sábado, 25 de abril de 2020

"A pandemia opõe o Brasil solidário ao oportunista"



ENTREVISTA - MARCOS LISBOA, PRESIDENTE DO INSPER

De um lado, o espírito empreendedor, formado por gente que dedica tempo e recursos para ajudar a sociedade a atravessar um momento desafiador. De outro, práticas clientelistas que explicam o atraso da nação: crédito subsidiado, proteção contra a concorrência e socorro para pagar salários inflados dos servidores. A Covid-19 pode alterar uma correlação de forças que, historicamente, tem como vencedor um Brasil arcaico e ineficaz.

Poucos economistas transitam com tamanha desenvoltura pelos setores acadêmico, público e privado como faz o carioca Marcos Lisboa, 56 anos. O atual presidente do Insper, Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia (EUA) e ex-professor da Universidade de Stanford e da Fundação Getúlio Vargas, ocupou a vice-presidência do Itaú Unibanco e presidiu o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). Como secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda durante o primeiro mandato de Lula, atuou nas diretrizes que permitiram um crescimento vigoroso do PIB ­ em 2004, chegou a 5,2%, melhor marca em dez anos. Bem antes que a pandemia de Covid-19 começasse a causar estragos na economia global, Marcos Lisboa já alertava para a dificuldade de o País voltar a crescer acima de 3% ao ano. Agora, sua previsão é que o Brasil sairá da crise mais pobre e com dificuldades maiores que as de outras nações. Um dos motivos é a falta de coordenação entre os Poderes para dar uma reposta eficiente à pandemia nos âmbitos da saúde e da economia.

DINHEIRO – O governo brasileiro tem sido eficaz nas respostas à crise causada pelo novo coronavírus?

Marcos Lisboa — Até agora, não. Falta coordenação técnica e política das ações. Ainda não temos sequer um protocolo nacional sobre os cuidados com a saúde, nem sobre o uso de equipamentos e medicamentos. É preocupante não termos testes de massa sendo conduzidos no País. Do ponto de vista da política econômica, fica essa ansiedade para anunciar números, combinando alhos com bugalhos. Uma coisa é liberação de reservas, outra é concessão de crédito com aval do Tesouro Nacional, uma terceira é transferir recursos para os estados. São muitas coisas diferentes somadas no mesmo pacote. Em termos de dispêndio, estamos com menos de R$ 300 bilhões, e aumentando. É muito dinheiro, mas numa conta descoordenada.

Apesar da falta de coordenação, os remédios para a economia são eficazes?

Algumas medidas, como financiar o pagamento da folha de salário das empresas, vão na direção correta, mas com muitos problemas técnicos. O que fazer com quem está inadimplente? Há uma dificuldade de acesso ao crédito por parte das grandes empresas que não é falta de liquidez e sim aumento do risco de inadimplência. É sempre importante lembrar que quase todo o dinheiro que os bancos emprestam é dos depositantes. Se você empresta e não é pago de volta, como fica?

O que esse risco de crédito representa em um país que sofre com uma parada súbita?

De um lado, o setor produtivo demanda maiores empréstimos para enfrentar a crise. De outro, o País distribui autorização, ainda que seja por meio de liminares e outras medidas legais, para que as empresas não paguem fornecedores, não paguem conta de água e luz, não paguem impostos nem dívidas. É preciso não ser leniente com quem não paga suas obrigações. Toda vez que você permite que alguém não pague dívidas está pondo em risco a sobrevivência de quem não recebe e dificultando o acesso ao crédito. Está faltando discernimento e técnica para saber quais são os grupos vulneráveis que precisam de auxílio para sobreviver neste momento e quem são os oportunistas que estão deixando de pagar as suas obrigações ao se aproveitar desse pânico generalizado.

Essa falta de discernimento se aplica também ao Legislativo? A Câmara aprovou na segunda-feira 13 uma ajuda de quase R$ 90 bilhões aos estados como compensação às perdas de ICMS…

Vamos entender o seguinte: não há como compensar perda de ICMS. No fundo você está pegando renda do futuro para que os estados possam pagar suas despesas obrigatórias, como folha de pagamento, além de gastos adicionais com a saúde. Esse dinheiro não é gratuito. Ele sai de uma tributação maior que será arcada pela população quando a pandemia passar. Esse é um bom exemplo da falta de coordenação dos Poderes.

Por quê?

O Supremo Tribunal Federal deu uma liminar para alguns estados não terem de pagar o serviço da dívida este ano — aparentemente, para ajudar na saúde. O Ministério da Saúde também liberou recursos para os estados poderem lidar com a pandemia. Agora o Congresso diz: “Vou garantir que, apesar de o país estar mais pobre, os estados irão receber o valor dos impostos como recebiam antes”. Além do mais, os estados não precisam pagar as dívidas com bancos oficiais. Então os Três Poderes deram aos estados recursos para lidar com o mesmo problema. Só que o bolso é um só. E esses recursos irão para a saúde?

A maioria dos estados já enfrentava alto endividamento antes da pandemia. Faltam recursos para as despesas correntes…

A impressão que dá, infelizmente, é que muitos estão se aproveitando da situação de pânico para financiar seus gastos obrigatórios. Toda essa generosidade concedida pelo STF, pelo Ministério da Economia e pelo Congresso — com o bolso da sociedade — vai virar pagamento da folha salarial dos servidores e muito pouco será investido em hospitais de campanha e em equipamentos médicos. Será importante avaliar, daqui a seis meses, quanto desse dinheiro virou de fato gasto com saúde. Alguns estados deram aumentos expressivos aos servidores no ano passado, não fizeram os ajustes necessários e agora, no meio de uma crise imensa, quando vai faltar emprego e renda, pedem à sociedade que pegue uma dívida a mais para que eles paguem os reajustes salariais.

