeare, a coisa toda”, para resumir sua visão da crise. “Tão shakespeariano”, uma abreviatura cultural não verificada, tornou-se agora uma certeza estranhamente reconfortante que diz: “Você não está sozinho”. Para alguns leitores contemporâneos, as obras coletadas no First Folio de Shakespeare realmente formam um “livro da vida”.

Shakespeare deleita-se com o presente dramático. Ao menos três de suas peças começam com “Agora”. Ele sempre enfrentará as questões mais avassaladoras e virá em nosso socorro sob muitos disfarces, mas a iminência é a sua posição-padrão. Isso é elisabetano: a era de Shakespeare vivia no “agora”, do nascer ao pôr do sol. “A prontidão é tudo”, diz Hamlet. Tudo ou nada é um desafio que o dramaturgo celebra em suas antíteses ressonantes. “Ser ou não ser”, sua famosa oposição dramática, é ao mesmo tempo anglo-saxã, existencial e direta.



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Foi o acaso de seu nascimento no Warwickshire elisabetano que o despertou para o drama da vida cotidiana? Foi aqui que ele aprendeu a extrair tantas nuances de significado dos detalhes cotidianos do mundo a girar? Em algum momento, em Stratford, ou quando se mudou para Londres, ele descobriu a fonte do grande drama: o perigo iminente. Em sua imaginação, isso desabrocharia em um diálogo vitalício entre risco e originalidade, uma troca criativa que o escritor parece ter guardado para si mesmo. Nunca saberemos. Nas palavras de Jorge Luis Borges, o homem permanece um enigma, ao mesmo tempo “muitos e ninguém”.

Como era ele? Esta pergunta, tão importante no século XXI, teve pouca atração no XVII. Apesar das escassas evidências, há unanimidade impressionante entre as testemunhas contemporâneas. Quase todas as referências a “Shakespeare, o homem” concordam sobre sua decência, tratamento simples, discrição e polidez, nenhuma das quais sugere o lado sombrio que nos ajudaria a compreender peças como Ricardo III, Macbeth ou Rei Lear. Podemos, entretanto, colocar essa figura indescritível em uma paisagem histórica. O Shakespeare que atingiu a maioridade durante décadas de crise, pavor e desordem fala a cada geração que se encontra in extremis. Qual é o segredo de sua empatia estranha e misteriosa, e onde está a chave para seus insights? Como e por que seu trabalho é tão perene?

De acordo com o diretor de teatro britânico Adrian Noble, uma pista para entender Shakespeare é que ele não é apenas “um grande visionário”, mas um “homem prático do teatro”. Escreveu peças para serem representadas “para um público que consistia de um amplo corte da sociedade: dos mais instruídos e lidos até os analfabetos”. Noble continua: “O público multifacetado que se amontoava entre as paredes do Teatro Globe era difícil de agradar e bastante volátil. Shakespeare tinha de chamar sua atenção e mantê-la”. Cortar uma mão, arrancar um olho, trazer um urso selvagem, derrubar uma floresta, cortar uma artéria: Shakespeare fará qualquer coisa para chamar a atenção do público.

Quatro séculos depois, o rapper britânico Stormzy, defensor dos estudantes negros desfavorecidos, usou um eco shakespeariano em seu disco de 2019 que liderou as paradas, Heavy Is the Head (Pesada É a Cabeça), uma homenagem a Henrique IV. Nesse sentido, o ator Andrew Scott vê seu trabalho como “eletrizar” o público. Ele também diz que encontrou seu próprio caminho no texto de Hamlet por meio do rap. “Eu odeio a ideia de Shakespeare colocado em uma caixa de vidro, como algo que está morto.”

Assim como Every Third Thought (Cada Terceiro Pensamento) patrocinou uma reconciliação com questões de vida e morte, a redescoberta de Shakespeare pode ser uma revelação. Em qualquer releitura, alguns de seus versos mais diretos e poderosos vêm em simples monossílabos antigos. “Ser ou não ser” é igualado por “Não me deixes enlouquecer” (Let me not be mad), de Rei Lear, e a despedida de Iras (em Antônio e Cleópatra): “Nós somos para as trevas” (We are for the dark). Eu também estava familiarizado com “as trevas”. O animal humano vive no epicentro de sua própria vida, principalmente quando adoece.

Nessa condição, a misteriosa intuição de Shakespeare é profundamente consoladora. Numa longa convalescença, quando cada dia se torna um lembrete da fragilidade humana, o poder extraordinário de Shakespeare de se conectar com a perplexidade de seu público e evocar uma emocionante sensação de mistério na provação humana inspira uma mistura de reverência, admiração e fascínio. Para mim, isso se tornou um longo diálogo interno. Se eu não pudesse mais viajar, ou me mover à vontade, como antes, ao menos poderia fazer viagens da mente, no “livro da vida” de Shakespeare. A palavra-chave da minha recuperação foi “plasticidade”. Uma definição de “plasticidade” descreve o fenômeno como “a capacidade de alteração contínua das vias neurais e sinapses do cérebro vivo e do sistema nervoso em resposta à experiência ou lesão”. De outra forma, “plasticidade” tem a ver com adaptabilidade cerebral, o tipo de resposta inconsciente que ocorre em qualquer releitura de Shakespeare. Hoje tenho três edições das Obras Completas, e cada uma traz as impressões de muito estudo: manchas de café e vinho, páginas rasgadas, marcas fantasmagóricas de lápis e cantos dobrados.

Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, a devoção à memória do poeta encontra vários tipos de expressão, desde a comédia cult da tevê Upstart Crow ao sombrio tributo quadricentenário de Kenneth Branagh, All Is True (2018). Na virada do milênio, uma parada de sucessos de Grandes Britânicos da BBC fez de Shakespeare sua quinta escolha (à frente da Rainha Elizabeth I e de Isaac Newton, mas atrás de Diana, a princesa de Gales, e de sir Winston Churchill, que liderou a votação).

Ocasionalmente, a tensão liberada de uma história shakespeariana cria uma onda de poder retórico capaz de inverter a razão, desafiar a lógica e transcender o significado. Diante de algumas guerras culturais fervilhantes, o desafio de Hamlet (“Quem vai lá?) é um chamado às armas, uma questão para mobilizar qualquer um preocupado com a defesa da cultura global entendida no sentido mais amplo. Foi possivelmente por isso que, na “desgraça geral” (palavras de Shakespeare) que irrompeu durante e após a eleição presidencial de 2016, muitos norte-americanos recorreram a Shakespeare em sua angústia.

*Trecho editado de Shakespearean: On Life & Language in Times of Disruption, publicado pela Picador em 3 de setembro (14,99 libras).

Por Robert McCrum, na Revista Carta Capital  


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