Lygia Martins Costa narra em
depoimento sua luta pela valorização do patrimônio histórico e artístico
nacional
“Fui a primeira mulher museóloga a trabalhar no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Entrei no Iphan no começo da década de 1950, a convite do doutor Rodrigo Melo Franco, que foi o fundador do órgão. Naquela época, servir ao patrimônio despertava admiração de toda a sociedade. Agora fico sabendo que o Iphan está sem diretor? (A entidade está sem direção desde dezembro de 2019.) Por quê? Imagina... que horror, ficar três meses sem chefia. Um órgão que foi tão importante. Coitados.
Minha relação com arte e cultura vem desde criança. Ainda pequena, me encantei pelos estudos e tinha paixão por museus. Eu nasci em 13 de dezembro de 1914 em Pinheiral, no interior do estado do Rio de Janeiro. Meu pai era engenheiro da Estrada de Ferro Central do Brasil (ferrovia que ligava as então províncias do Rio, São Paulo e Minas Gerais). Eu tinha uns 4 anos quando ele foi transferido e viemos morar na então capital.
No fim da década de 1930 entrei para o curso de museologia no Museu Histórico Nacional. No início meu pai era contra. Dizia: “Filha minha não vai trabalhar”. Imagina, ele era “das antigas” mesmo. Depois, quando abriu um concurso para os quadros técnicos de conservador do Museu Nacional de Belas Artes, eu quis participar. E lutei pelo direito de trabalhar.
Comecei e passei minha carreira como museóloga. Participei da equipe que implantou efetivamente o Belas Artes, organizando sua documentação, conservação e suas exposições. Mergulhei na dedicação aos museus do campo das artes, sempre atuando no estudo e divulgação das obras, que é nossa missão.
Foi quando comecei também a montar pesquisas sobre a história da arte colonial, do século XIX. Na época se sistematizava pela primeira vez a produção artística nacional, estava tudo para ser estudado ainda. Também fiz curadorias de importantes exposições da época, como a do centenário do pintor Pedro Américo.
E um tempo depois veio mais um choque para papai. O ministério determinou que com uma bolsa eu iria estudar museologia e me aprofundar em história da arte nos Estados Unidos. Você imagina, em plena década de 1940, uma mulher estudar e trabalhar sozinha fora do país? Foi um escândalo para minha família deixar. Todo mundo ficou admiradíssimo quando papai concordou com minha viagem para os Estados Unidos — e sozinha! Num país de língua estrangeira, de hábitos diferentes, tudo diferente. E na época não havia a comunicação que temos hoje.
Como o trabalho com patrimônio artístico era algo que entusiasmava muito as pessoas, consegui convencer a todos. Embarquei para os Estados Unidos, onde fiquei um ano e meio e fiz o curso superior de história da arte crítica no instituto de artes da Universidade de Nova York.
Retornei com ainda mais conhecimentos acumulados de museologia e história da arte e, pouco tempo depois, entrei diretamente para o trabalho com preservação do patrimônio cultural brasileiro no Iphan. Trabalhei primeiro no escritório do doutor Rodrigo Melo Franco. Ainda tive contato com vários notáveis da época, pois todo mundo queria falar com o doutor Rodrigo. Ele era o maior nome no ramo na época. Isso despertava em todos que trabalhavam com ele um amor pelo trabalho. Um diretor, quando é respeitado, faz com que toda a carreira e todos servidores sejam respeitados.
Quando cheguei, eu era muito nova, e tudo era inédito lá para mim, não só as pessoas, como toda a estrutura do órgão. A parte de museologia tinha sido criada havia pouco tempo. Não tinha “nada, nada, nada” de estrutura. Atuei na seção de arte ligada aos estudos e tombamentos, que era comandada pelo Lúcio Costa, um dos responsáveis pela concepção de Brasília. Depois, virei consultora dos museus administrados pelo Iphan.
