A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia,
disse ao jornal O Estado de S. Paulo que a revisão do foro
privilegiado para parlamentares favorece a Lava Jato e defendeu as três outras
medidas consideradas fundamentais pela força-tarefa para o êxito da operação:
delação premiada, prisões preventivas e execução de pena após condenação em segunda
instância. Nenhuma delas é unanimidade no STF. Alertou contra excessos. “Em
nome do combate à corrupção não se pode atropelar a Constituição nem a lei.”
Alvo de ataques pelo desempate no julgamento que delegou ao Legislativo
autorizar ou não a suspensão de mandatos, Cármen admitiu que seu voto foi
“extremamente conturbado” e fez uma autocrítica: “Não consegui dar clareza ao
princípio de que não se pode romper a separação de Poderes”. E ironizou os
deputados do Rio que tentaram soltar três colegas: “Confundiram para
confundir”.
Estado: A
votação sobre o foro privilegiado foi, de certa forma, um reencontro do Supremo
com a opinião pública?
Cármem Lúcia: Pode
ter sido um reencontro, mas por coincidência, porque ele não foi pautado por
isso. Já vinha desde maio, teve um pedido de vista, foi liberado agora no final
de setembro e imediatamente coloquei na pauta porque é importante.
Estado: O
decano Celso de Mello antecipou voto para ratificar a maioria expressiva,
quebrando o Fla-Flu do STF. Foi um recado para a sociedade?
Cármem Lúcia: Quanto
mais os ministros estiverem afinados num tema, mais a jurisprudência tende a
permanecer e fortalecer o STF. Isso passa segurança. Com 6 a 5, uma mudança de
ministro pode gerar nova jurisprudência.
Estado: A
revisão do foro vai resolver todos os males da Justiça brasileira?
Cármem Lúcia: Não,
um juiz de primeiro grau não resolve tudo, mas muda a forma e pode ser mais
rápido na prestação da jurisdição. Numa República, todo mundo tem de ser
julgado pelo juiz natural. Você não pode, já no artigo primeiro da
Constituição, ter estabelecido a República, que tem na igualdade o seu
fundamento, e depois desigualar.
Estado: A
revisão do foro não pode gerar uma enxurrada de questionamentos?
Cármem Lúcia: Todos
os casos que vêm a juízo têm alguma dúvida e toda nova lei gera perplexidade na
interpretação, na forma de aplicação. Se vierem dúvidas, e não acho que serão
tantas assim, serão resolvidas e, dentro de pouco tempo, isso vai chegar a um
consenso.
Estado: Para
políticos, é melhor um julgamento por 11 ministros, ao vivo, ou por um juiz que
ele conhece, sem holofotes?
Cármem Lúcia: O
importante é a garantia da igualdade, para o político e para quem não é
político. Não se deve presumir que o juiz fica vulnerável à pressão ou à
presença ali e o Ministério Público tem que ficar alerta, questionar, recorrer.
Estado: A
revisão do foro privilegiado favorece ou prejudica a Lava Jato?
Cármem Lúcia: Favorece,
porque faz com que aquilo que é relativo à Lava Jato seja julgado de maneira
mais rápida e separa o que diz respeito a mandato, o que não diz, o que é
anterior, o que não é. Portanto nós teremos maior celeridade. Os processos da
Lava Jato precisam ser julgados. A sociedade espera uma resposta, quer para
condenar, quer para dizer que determinadas pessoas sejam absolvidas. É preciso
que se julguem os crimes de corrupção, que ninguém suporta mais.
Estado: Diante
da exaustão com a corrupção, os fins justificam os meios?
Cármem Lúcia: A
corrupção precisa ser combatida e a lei, cumprida. Em nome do combate à
corrupção não se pode atropelar a Constituição nem a lei.
Estado: Não
é importante concluir logo o julgamento do foro? Precisava de vista?
Cármem Lúcia: É
importante concluir. O ministro Dias Toffoli tem direito à vista, mas tenho
certeza de que vai dar a celeridade necessária para que isso volte
imediatamente.
Estado: Com
processos migrando para a primeira instância, é hora de tirar das turmas e
devolver as matérias penais contra parlamentares para o plenário?
Cármem Lúcia: O
plenário tem um número enorme de processos aguardando, com grande importância
para o País. No julgamento da ação penal 470 (mensalão) foram praticamente
quatro meses, com tudo paralisado. Então, é preciso que a gente realmente só
leve ao plenário aquilo que seja conflitante nas turmas. Tudo o mais não
precisa.
Estado: O
julgamento sobre a execução de pena após condenação em segundo grau está entre
suas prioridades?
Cármem Lúcia: Sou
a favor da execução após decisão de segunda instância e tudo o que é importante
para o País é prioritário, mas já há decisões consolidadas sobre isso e colocar
de novo em pauta pode não ter urgência. Talvez por isso o ministro (Marco
Aurélio Mello) não tenha ainda liberado.
Estado: Sem
a prisão em segunda instância, continua a protelação eterna?
