quarta-feira, 11 de março de 2020

A luta da humanidade contra as pandemias


O medo, diz Sonia Shah em livro, não é tão irracional quanto parece. Deriva não da extensão ou gravidade da ameaça, mas da ignorância sobre como combatê-la

Às vésperas da celebração dos 50 anos da unificação da Itália, em 1911, o cólera chegou a Nápoles. O governo decidiu censurar a informação para evitar danos à imagem e ao turismo. “O objetivo é manter o mais absoluto segredo”, dizia um telegrama do primeiro-ministro às autoridades sanitárias. Jornalistas foram subornados para evitar a menção à palavra “cólera”. Telefones foram grampeados. Sociedades médicas foram mantidas sob vigilância. Nenhum boletim oficial sobre a epidemia foi publicado. A dissimulação envolveu até mesmo os governos americano e francês. Como resultado, o vibrião se espalhou pela região, atingiu França e Espanha e deixou um saldo estimado em 18 mil mortos. O flagelo inspirou o cenário de A morte em Veneza, do alemão Thomas Mann, que visitou a Itália durante a epidemia secreta. “O acobertamento da Itália foi um dos mais ousados, mas está longe de ter sido o último”, escreve a jornalista Sonia Shah em Pandemic (Pandemia), relato da luta da humanidade contra os micro-organismos que nos ameaçam.

Em 2002, a China tratou o surto de Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) como segredo durante meses. Cuba censurou notícias sobre o cólera em 2012. Naquele mesmo ano, a Arábia Saudita tentou amordaçar o virologista que descobrira a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers). Dificilmente o mundo estaria apavorado com a nova variante do coronavírus conhecida como Covid-19, não tivesse a China tentado outra vez suprimir as notícias iniciais sobre a doença em dezembro e tentado ocultar o risco de transmissão entre humanos, para não prejudicar as festividades do Ano-Novo em janeiro. O oftalmologista Li Wenliang, que publicou as primeiras suspeitas na internet, foi censurado, punido — e depois morreu vítima da doença. Mesmo em democracias, a reação das autoridades diante de novas ameaças à saúde pública costuma ser, no mínimo, ambivalente. Em A peste, a obra-prima do francês Albert Camus, o drama é traduzido pelo diálogo entre os médicos que levam a notícia da epidemia ao prefeito de Oran, na Argélia. “Sinceramente, diga-me o que o senhor pensa, tem certeza de que se trata da peste?”, pergunta um deles. “O problema está mal colocado”, responde o outro. “Não é uma questão de vocabulário, mas de tempo.”

O tempo lento de reação é, de acordo com Shah, a maior falha na resposta humana às novas doenças. “Quando o alarme é disparado, os patógenos já se adaptaram ao corpo humano e os casos já começaram a crescer”, diz ela. “Epidemias crescem exponencialmente, enquanto nossa capacidade de resposta progride linearmente, na melhor hipótese.” Shah analisa em seu livro os principais fatores responsáveis pelas pandemias ao longo da história: a transmissão entre diferentes espécies animais, os meios de transporte, a sujeira, as multidões nos centros urbanos, a corrupção e o despreparo das autoridades, a dificuldade para encontrar a cura, o efeito humano no clima e no ambiente, além da própria lógica da evolução das espécies. Na conclusão, ela propõe medidas para aperfeiçoar nossa capacidade de enfrentar ameaças como o novo coronavírus.

O medo, diz ela, não é tão irracional quanto parece. Deriva não da extensão ou gravidade da ameaça, mas da ignorância sobre como combatê-la. A malária mata mais que o ebola, mas sentimos mais medo deste que daquela, cujos mecanismos de transmissão e tratamento são mais conhecidos.

Na impossibilidade de compreensão, é preciso ser no mínimo rápido ao constatar o risco. Shah defende um sistema de prevenção de pandemias similar ao que existe para furacões ou outros eventos meteorológicos, uma espécie de “sistema imune global”. Também sugere a criação de um fundo de seguro mundial, para uso nos casos de emergência. “No mesmo instante em que a próxima pandemia ganha impulso, a identidade do patógeno que a causará é tão obscura quanto sempre foi.” Não haverá jamais segurança absoluta. No romance de Camus, a mulher do médico que, por acaso, escapa da cidade antes da peste acaba morrendo de tuberculose.

PANDEMIC: TRACKING CONTAGIONS, FROM CHOLERA TO EBOLA AND BEYOND

Sonia Shah, Picador

2017 | 288 páginas | US$ 18

Por Helio Gurovitz, na revista época

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