E segui me dedicando à arte colonial, que é a parte mais antiga de nossa arte. Foi assim que mergulhei no estudo de Aleijadinho. Ainda não se sabia quase nada sobre sua obra, e com esse serviço pudemos dar a dimensão de sua importância. Estabeleci pela primeira vez um sentido no desenvolvimento de suas fases artísticas.
O Iphan era tido como o órgão de cultura mais importante do Brasil. Era visto como prioridade pelo Ministério da Educação. Aliás, em toda a minha carreira, servir ao patrimônio histórico esteve em boa conta, independentemente de governo. Trabalhei tantos anos com isso (Lygia Martins Costa se aposentou em 1985 e seguiu publicando artigos até 1996) que acompanhei toda a consolidação do órgão como centro de excelência com reconhecimento internacional. Nos anos 1980, idealizei e organizei o Museu da Abolição, no Recife, pondo em prática minha própria concepção museológica. O museu contextualiza a escravidão e a abolição, destacando a contribuição da cultura negra para o Brasil. Com 20 anos de Iphan, virei a diretora da Divisão de Estudos e Tombamentos, a mesma que havia sido chefiada por Lúcio Costa, que foi o ponto alto de minha carreira.
O Patrimônio Histórico e Artístico Nacional é um resumo de tudo que o país fez. É uma luta de muitos profissionais técnicos para preservar, explicar e mostrar como toda a evolução da arte brasileira se deu. O que há de melhor em nossa cultura é o Patrimônio quem cuida e preserva. O que há de mais antigo e mais importante é de responsabilidade do Iphan. Não me casei e não tenho nenhum filho. Sou casada com a arte. Mas tenho uma “sobrinhada”: 20 sobrinhos de que eu gosto muito. E assim foi, cá estou hoje com 105 anos. A saúde, graças a Deus, vai bem. Não tenho complicação alguma. Gosto de ler, saber se há alguma notícia do Patrimônio, como é que as coisas estão. E tomo meu chopinho. Com 105 anos, ainda se está muito vivo. Se o chope é o segredo? Quem sabe?
“Fui a primeira mulher museóloga a trabalhar no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Entrei no Iphan no começo da década de 1950, a convite do doutor Rodrigo Melo Franco, que foi o fundador do órgão. Naquela época, servir ao patrimônio despertava admiração de toda a sociedade. Agora fico sabendo que o Iphan está sem diretor? (A entidade está sem direção desde dezembro de 2019.) Por quê? Imagina... que horror, ficar três meses sem chefia. Um órgão que foi tão importante. Coitados.
Minha relação com arte e cultura vem desde criança. Ainda pequena, me encantei pelos estudos e tinha paixão por museus. Eu nasci em 13 de dezembro de 1914 em Pinheiral, no interior do estado do Rio de Janeiro. Meu pai era engenheiro da Estrada de Ferro Central do Brasil (ferrovia que ligava as então províncias do Rio, São Paulo e Minas Gerais). Eu tinha uns 4 anos quando ele foi transferido e viemos morar na então capital.
No fim da década de 1930 entrei para o curso de museologia no Museu Histórico Nacional. No início meu pai era contra. Dizia: “Filha minha não vai trabalhar”. Imagina, ele era “das antigas” mesmo. Depois, quando abriu um concurso para os quadros técnicos de conservador do Museu Nacional de Belas Artes, eu quis participar. E lutei pelo direito de trabalhar.
Comecei e passei minha carreira como museóloga. Participei da equipe que implantou efetivamente o Belas Artes, organizando sua documentação, conservação e suas exposições. Mergulhei na dedicação aos museus do campo das artes, sempre atuando no estudo e divulgação das obras, que é nossa missão.
Foi quando comecei também a montar pesquisas sobre a história da arte colonial, do século XIX. Na época se sistematizava pela primeira vez a produção artística nacional, estava tudo para ser estudado ainda. Também fiz curadorias de importantes exposições da época, como a do centenário do pintor Pedro Américo.
