segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Mulheres agredidas no Afeganistão começam a ficar sem abrigos



Casada aos sete anos com um homem com idade suficiente para ser seu bisavô, Fatema foi estuprada, espancada e passou fome até não aguentar mais e tentar o suicídio.

 

Em meio às lágrimas, recorda as surras que recebeu, como uma vez, quando tinha 10 anos, quando foi jogada contra uma parede e "minha cabeça atingiu um prego... quase morri".

Agora, a jovem de 22 anos mora em um dos poucos abrigos para mulheres vítimas de violência que ainda operam no Afeganistão desde que o Talibã voltou ao poder em agosto, mas teme perder esse lugar a qualquer momento.

Se o abrigo fechar, Fatema não terá para onde ir. Ela perdeu contato com sua família e seus sogros prometeram matá-la por desonrar seu nome.

A situação de Fatema é compartilhada por milhões no Afeganistão, onde a tradição patriarcal, a pobreza e a falta de educação minaram os direitos das mulheres por décadas.

De acordo com a ONU, 87% das mulheres afegãs já sofreram alguma forma de violência física, sexual ou psicológica.

Apesar disso, o país de 38 milhões de habitantes tinha apenas 24 abrigos antes do retorno do Talibã, quase todos financiados pela comunidade internacional e vistos com desconfiança por muitos locais.

Começar do zero

Algumas organizações que administravam abrigos pararam de fazê-lo com a chegada do Talibã.

A diretora de uma dessas organizações disse à AFP que começou a transferir mulheres de abrigos em províncias instáveis antes da retirada das tropas americanas.

Algumas voltaram para suas famílias na esperança de que teriam proteção de seus parentes. Outras foram transferidas para abrigos maiores nas capitais de província.

Com o avanço do Talibã, a situação tornou-se desesperadora e cerca de 100 mulheres foram transferidas para Cabul, mas a capital também caiu.

"Tivemos que começar do zero", disse a diretora, que pediu para não ser identificada.

O Talibã insiste que sua interpretação estrita do Alcorão concede direitos e proteção às mulheres, mas a realidade é muito diferente.

A maioria das escolas femininas está fechada, as mulheres estão proibidas de trabalhar no governo, exceto em áreas específicas, e esta semana foram publicadas novas regras que as impedem de fazer longas viagens sem a companhia de um parente do sexo masculino.

Mas há um vislumbre de esperança.

O líder supremo do Talibã, Hibatullah Akhundzada, denunciou em dezembro o casamento forçado e Suhail Shaheen, possível embaixador na ONU, disse à Anistia Internacional que as mulheres podem ir à Justiça se forem vítimas de violência.

O regime ainda não se pronunciou formalmente sobre o futuro dos abrigos, mas está ciente de sua existência.

Talibãs visitaram várias vezes o abrigo onde Fatema e outras 20 mulheres estão, de acordo com as funcionárias.

"Vieram, olharam os quartos, verificaram se não havia homens", disse uma funcionária. "Disseram que este lugar não era seguro para as mulheres, que o lugar delas era em casa", citou outra.

"Acusada de mentir"

Mesmo antes da chegada do Talibã, muitas mulheres em situação de risco tinham poucas saídas.

Zakia foi ao Ministério da Mulher (fechado pelo Talibã) para obter ajuda para fugir de um sogro que ameaçou matá-la. "Eles nem me ouviram", disse.

O mesmo aconteceu com Mina, de 17 anos, que fugiu de um tio abusivo sete anos atrás com sua irmã mais nova. "O ministério me acusou de mentir", contou à AFP.

E a Anistia Internacional destacou que as funcionárias dos abrigos também "correm risco de violência e morte". Várias afirmam que já foram ameaçadas.

Os casos de abuso podem crescer com o colapso econômico no Afeganistão, com o aumento do desemprego e da fome.

"Quando a situação econômica piora, os homens ficam sem emprego e os casos de violência aumentam", segundo uma funcionária.

Um dos poucos abrigos abertos é administrado por Mahbouba Seraj, pioneira na luta pelos direitos das mulheres no país. Depois de ser revistado pelo Talibã, o abrigo foi "mais ou menos deixado em paz", disse ela.

Por enquanto, Zakia tem um lugar seguro, mas até quando? "Meu próprio pai diz que não me ama", conclui.

Elise BLANCHARD (eb/tbm/ys/fox/axn/mas/zm/mr), AFP



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