quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

ORA, POIS - ÓDIO NO “PARAÍSO”


Em Portugal, crescem casos de xenofobia contra “zucas” (brasileiros), fenômeno impulsionado pela crise econômica provocada pela pandemia


Escolas e universidades públicas de boa qualidade, taxas de criminalidade baixas, clima ameno, praias belíssimas, gastronomia mundialmente reconhecida, mesmo idioma, proximidade das grandes capitais europeias... A lista dos atrativos de Portugal parece não ter fim para um número crescente de brasileiros. De milionários que chegam ao país como investidores aos que entram com visto de turista com a intenção de ficar e trabalhar, os “zucas”, como os portugueses chamam quem nasceu no Brasil, não param de chegar. Já são 151 mil. Em 2016, eram quase a metade disso.

Como nada é perfeito, muitos brasileiros têm histórias de discriminação para contar, um problema antigo, mas que ganhou força com o coronavírus. Um perfil no Instagram batizado de Confissões da Feup, a sigla para Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, foi denunciado em outubro. O perfil era pródigo em frases xenófobas e racistas. “Antes, as brasileiras da Feup eram um regalo para os olhos. Agora, são uma cambada de feministas que querem pênis português e não admitem.” Já o perfil Apanhei Covid na Feup publicou uma imagem do coronavírus, a bandeira do Brasil e brasileiros representados como macacos no campus da faculdade. Contatada por ÉPOCA, a assessoria de imprensa da Universidade do Porto (UP) informou que “iniciou um processo disciplinar interno e irá remeter suas conclusões ao Ministério Público (MP)”.

Segundo dados do MP, de janeiro a outubro, foram abertos 102 inquéritos dessa natureza. Ainda no final de outubro, os muros de instituições de ensino superior e secundário de Lisboa foram pichados com frases como “Zucas, voltem para as favelas”, depois apagadas pelos próprios alunos. “O aumento da xenofobia e do discurso de ódio foi potencializado pela crise econômica trazida pela pandemia, mas estava presente na sociedade portuguesa”, disse Cynthia de Paula, psicóloga e presidente em Lisboa da Casa do Brasil, organização voltada à comunidade brasileira.

De 2017, ano em que a emigração brasileira voltou a crescer em Portugal, a 2019, as queixas de xenofobia feitas por brasileiros à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial aumentaram 311%. Neste ano, o número parcial de todas as nacionalidades indica, até agosto, um aumento de 38% em relação a 2019. Uma brasileira que faz parte do Núcleo de Estudantes Internacionais da Universidade do Porto e pediu para não ser identificada afirmou que casos de xenofobia não são raros. Mas, segundo ela, os piores momentos são fora das salas de aula. Um que ela não esquece aconteceu quando era recém-chegada e foi pedir informações na rua. “O homem começou a insinuar que queria ter relações sexuais comigo. Eu, claro, disse que não. E ele rebateu: ‘Por que não? Você é brasileira, você é puta’.”

O aumento do número de casos de intolerância em diferentes cidades de Portugal comprova a tese de antropólogos e cientistas políticos: a pandemia trouxe crise econômica e, consequentemente, um salto na discriminação. “Os empregos dos nacionais estão em perigo e os faz temer a imigração. Claro que há outras questões envolvidas, como a ameaça ao modo de vida e aos costumes”, explicou o cientista político André Freire, coordenador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (IUL). Para o antropólogo brasileiro Otávio Raposo, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do IUL, o número recorde de brasileiros residentes oficialmente em Portugal acirrou a concorrência por vagas no mercado de trabalho. “A discriminação da sociedade portuguesa visava negros, ciganos e imigrantes em geral. E agora está voltada para os brasileiros, que são mais numerosos e muito mais concorrentes aos empregos que os ciganos. Viraram um ingrediente de ameaça”, disse Raposo.

Preconceito, discriminação e xenofobia costumam atingir a comunidade brasileira como um todo, mas um relato reforça a ideia de que, quando o brasileiro é gay e preto ou pardo, a intolerância pode rapidamente descambar para a violência. O brasileiro Wesley Elias dos Santos contou que foi estuprado no banheiro de um restaurante em Lisboa na madrugada de 9 de fevereiro. “Saí de um bar gay e fui para um restaurante. Tinha bebido cerveja e desci para o banheiro. Três homens vieram atrás. Aparentavam ser portugueses jovens e um deles me deu um murro. Roubaram minha carteira e me bateram. Depois veio a violência sexual. Escutava eles falando ‘paneleiro’ (bicha). Eu estava bêbado e medicado. Quando acordei, estava no hospital”, afirmou Santos, ex-atendente de telemarketing em Lisboa.

Agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) fizeram a ocorrência no local do crime e conduziram Santos ao hospital, onde uma médica atestou: “Aconteceu por volta das 3 horas, com penetração anal e ejaculação”. Dias depois, ao solicitar em uma delegacia da PSP uma declaração do roubo de seu título de residência, Santos disse ter sido vítima de discriminação. “Escutei de um senhor fardado: ‘Portugal dos portugueses ainda não está acostumado com isso’.” Santos não pediu para o policial explicar porque entendeu que “isso” queria dizer brasileiro e gay.

Santos foi chamado à sede da Polícia Judiciária (PJ), que coordena a investigação, para assistir às imagens do circuito interno de câmeras do restaurante. “Fui questionado na PJ se isso não aconteceu porque eu queria, porque estava tentando seduzi-los. Duvidaram de mim. Se quisesse sedução, teria ficado no bar gay”, disse. Em nota, a PSP negou qualquer tipo de discriminação e informou que “a vítima apresentava um discurso pouco coerente, mostrando-se algo confusa com toda a situação”. Questionada por ÉPOCA, a PJ não respondeu. Desde o início da pandemia, houve mais de 2.400 atendimentos a portugueses e estrangeiros nas instituições de apoio aos crimes contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBTI) que integram a Rede Nacional de Apoio a Vítimas. Foi uma dessas que ofereceu apoio psicológico a Santos. Com medo, ele se mudou para a Dinamarca.

Por Gian Amato, na Revista Época  


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