sábado, 12 de agosto de 2017

O lugar de coração partido

   
Zequinha mal esperou o apresentador do circo solicitar, ao microfone, duas crianças da plateia para participar de um número com o palhaço Pirlipimpim. Num repente, desgarrou-se dos braços da mãe e correu em direção ao tablado. O garoto de apenas sete anos era uma graça. Desinibido, era a atração nas festas de aniversário. Cantava, dançava, recitava, contava piadas e apresentava pequenos esquetes concebidos por ele, sem auxílio de quem mais experimentado na lida. Os versos e esquetes conseguia elaborar na forma de cordel, estilo que assimilara como que por osmose do pai. O velho José, desde sempre, entoava em seus ouvidos versos populares para embalá-lo no sono. 

   Dia sim e o outro também a molecada acorria à casa do menino prodígio, intimando-o para a pelada que invariavelmente iniciava às 16 para só findar no escuro, ao redor das 19 horas. Isso porque Maria Santa surgia do nada, varinha fina que garimpava no pé de amora determinando o término da brincadeira. Todavia, antes de se apresentar, a mãe permanecia escondida, encantada com os dribles ligeiros do filho, as arrancadas fulminantes, os passes precisos e os gols incrivelmente encantadores que colocavam os arqueiros prostrados no chão de terra batida.

   Como a pobreza do lugar era extrema, ainda no colo Zequinha seguia com os pais para a feira livre onde exploravam banca de frutas de época. Com nove meses já gritava “lalanja feguês por um leal a duza”. Dois anos e conseguia devolver o troco corretamente se o freguês pagasse com nota de um, dois, cinco ou dez reais. Com três anos de idade e já tomava conta da banca de frutas, sozinho, liberando os pais para uma outra barraca que a família montara para comercializar deliciosos pastéis de carne e queijo, estalados na hora.
   O velho José professava a fé espírita, Maria Santa a católica, e jamais se desentenderam com as diferenças religiosas. De modo que incutiram no filho uma fina percepção quanto ao ecumenismo; e que o respeito e a generosidade eram os ingredientes milagrosos capazes de unificar as pessoas. E assim ensinaram os benefícios da compreensão, da indulgência, da tolerância religiosa, condições indispensáveis para alcançar paz no seio dos indivíduos e dos povos.

- Religião, mulher e time de futebol cada um tem o seu e não se discute – pontificava compenetrado o pai.

- Devemos respeitar a escolha de cada um - complementava a mãe.

   A chegada da idade escolar foi encontrar a família apreensiva. Zequinha mais eufórico que alarmado. Ansiava, aluno, envergar o uniforme, possuir o próprio caderno de caligrafia, manusear seus livros de figuras engraçadas, cativar o estojo de lápis coloridos. Como ocorria com os meninos que adorava observar, vestidos de bermuda azul e camiseta branca com finas listras vermelhas dirigindo-se falantes ao educandário municipal.


   Porém, do alto de sua tenra idade observava também inúmeras outras crianças, muitas de seu tamanho e idade, que chamava pelo nome e sobrenome, vizinhos de rua, outrora de peladas, escravizados pelo crack, pelo oxi, pela lata de cola de sapateiro comprimida no nariz; passos, trejeitos e voz fadados à eterna embriaguês. A mãe orientava: “quem não vai pra escola se perde na cola e no solvente de tinta”. E que a vida, nas ruas, transformava os filhos em crianças-zumbis, despojados de vontade e alma, com o coração partido em pedaços. E repetia o mantra incansavelmente para alertar o filho.

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