Pouco tempo atrás a discussão que galvanizava a opinião pública era a fome iminente, o caos e a insegurança alimentar que arrastaria o planeta para guerras de extermínio, para conflitos catastróficos.
Em decorrência da tragédia anunciada imediatamente foi criada uma poderosa indústria que gerou concorrência na produção acadêmica e intelectual, alavancou estrondosos lucros na prestação de serviços – sobretudo de consultoria - na esfera editorial, nos empréstimos intergovernamentais e no âmbito das agências de fomento ao desenvolvimento.
O tempo passou e, um ajustinho aqui, outro acolá (noves fora, nada!) e o prenúncio da catástrofe mostrou-se, no dizer da gente simples, efêmero ‘risco n’água’. O aporte de tecnologia concentrada levou à multiplicação da produção, em que pese a área plantada ter se mantido praticamente inalterada. E ao contrário dos prognósticos alarmistas, a produção aumentou, barateando o preço dos alimentos nas gôndolas dos supermercados e nos balcões dos armazéns e empórios da periferia.
Os que pregaram o final dos tempos quietaram-se por algum tempo, mas só o estritamente necessário para que a memória curta do povo os resgatasse da obscuridade.
E como o processo é cíclico, assombração é o que não falta nos dias de hoje. Alguns acalentam o canto da carochinha da Amazônia. Em um ato ela é objeto de cobiça do tio Sam (ah, sempre o tio Sam!) que, inclusive, já a teria extirpado do mapa brasileiro. Em outro ato estaria reduzida a um deserto similar ao Saara africano, em exatos quarenta anos, contados minutos, segundos e milésimos de segundos. Mas existem também, em profusão, os que entoam cantigas alarmistas quanto à completa extinção da água potável no planeta, e outros, ainda, que concentram baterias e protestos denunciando o aquecimento solar que ‘levará ao derretimento das calotas polares, à inundação das terras litorâneas, ciclones, maremotos, tornados’ e o escambau a quatro.
É meu estimado leitor, apregoadores de desgraças e profetas do apocalipse jamais faltaram na longa trajetória que a humanidade teve que purgar para romper o século XXI. E como fazem sucesso, com que facilidade amealham seguidores, fiéis servis e obstinados...
Na ordem do dia a produção do álcool, o combustível limpo, em substituição aos derivados do petróleo, o combustível sujo. A nova tecnologia parece ser a panacéia do momento. Magnatas nacionais associam-se a investidores estrangeiros para a ampliação da produção, para a construção de novas usinas; o presidente corre o mundo oferecendo a tecnologia redentora; todos se rejubilam e o paraíso parece ficar consideravelmente mais próximo.
A discussão sobre a ampliação da área reservada ao cultivo da cana começa a mobilizar os formadores de opinião. Não há no mundo país que produza álcool mais barato que o Brasil. Somos – como no caso da seleção masculina de Vôlei – invencíveis neste quesito, imbatíveis, arrasadores. Para responder à demanda pelo combustível ecologicamente correto(?!), atender aos mercados interno e externo deveremos utilizar áreas gigantescas, continentais, e sempre as melhores, as mais férteis, as mais planas, as que mais abundam água, as melhores servidas por logística, infra-estrutura de produção e escoamento.
E como sempre ocorre nas monoculturas, a produção de alimentos acaba sendo relegada a segundo plano, e quem vai morrer na conta é (como sempre!) o tal do Zé povinho.
Algumas eminências pardas já adiantam que o país tem área de sobra e que a produção de alimentos não será comprometida. Sei... Recomendo a esses “iluminados estudiosos” revisitar na história brasileira as conseqüências das monoculturas e do sistema de plantation. Estudassem um pouco mais e saberiam a que me refiro.
Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala faz referência às Atas da Câmara de São Paulo (1562-1601), onde se verifica clara interferência do governo no sentido de regularizar a lavoura de mantimentos sacrificada pela do açúcar. Pela importância e oportunidade transcrevo o trecho logo abaixo:
“(...) encontrou Taunay (Afonso) uma requisição do governador-geral do Brasil de oitocentos alqueires de farinha destinados a Pernambuco; capitania que, por ser a mais açucareira, seria também a mais exposta à carestia ou escassez de mantimentos locais. A requisição era, porém, superior à capacidade dos paulistas: fornecida toda aquela farinha a Pernambuco, eles é que ficariam na penúria. Decidiu a Câmara apregoar para conhecimento de todos os moradores da vila e termo, uma postura em que ficavam intimados a fazer farinha, em obediência a uma provisão do capitão-mor e do ouvidor da capitania de São Vicente. Tudo sob a ameaça de cinqüenta cruzados de multa e dois anos de degredo para as paragens inóspitas do Estreito de Magalhães (...)”.
Bem... para o bom entendedor, duas palavras bastam.
De qualquer forma, quem está se maravilhando com todo este movimento é um andarilho que vive nas cercanias da unidade Laranjeiras da UEG, em Goiânia. “O Brasil agora vai ser campeão também em cana” - costuma dizer o pobre coitado, completamente embriagado. E conclui, irradiando felicidade: “U danado du trem vai ficá bão dimais, sô!”.
Antônio Carlos dos Santos – criador da metodologia de Planejamento Estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de Teatro Popular de Bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br