Chegue ou não à saúde, esse dinheiro fará falta em outro lugar, certo?

Dinheiro vai faltar. Teremos baixo crescimento, talvez uma depressão, taxas de juros maiores e muita gente desistindo do Brasil. Estamos assistindo há muito tempo os estrangeiros indo embora. Eles consideram o País muito caótico e preferem trabalhar em outro lugar. Mesmo depois da reforma da Previdência, que alguns achavam que resolveria tudo, a saída de recursos do Brasil só aumentou.

Ou seja, o futuro é preocupante…

Há uma chance alta de sairmos dessa crise bem mais pobres do que entramos — e bem pior do que os demais países. Teremos uma recessão severa. O seu tamanho e a sua duração nós só vamos saber lá na frente.

E por que os demais países sofrerão menos que o Brasil?

Eles irão enfrentar a pandemia e, depois que ela passar, voltarão a crescer com um pouco mais de dívida. O Brasil, não. A permanecer esse descontrole, com falta de coordenação, corremos o risco de terminar a crise com depressão.

Há alguma chance de resolver isso a tempo de evitar o pior para o País?

O Brasil vem fazendo escolhas erradas há muito tempo. Basta ver o que fizemos na crise de 2008, quando adotamos intervenções de longo prazo, empréstimos subsidiados do BNDES, revisão no modelo regulatório, regras de conteúdo nacional… Jogamos uma fortuna de recursos públicos em projetos de investimento que fracassaram. O resultado é esta herança: estaleiros quebrados, uma indústria ineficiente, a Petrobras que quase quebrou, a transposição do São Francisco que não se sabe muito bem para que serve. Agora parece que mais uma vez estamos dando licença para que se tomem decisões absolutamente desastrosas. É crucial saber como o Estado intervém e de que forma.

Mas não é o que se vê…

O que se vê são setores da economia demandando linhas de crédito para pagar em 20 anos com taxa Selic e carência de cinco anos, outros dizendo que são estratégicos para o País. É o oportunismo de sempre, que causa nosso atraso. Não podemos achar que subsídio de longo prazo e proteção a empresas ineficientes é o caminho do desenvolvimento. Se continuarmos nessa toada teremos sempre baixo crescimento.

Entre as medidas anunciadas está a compensação para os trabalhadores que terão salários reduzidos. É uma forma eficiente de injetar recursos na economia?

A prioridade deveria ser essa: cuidar dos trabalhadores, dos informais, garantir renda, impedir que as empresas desapareçam. A política econômica não deveria se preocupar em transferir recursos para os estados e muito menos conceder empréstimos de longo prazo. Esse oportunismo, por mais que tenha boas intenções, acaba resultando em decisões equivocadas. É o que explica nosso atraso. E o que pode abrir espaço para uma crise muito severa mais à frente.

A postura pessoal do presidente Bolsonaro atrapalha ainda mais nesse sentido?

O que a gente tem hoje é um descontrole. O momento é particularmente grave para não haver uma liderança que saiba coordenar os processos e definir balizas que deem tranquilidade às ações do poder público. Estamos pagando o preço de ter uma gestão despreparada.

É nesse vácuo do poder público que a iniciativa privada tem se firmado como protagonista da busca de soluções para minimizar os efeitos da pandemia.

Isso tem sido incrível. A sociedade civil tem dado provas impressionantes não apenas de solidariedade como de sua capacidade de contribuir com um momento difícil do País. Empresas afirmando que não irão demitir e fazendo doações, universidades e centros de pesquisa trabalhando em busca de soluções na saúde. Isso tudo fica mais vívido pelo contraste com a postura do setor público, preocupado em garantir apenas seus gastos correntes — e que reage com virulência a qualquer tentativa de reduzir salários do funcionalismo ou do rendimento dos securitários, que inclusive não pagam imposto de renda.

O que precisa ser feito para salvar os setores mais afetados?

Infelizmente a vida mudou. Não voltará a ser o que era. Setores inteiros ficarão destruídos. Perdeu-se riqueza. Não há mágica para fingir que o País não está mais pobre. Muitas iniciativas que parecem ser tomadas para salvar a economia vão tornar o futuro ainda pior. Uma delas é suspender o pagamento de dívidas coma a União sem saber para onde vai o dinheiro. O poder público deveria garantir renda e não legitimar um calote generalizado.

E se isso não for feito?

Vamos ver qual o Brasil que vai emergir dessa crise. Estamos diante de dois Brasis. Um solidário, que quer ajudar a sociedade, manter emprego, pagar fornecedores e dívidas. E temos o oportunista, que pede crédito subsidiado, proteção contra a concorrência, regras de conteúdo nacional e quer garantir o interesse dos servidores. Na nossa história, tem vencido o velho oportunismo. Tomara que desta vez seja diferente.

Por Celso Masson, na Revista Isto É Dinheiro


Para saber mais, clique aqui.


Para saber mais sobre o livro, clique aqui. 

Teatro completo





Para saber mais, clique aqui