quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Moradoras da periferia têm papéis decisivos nas mudanças do espaço urbano


Pesquisa da USP analisa as mudanças nos centros e periferias urbanas, juntamente aos papéis sociais das mulheres nos últimos anos

As cidades brasileiras foram mudando ao longo do tempo, junto às suas formas de produção de trabalho e capital. Com elas, ocorreram transformações humanas que, de forma interligada, caracterizaram os aglomerados urbanos. Em sua dissertação de mestrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, Carolina Freitas analisa como se deu essa relação entre mulheres e periferia.

Entre 2016 e 2018, Carolina produziu sua dissertação de mestrado intitulada Mulheres e periferias como fronteiras: o tempo-espaço das moradoras do Conjunto Habitacional José Bonifácio, com a orientação da professora Maria Beatriz Cruz Rufino. O objetivo da pesquisa era compreender as transformações do espaço periférico e papéis sociais das mulheres, e como isso se relaciona. “Eu entendi que essas experiências de mobilização política se cruzavam e me senti estimulada a investigar teoricamente este cruzamento, suas determinações numa realidade mais geral e complexa que é a própria produção das metrópoles no século 21, sobretudo na periferia do capitalismo”, explica a pesquisadora.

Carolina dividiu seu estudo em dois ciclos de análise: de 1970 a 1985, e 2000 a 2015, porque foram os momentos de criação de programas de incentivo financeiro à construção de moradias populares, respectivamente pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) e pelo Programa Minha Casa, Minha Vida.

A política habitacional implementada no Brasil pelo BNH criou os Conjuntos Habitacionais (Cohabs). Para refletir sobre as cidades, Carolina escolheu analisar o Conjunto Habitacional José Bonifácio (Cohab 2) em Itaquera, na zona leste de São Paulo, que obteve crescimento nos dois ciclos de estudo. O método de pesquisa foram entrevistas com as moradoras da Cohab 2 de Itaquera.

A pesquisa

A ideia de empreender a pesquisa veio do ativismo feminista da pesquisadora. Há mais de dez anos, Carolina faz parte do movimento feminista em São Paulo. “A trajetória de vida de quem faz a pesquisa sempre motiva a atividade de pesquisar”, afirma. Pouco tempo antes de iniciar sua pesquisa, em 2015, havia acontecido a Primavera Feminista e a Marcha das Mulheres Negras, ambas iniciativas a favor dos direitos das mulheres, que, de acordo com Carolina, inspiraram seu trabalho. “Foi um ano-chave para o feminismo e eu estava embalada por essa inspiração”, lembra.

Na estrutura da pesquisa, Caroline optou por explicar individualmente as transformações históricas do Conjunto Habitacional e, em seguida, o trabalho feminino. No primeiro capítulo, há a descrição de como a classe operária foi submetida a um padrão periférico de urbanização e degradação arquitetônica que se diferenciavam da acelerada urbanização na cidade de São Paulo no século 20. “Por outro lado, este tipo de habitação promovida pelo Estado passou por intensas transformações em sua consolidação, que transbordaram seu processo de homogeneização característico”, explica a pesquisadora.

No segundo capítulo, Carolina expõe o comportamento feminino diante das transformações de um cenário urbano industrial, com um centro expressivo, para uma ampliação econômica às periferias da cidade. Por fim, relacionou a trajetória dessas mulheres e de suas moradias.

O andamento da pesquisa contou com dificuldades para acessar as moradoras da Cohab 2, por causa de suas jornadas de trabalho, restando pequenos intervalos de tempo para realizar as entrevistas. Apesar disso, em virtude do conteúdo rico de suas respostas a pesquisadora manteve esse método de pesquisa. “A maioria das mulheres entrevistadas, por certo, demonstrariam a inexistência de tal tempo ao serem perguntadas, em razão da multiplicidade de trabalhos por que são responsáveis dentro e fora de casa”, conta ela. “As respostas obtidas, em verdade, não seguiram exatamente o previsto, apresentando-se mais complexas do que o esquema inicial concebido”, complementa.

Cidades operárias

Carolina decidiu investigar teoricamente o cruzamento entre mulheres e metrópoles do século 21, sobretudo nas periferias. A partir da definição do tema, ela o dividiu em suas esferas de análise: as relações de gênero e raça, por um lado, e produção do espaço periférico urbano, por outro. “Isto implica mobilizar estes processos de transformações espaciais das periferias urbanas e do cotidiano das moradoras das periferias como uma unidade econômica contraditória, um emaranhado de tempos que se materializam numa forma socioespacial”, explica ela.

