segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Como se repudia o asco


    Zeiri estava inquieto. Não parava um só segundo correndo de um lado para outro, descobrindo cada quadrante da nova casa em que a família acabara de se instalar, em Argel.

   A família se fizera em Constantina quando o pai, Deval, desiludiu-se da vida tortuosa e promíscua que levava na terra natal, Paris, e resolveu fazer a vida na África do Norte. Chegou pelo mediterrâneo e na primeira semana encontrou a mulher de sua vida, a bela, adorável e sensual Jamilat Síria com quem se casou e partiu em busca de uma boa cidade para morar. Passaram por Tizi-Uzu, Oran, Anaba, até se decidirem por Constantina, onde fixaram residência e viveram inesquecíveis dez anos de plena felicidade.

   A chegada do filho Zeiri Thiers e a preocupação com sua formação e futuro os levaram a mudar para a capital onde compraram um amplo sobrado, o mais imponente de Argel.

   Deval enriqueceu na África. Já era um homem importante nas rodas empresariais quando lidava com a produção de tabaco, algodão e vinhas. Mas se estabeleceu em definitivo no rol dos gigantescos empreendedores do continente quando se enveredou pela indústria da energia, a extração e comercialização do petróleo.

   Portanto, mudar-se para a capital era uma medida mais que necessária, era, também, uma diligência imposta pelas circunstâncias, pela dinâmica dos negócios, e pela expansão da economia. De início a belíssima Jamilat impôs resistência à proposta de mudança, mas, poço de compreensão e generosidade, logo estava ela atuando como fonte de estímulo, incentivando todos, inclusive o filho; e passaram a ver na transferência de cidade uma nova e promissora aventura.

   Deval deixou a mulher, o filho e os criados cuidando da organização da mudança e foi para a reunião com Ferhat Abbas, chefe do Governo Provisório da República Argelina.

   Era um entusiasta da libertação da Argélia. Manifestava-se publicamente em reuniões abertas e, sobretudo, através de artigos que publicava na imprensa internacional, o que acabou por indispô-lo de forma irreversível com o governo da França que passou a acusá-lo de alta traição.

   Sabia que a agressiva política colonialista que seu país impunha ao continente africano era inócua, dispendiosa, desumana, ineficaz, e apenas agravava a situação. Enquanto os europeus dominavam completamente a economia controlando o comércio, a produção primária e a indústria, quase dois milhões de beberes viviam na extrema pobreza. Com os franceses ocupando as melhores terras, os mais produtivos vales, a população local foi lançada ao desterro, ao êxodo rural, a um deslocamento interno sem precedentes, levando as cidades ao estrangulamento; a proliferação descontrolada da miséria, a prostituição, a criminalidade e a corrupção endêmica. A população sobrevivia de esmolas e da caridade.

   Estava ali formado o cenário, o caldo político para as ideologias redentoras, arrebatadoras, sebastianistas. Desigualdade extrema e miséria generalizada são os insumos de que se alimentam os extremistas de todos os matizes, os radicais de todas as religiões, os ortodoxos de todas as correntes, e os políticos de todas as facções ideológicas, independentemente do tempo, independentemente do espaço.


   Os atentados políticos perpetrados pelos inumeráveis grupos emancipacionistas se intensificaram tanto quanto a repressão encetada pelo exército francês de ocupação. Os dois lados disputavam qual dispunha de maior capacidade e engenhosidade para no outro infligir mais dor, revolta, suplício e tortura.

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