Cármem Lúcia: Esse
é um problema. Não dá para manter um sistema feito para que se possa protelar
para sempre a finalização e o Judiciário não dar uma resposta a isso. Diante de
evidências de que a pessoa se vale do direito para litigar indefinidamente, o
Poder Judiciário deve usar os instrumentos de que dispõe para dar uma resposta.
Estado: E
as prisões preventivas?
Cármem Lúcia: Prisão
preventiva é sempre fundamentada, não vejo abuso nenhum.
Estado: A
delação premiada é tida como fundamental para a Lava Jato, mas há quem, até no
STF, defenda a revisão.
Cármem Lúcia: A
colaboração premiada é um instituto que veio pra ficar e é da maior
significação. Não se consegue investigar e apurar dados de uma organização sem
alguém lá de dentro.
Estado: O
excesso de benesses da delação da JBS foram um ponto fora da curva?
Cármem Lúcia: Talvez
tenha sido, mas lei nova precisa ser interpretada e não combatida. E o próprio
ex-procurador geral (Rodrigo Janot) pediu a revisão.
Estado: Mas
depois de um estrago enorme que atingiu o presidente da República.
Cármem Lúcia: É
uma lição. Eu não sou do MP, mas, diante de fatos graves que agridem a
sociedade inteira, imagino que a tendência seja buscar a apuração a qualquer
custo. Nesse caso, o custo foi alto mesmo. Mas é preciso que todos sejam
investigado diante de determinados relatos.
Estado: Janot
lançou uma névoa de suspeitas sobre ministros do STF …
Cármem Lúcia: Mandei
ofício para a PGR e para a Polícia Federal e espero que deem uma solução
imediatamente. Não pode pairar nenhuma gota de dúvida sobre a correição, a
licitude dos atos de ministros do STF ou de qualquer juiz. Até o fim de
dezembro, quero uma solução.
Estado: O
STF e a senhora sofreram desgaste com a decisão das medidas cautelares para
parlamentares. Doeu?
Cármem Lúcia: Claro
que não é bom. É ruim não tanto o desgaste, mas não ter ficado claro o
resultado. Não consegui dar clareza ao princípio de que não se pode romper a
separação de poderes e que cabe ao Legislativo manter ou não a decisão judicial
de suspender o mandato, como acontece desde sempre em caso de prisão.
Estado: Para
a opinião pública, o STF abriu mão de seu poder para o Legislativo e saiu
enfraquecido.
Cármem Lúcia: O
STF pode ter saído até mal compreendido e enfraquecido, para usar sua
expressão, a partir dessa má compreensão, mas sai fortalecido no sentido de que
nós mantivemos a compreensão majoritária de que a Constituição estabelece os
três Poderes como base de uma República democrática. A opinião pública queria
que a decisão do STF valesse independentemente das consequências para o outro
poder, mas o STF fez o que tinha de fazer, como determina a Constituição, que
enaltece o mandato para garantir a soberania do voto popular.
Estado: Presidentes
do STF têm de agir politicamente, além de juridicamente?
Cármem Lúcia: Têm
a obrigação de pensar no que é bom para o Brasil.
Estado: Ou
seja, evitar crises?
Cármem Lúcia: Evitar
crises, não. Resolver crises. Mas não pode deixar de raciocinar tecnicamente. O
voto que eu apresentei rapidamente, de forma extremamente conturbada, às 22
horas, não tem nada de político, nem poderia ter, até porque o raciocínio
político de partidos eu nem tenho.
Estado: A
Alerj usou o STF para soltar deputados. A decisão das medidas cautelares abriu
uma Caixa de Pandora?
Cármem Lúcia: Não.
Nós discutimos o que não era prisão e lá havia prisão. Uma coisa não tem nada a
ver com a outra.
Estado: Misturaram
as coisas?
Cármem Lúcia: Ou
por inadvertência ou por alguma razão que eu não sei explicar, confundiram para
confundir mesmo. Confundiram com vontade.
Estado: O
STF pagou o pato?
Cármem Lúcia: Não
aceita pagar o pato, não. Exige que se respeite a decisão dele nos termos que
foi dada. Nós discutimos que medidas cautelares diversas da prisão são
aplicáveis a todos. Nada a ver com a prisão, portanto.
Estado: O
julgamento do STF valeu apenas para parlamentares federais?
Cármem Lúcia: Sim.
Está na ementa.
Estado: E
os conflitos no STF?
Cármem Lúcia: São
compreensões de mundo diferentes e não há que se falar em que o diferente seja
adversário ou inimigo, porque senão nós não conseguimos construir consensos.
Estado: Há
tendência de desqualificar as pessoas do ponto de vista moral?
Cármem Lúcia: Isso
é muito preocupante, porque não se convive harmonicamente numa sociedade em que
todo o diferente seja imoral, ímprobo. Nos espaços virtuais, se destrói uma vida
em cinco minutos. É preciso resistir a isso, porque o diferente é que nos abre
para as mudanças e transformações.
Jornal de Brasília
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