domingo, 18 de julho de 2010

Camões e a ideologia de matula

“Só o tempo cura o queijo”, desejaram ensinar nossos avós. Poucos conseguiram, verdadeiramente, aprender este milenar ensinamento.

O tempo – cansou-se de versar o poeta – é o senhor da razão.

Na arte como na vida, é o tempo que determina o que – qual flecha pontiaguda – vai atravessar a linha que separa o presente do futuro. O juiz soberano que separa o efêmero do perene não é outro senão o tempo.

O conjunto Legião Urbana transformou em música um dos mais belos e singelos poemas de todos os tempos, escrito pelo poeta maior da língua portuguesa.

A poesia que sustenta a melodia entoada pelo Legião foi escrita nos idos do descobrimento do Brasil e sua transposição para os dias de hoje é comprovação de que a arte, quando consistente e inundada de qualidade, brinca com a linha do tempo, transforma passado, presente e futuro num único instante, um ponto indivisível da quarta dimensão.

Na realidade, a banda capitaneada por Renato Russo (Monte Castelo) entremeou trechos de Camões com outros de Paulo, o Aposto.

Aqui está o soneto de Camões:

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


A magnífica obra é de Luiz de Camões que, presumivelmente, nasceu em 1525, vindo a falecer no ano de 1580.

Camões revolucionou a poesia lírica portuguesa. A condição humana e o intrincado universo dos sentimentos são explorados de forma sutil, mas densa o suficiente para promover a reflexão filosófica.

Vejam a beleza deste soneto, outra obra prima do mestre do classicismo lusitano:

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.


No período do Renascimento, a expansão comercial gerou um movimento cultural denominado Classicismo, estilo literário logo abraçado por Luís de Camões.

A obra de Camões adentrará o futuro eterno influenciando os escritores de todo o mundo, sobretudo os que receberam a graça de escrever em português.

“Soneto de Carnaval” de Vinicius de Moraes é mais um exemplo da presença inspiradora de Camões:

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento.

Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrado uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.

E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim

De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranqüila ela sabe, e eu sei tranqüilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.


Os livros didáticos e para-didáticos utilizados em nossas escolas preocupam-se sobremaneira em politizar nossas crianças e jovens, incutindo – muitas vezes extemporaneamente – conceitos do viver politicamente correto. E tome cidadania, inclusão, ações afirmativas, participação popular, sustentabilidade, etc. e etc. Nada de mal. Tudo bem se é para formarmos cidadãos de bem com o mundo e com as pessoas. O problema é que muitos de nossos educadores acreditam que para vestir um santo devem descobrir o outro. E esquecem-se do conhecimento básico, que dá suporte aos demais; e desdenham deixando de lado a ciência dos números e a das letras.

Sim, passam a tratar a matemática e o português como uma espécie de filhos bastardos, aos quais se dá uma certa atenção, mas nada que implique maiores comprometimentos. Pitágoras e Camões são aprisionados no lugar mais ermo da escola, no canto mais escuro e empoeirado da biblioteca.

E esta é – não tenho a menor dúvida – uma das causas (das principais!!) do Brasil ter se tornado especialista em ocupar os últimos lugares nos ranking’s que hierarquizam a qualidade e o nível da educação. Sejam as sucessivas edições do Pisa, seja qualquer outro indicador, sempre estamos segurando a lanterna, atrás até mesmo dos vizinhos sul-americanos.

Como é possível acreditar que, desconhecendo as quatro operações da aritmética e sem conseguir extrair de um texto elementar seu sentido figurado, pode um aluno alcançar a cidadania? Não pode. A não ser que o objetivo seja inflar os números e maquiar os relatórios pedagógicos.

Caros mestres. Tratem com mais carinho e apreço seus alunos. Matemática e português neles. Pitágoras e Camões jamais farão mal a ninguém. Ao contrário, sem eles, inclusão e cidadania não passam de jargões e palavras de ordem, ideologia de matula, uma sistemática de todo incompatível com educação de qualidade.

Antônio Carlos dos Santos é engenheiro e escritor, criador da metodologia de planejamento estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br