No final do século 20, a cidade de São Paulo era regida por uma economia industrial. O papel da mulher nesse cenário era habitar uma cidade-dormitório, enquanto o homem iria desempenhar suas atividades fabris no centro. A partir da década de 1970, há uma desconcentração industrial, que movimenta uma nova economia em direção às periferias. “As fábricas saem da cidade de São Paulo, e ela passa a ter uma outra economia política urbana”, observa Carolina.

Com essa mudança, houve um crescimento do mercado imobiliário para as áreas afastadas do centro, de forma que construtoras voltassem sua atenção para a moradia local. “Não é mais voltado para quem pode pagar, mas para quem pode essencialmente se endividar”, explica a pesquisadora da FAU. “As incorporadoras vão usar de financiamentos para construir uma imitação rebaixada daquilo que elas já faziam nos bairros caros da cidade”, complementa.

Além disso, os programas de incentivo à moradia também eram formas de minimizar crises de insatisfação da população frente ao regime político em questão, direcionando-a ao sonho da casa própria. “Os projetos habitacionais do BNH surgem também como uma condição ideológica de apaziguamento da ditadura”, explica Carolina. “Havia altas taxas de exploração. Você trabalhava muito e recebia pouco”, complementa.

Carolina também observa o processo de trabalho informal para a construção desse agrupamento urbano. “O País deixa de ser eminentemente rural e passa a ser um país urbano. Uma ‘urbanização de baixos salários’, ou seja, produzida sobretudo a partir do trabalho não pago do proletariado migrante que veio para as grandes cidades”, explica. “A maior parte da classe trabalhadora morava em lugar construído batendo laje em final de semana com seus vizinhos”, complementa. Vale ressaltar que o BNH subsidiava apenas trabalhadores de carteira assinada, que poderiam usar seu FGTS na construção de sua habitação.

Apesar de sua experiência pessoal de moradia na Cohab 2, Carolina escolheu esse eixo pela importância histórica que o local apresentava. “A Cohab 2 foi uma experiência contundente da política habitacional da ditadura empresarial-militar brasileira e de um momento da produção espacial da metrópole de São Paulo”, conta ela. “De um lado, trabalhadores, com suas próprias mãos, construindo as suas habitações e, por outro, o Estado produzindo habitação em massa”, completa.

A partir de produções e apropriações, a Cohab foi desenvolvida como uma expansão do mercado imobiliário que teve lugar nas décadas 2000-2010. “Busquei interpretar semelhanças e diferenças entre esses dois ciclos no que se refere à concepção da habitação pelo Estado brasileiro, e tentei refletir sobre a concepção subjacente de domesticidade desses projetos arquitetônicos, visto que se articula com as atividades práticas das mulheres na reprodução social da classe trabalhadora”, conta a pesquisadora.

Mulheres e periferias

As primeiras moradoras que ocupavam as cidades-dormitório da época industrial já desempenhavam um papel decisivo no trabalho informal, em comércios de garagem e serviços artesanais. Ao mesmo tempo, preenchiam cargos públicos que se davam nesses espaços. “Elas foram virar as merendeiras das escolas, as auxiliares de enfermagem, as assistentes sociais, educadoras das creches etc.”, conta Carolina.

As gerações atuais enfrentam outros desafios, como a distância das periferias aos centros urbanos que ainda regem poder. “Essas meninas mais jovens, diferente das suas mães e das suas avós, precisam atravessar a cidade para trabalhar”, exemplifica a pesquisadora. “Deslocamentos de uma cidade muito mais fragmentada, que impõe você morar num lugar e trabalhar diametralmente em outro”, complementa.

Ainda sim, existem mulheres que desempenham trabalhos informais nos conjuntos habitacionais. “Eu acompanhei mulheres que faziam costura em seus apartamentos, mas elas estavam fazendo costura para grandes marcas”, afirma Carolina. “As mulheres são o laboratório do mundo de trabalho neoliberal”, completa.

Porém essas personalidades femininas podem cruzar suas trajetórias de trabalho. Ao Jornal da USP, Carolina conta sobre mulheres que vão trabalhar do outro lado da cidade e deixam seus filhos com outras mulheres enquanto trabalham. “Mulheres que não fazem o trabalho da creche nos seus apartamentos de maneira amadora, mas de maneira quase empreendedora e profissional”, explica ela.

Jornal da USP, Camilly Rosaboni

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