E um tempo depois veio mais um choque para papai. O ministério determinou que com uma bolsa eu iria estudar museologia e me aprofundar em história da arte nos Estados Unidos. Você imagina, em plena década de 1940, uma mulher estudar e trabalhar sozinha fora do país? Foi um escândalo para minha família deixar. Todo mundo ficou admiradíssimo quando papai concordou com minha viagem para os Estados Unidos — e sozinha! Num país de língua estrangeira, de hábitos diferentes, tudo diferente. E na época não havia a comunicação que temos hoje.
Como o trabalho com patrimônio artístico era algo que entusiasmava muito as pessoas, consegui convencer a todos. Embarquei para os Estados Unidos, onde fiquei um ano e meio e fiz o curso superior de história da arte crítica no instituto de artes da Universidade de Nova York.
Retornei com ainda mais conhecimentos acumulados de museologia e história da arte e, pouco tempo depois, entrei diretamente para o trabalho com preservação do patrimônio cultural brasileiro no Iphan. Trabalhei primeiro no escritório do doutor Rodrigo Melo Franco. Ainda tive contato com vários notáveis da época, pois todo mundo queria falar com o doutor Rodrigo. Ele era o maior nome no ramo na época. Isso despertava em todos que trabalhavam com ele um amor pelo trabalho. Um diretor, quando é respeitado, faz com que toda a carreira e todos servidores sejam respeitados.
Quando cheguei, eu era muito nova, e tudo era inédito lá para mim, não só as pessoas, como toda a estrutura do órgão. A parte de museologia tinha sido criada havia pouco tempo. Não tinha “nada, nada, nada” de estrutura. Atuei na seção de arte ligada aos estudos e tombamentos, que era comandada pelo Lúcio Costa, um dos responsáveis pela concepção de Brasília. Depois, virei consultora dos museus administrados pelo Iphan.
E segui me dedicando à arte colonial, que é a parte mais antiga de nossa arte. Foi assim que mergulhei no estudo de Aleijadinho. Ainda não se sabia quase nada sobre sua obra, e com esse serviço pudemos dar a dimensão de sua importância. Estabeleci pela primeira vez um sentido no desenvolvimento de suas fases artísticas.
O Iphan era tido como o órgão de cultura mais importante do Brasil. Era visto como prioridade pelo Ministério da Educação. Aliás, em toda a minha carreira, servir ao patrimônio histórico esteve em boa conta, independentemente de governo. Trabalhei tantos anos com isso (Lygia Martins Costa se aposentou em 1985 e seguiu publicando artigos até 1996) que acompanhei toda a consolidação do órgão como centro de excelência com reconhecimento internacional. Nos anos 1980, idealizei e organizei o Museu da Abolição, no Recife, pondo em prática minha própria concepção museológica. O museu contextualiza a escravidão e a abolição, destacando a contribuição da cultura negra para o Brasil. Com 20 anos de Iphan, virei a diretora da Divisão de Estudos e Tombamentos, a mesma que havia sido chefiada por Lúcio Costa, que foi o ponto alto de minha carreira.
O Patrimônio Histórico e Artístico Nacional é um resumo de tudo que o país fez. É uma luta de muitos profissionais técnicos para preservar, explicar e mostrar como toda a evolução da arte brasileira se deu. O que há de melhor em nossa cultura é o Patrimônio quem cuida e preserva. O que há de mais antigo e mais importante é de responsabilidade do Iphan. Não me casei e não tenho nenhum filho. Sou casada com a arte. Mas tenho uma “sobrinhada”: 20 sobrinhos de que eu gosto muito. E assim foi, cá estou hoje com 105 anos. A saúde, graças a Deus, vai bem. Não tenho complicação alguma. Gosto de ler, saber se há alguma notícia do Patrimônio, como é que as coisas estão. E tomo meu chopinho. Com 105 anos, ainda se está muito vivo. Se o chope é o segredo? Quem sabe?
Lygia
Martins Costa, em depoimento a Jan Niklas, na Revista Época
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