Depois do episódio horrendo da
ascensão do nazismo na Alemanha e o subsequente desastre que se seguiu com a
morte de milhões de pessoas durante a Segunda Guerra, os aliados venceram o
conflito. Passou então a vigorar, na maior parte do mundo civilizado, o sistema
democrático.
A liberdade de operação das pessoas e das empresas e a
forma de decidir através do consenso democrático coincidiram com uma inédita
explosão de produção científica. Em várias áreas da ciência, um aumento
exponencial nas publicações de artigos científicos se deu a partir dos anos
1960-70. Nas duas primeiras décadas do século 21, foram publicados cinco
milhões de novos artigos, o que vem provocando uma verdadeira inundação de
conhecimento. Não há acaso; a democracia, o avanço da ciência ocidental e das
redes sociais estão intimamente relacionados. Juntos, eles geraram as
propriedades emergentes que delinearam a sociedade atual.
Em conjunto, a Segunda Guerra, a consolidação da
democracia por algumas décadas e o avanço vertiginoso da ciência e da internet
formaram uma tormenta que tem chacoalhado o século XXI. Esse “túnel de
turbulência” provavelmente nos conduzirá (esperamos) a um novo estado de
equilíbrio. Porém, ainda estamos no olho do furacão e não há como saber como
será esse equilíbrio no futuro.
Por um lado, o sistema democrático está em xeque,
decrescendo no mundo e, de certa forma, revertendo o efeito dos eventos
pós-guerra. Por outro lado, a inundação de conhecimento científico parece
confundir as populações. Há tanta coisa nova, tanta tecnologia disponível que
parecem induzir a uma sensação de banalidade da ciência. Isso porque as pessoas
parecem acreditar que a ciência e a tecnologia vêm de graça. Que são
consequências naturais de nossas atividades. Mas não são. Produzir conhecimento
custa dinheiro e tempo. É preciso ter organização. Para chegarmos ao estágio de
desenvolvimento tecnológico que temos hoje, governos democráticos e empresas
livres tiveram de se organizar. Instituições tiveram de se estabelecer para
serem capazes e direcionar dinheiro para que essa enorme quantidade de
conhecimento fosse produzida. Pense no que temos a nossa volta, em tudo o que
usamos: roupas, alimentos, remédios, energia e transporte, por exemplo. Tudo
isso é resultado, principalmente, da onda gigantesca de desenvolvimento
científico durante os séculos 20 e 21.
De certa forma, podemos concluir que a liberdade de
pesquisar foi o que nos trouxe até aqui. Como a democracia confere maior
liberdade e permite consenso e dissenso, ela tem por trás um método muito
similar ao científico. Assim, as duas coisas estão intimamente relacionadas e
se retroalimentam.
Não estou propondo que democracia e ciência tenham uma
relação direta de causa e efeito. Afinal, estamos assistindo a um aumento
vertiginoso da ciência chinesa, que não é um país democrático. Por outro lado,
essa ideia se contrapõe ao que aconteceu na antiga União Soviética, que ficou
para trás na ciência e se esfacelou politicamente enquanto assistia ao Ocidente
evoluir tecnologicamente com incrível velocidade. Relação direta de causa e
efeito? Provavelmente não, mas foi certamente uma falta de sinergismo que tirou
a União Soviética do caminho que o Ocidente seguiu com sucesso.
A ciência ocidental tem seus defeitos. Entre eles, o
excesso de replicações, discriminação dos países mais pobres, uma certa falta
de transparência quando se fala em inovação e tecnologia. Mas não há dúvidas
que o século 20 – e possivelmente o 21 – serão lembrados pela ciência que
produziram.
A relação entre ciência e democracia pode ser considerada
uma relação de similitude de métodos. A liberdade de produzir conhecimento e de
usá-lo de forma democrática e equânime é o que faz um povo avançar. As
consequências do que fazemos com o conhecimento produzido precisam ser um
acordo coletivo. Precisamos do equilíbrio entre consenso e dissenso da
democracia para evitar que conhecimentos não sejam usados de forma a produzir
um futuro desastroso. É importante pensar nisso na hora de escolher nossos
líderes.
Jornal da USP, Marcos Buckeridge
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