segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

A relação entre ciência e democracia


Depois do episódio horrendo da ascensão do nazismo na Alemanha e o subsequente desastre que se seguiu com a morte de milhões de pessoas durante a Segunda Guerra, os aliados venceram o conflito. Passou então a vigorar, na maior parte do mundo civilizado, o sistema democrático.

 

A liberdade de operação das pessoas e das empresas e a forma de decidir através do consenso democrático coincidiram com uma inédita explosão de produção científica. Em várias áreas da ciência, um aumento exponencial nas publicações de artigos científicos se deu a partir dos anos 1960-70. Nas duas primeiras décadas do século 21, foram publicados cinco milhões de novos artigos, o que vem provocando uma verdadeira inundação de conhecimento. Não há acaso; a democracia, o avanço da ciência ocidental e das redes sociais estão intimamente relacionados. Juntos, eles geraram as propriedades emergentes que delinearam a sociedade atual.

Em conjunto, a Segunda Guerra, a consolidação da democracia por algumas décadas e o avanço vertiginoso da ciência e da internet formaram uma tormenta que tem chacoalhado o século XXI. Esse “túnel de turbulência” provavelmente nos conduzirá (esperamos) a um novo estado de equilíbrio. Porém, ainda estamos no olho do furacão e não há como saber como será esse equilíbrio no futuro.

Por um lado, o sistema democrático está em xeque, decrescendo no mundo e, de certa forma, revertendo o efeito dos eventos pós-guerra. Por outro lado, a inundação de conhecimento científico parece confundir as populações. Há tanta coisa nova, tanta tecnologia disponível que parecem induzir a uma sensação de banalidade da ciência. Isso porque as pessoas parecem acreditar que a ciência e a tecnologia vêm de graça. Que são consequências naturais de nossas atividades. Mas não são. Produzir conhecimento custa dinheiro e tempo. É preciso ter organização. Para chegarmos ao estágio de desenvolvimento tecnológico que temos hoje, governos democráticos e empresas livres tiveram de se organizar. Instituições tiveram de se estabelecer para serem capazes e direcionar dinheiro para que essa enorme quantidade de conhecimento fosse produzida. Pense no que temos a nossa volta, em tudo o que usamos: roupas, alimentos, remédios, energia e transporte, por exemplo. Tudo isso é resultado, principalmente, da onda gigantesca de desenvolvimento científico durante os séculos 20 e 21.

De certa forma, podemos concluir que a liberdade de pesquisar foi o que nos trouxe até aqui. Como a democracia confere maior liberdade e permite consenso e dissenso, ela tem por trás um método muito similar ao científico. Assim, as duas coisas estão intimamente relacionadas e se retroalimentam.

Não estou propondo que democracia e ciência tenham uma relação direta de causa e efeito. Afinal, estamos assistindo a um aumento vertiginoso da ciência chinesa, que não é um país democrático. Por outro lado, essa ideia se contrapõe ao que aconteceu na antiga União Soviética, que ficou para trás na ciência e se esfacelou politicamente enquanto assistia ao Ocidente evoluir tecnologicamente com incrível velocidade. Relação direta de causa e efeito? Provavelmente não, mas foi certamente uma falta de sinergismo que tirou a União Soviética do caminho que o Ocidente seguiu com sucesso.

A ciência ocidental tem seus defeitos. Entre eles, o excesso de replicações, discriminação dos países mais pobres, uma certa falta de transparência quando se fala em inovação e tecnologia. Mas não há dúvidas que o século 20 – e possivelmente o 21 – serão lembrados pela ciência que produziram.

A relação entre ciência e democracia pode ser considerada uma relação de similitude de métodos. A liberdade de produzir conhecimento e de usá-lo de forma democrática e equânime é o que faz um povo avançar. As consequências do que fazemos com o conhecimento produzido precisam ser um acordo coletivo. Precisamos do equilíbrio entre consenso e dissenso da democracia para evitar que conhecimentos não sejam usados de forma a produzir um futuro desastroso. É importante pensar nisso na hora de escolher nossos líderes.

Jornal da USP, Marcos Buckeridge 


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