Quase
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Cesariny declamando "Quase".
Biografia
Adriana Calcanhoto e "Eu não sou eu nem o outro".
Caranguejola
•Mário de Sá Carneiro (1890-1916), exemplar digitalizado do livro editado pela Biblioteca Nacional de Lisboa para a comemoração do centenário do escritor
Outras obras
•A Confissão de Lúcio
•Dispersão
•Sete Canções de Declínio
•Dispersão e Indícios de Ouro
•Bárbaro
segunda-feira, 26 de maio de 2014
segunda-feira, 19 de maio de 2014
Fábulas de Antônio Carlos
Sobre Raposas-escorpiões
A Raposa resolveu se dedicar à psique, à alma, ao espírito, à personalidade das pessoas. E o faria através do estudo e da análise do comportamento humano, se debruçando mais amiúde à reconciliação de casais.
Foi estudar nas melhores faculdades brasileiras e, em todos os cursos, defendeu teses homéricas, profundas, que trouxeram verdadeira revolução ao desenvolvimento da ciência.
Concluído o mestrado, doutorado e o pós-doutorado, julgou-se em condições de suceder Deus em poder e glória, e passou a ostentar no nome a alcunha ‘Khristós’.
No campo da psicologia educacional, por exemplo, inovou radicalmente, suprimindo gramática e Camões dos estudos da língua portuguesa e ordenando queimar em praça pública todos os livros de matemática. No lugar de Camões fez inserir, no currículo escolar, a vida do coronel da Cavalaria-Auxiliar dos Campos Gerais Silvério dos Reis, agora elevado à condição de herói nacional. E convenceu a nata dos educadores a substituir matemática por Istudo da Incrusão Suciá que contemplava Participação & Cidadania, Ações afirmativas & Políticas públicas contra as desigualdades raciais, e Perspectivas de gênero & Responsabilidade Social.
Na psicologia industrial adotou princípios e métodos psicológicos relativos ao aumento da produção que passaram pela reestatização da economia e pela criação de uma república sindical irrigada à peleguismo e Whisky escocês 12 anos.
Reinseriu na psicologia social as velhas práticas clientelistas, substituindo o antigo par de botinas por cestas básicas e bolsas-esmolas, oxigenando as relações humanas no tabuleiro comunitário.
A inesgotável bagagem teórica da Raposa, acumulada em décadas de cursos e estudos, não manteve seu nível intelectual muito distante dos ostentados pelos jumentos e porcos do mato, a ponto de Henry Lewis tê-la repreendido em sonhos alegando que a escolada psicóloga “não seria capaz de escrever o nome OTO de trás para a frente”.
Mas nada a demoveu de se dedicar, de corpo e alma, à orientação de casais com problemas conjugais. O problema? Não apareciam pacientes, sequer um, unzinho que fosse. É que toda a vizinhança já sabia – e fazia questão de divulgar- que a consultora sentimental redentora de casamentos destruídos e semi-destroçados andava às turras com os próprios familiares, o marido encarecendo a separação pela enésima vez. De modo que, aparecendo a primeira vítima-freguesa ficou mais feliz do que pinto em restolho de lixo. Tinham em comum a vaidade, o ar esnobe, a empáfia, a ostentação, a ganância desmedida, e o costume de caluniar e apregoar mentiras.
Sem dar tempo sequer para a paciente se apresentar, a Raposa foi logo se adiantando:
- É simples, sem mistérios, sem viés de complexidade científica: seu casamento será restaurado prontamente. – E prosseguiu tomada de autoridade acadêmica: - Basta internalizar na parte mais indevassável e profunda do seu ser que, doravante, sua primeira prioridade será você; e repetir incessantemente que sua segunda prioridade será também você; e apregoar, sem traço de constrangimento ou remorso, que a sua terceira prioridade será, rigorosamente, você.
Como que arrebatadas por um espírito terrífico recém-fugido da escuridão do Tártaro, ambas ecoaram em uníssono:
- O resto é resto.
Então passaram a se elogiar mutuamente, trocando presentes, jurando amizade eterna, urdindo tramas e ciladas contra seus companheiros. A troca de bajulação foi tamanha que esgotaram o vocabulário das línguas conhecidas, exaurindo o repertório de palavras e expressões toscas e chulas. Apesar de Raposas, haviam tomado dos escorpiões o caráter.
E marcaram o reencontro para o mês seguinte.
No dia marcado, decaídas, ostentavam colossais olheiras em função do oceano de lágrimas vertidas, pois que ambas haviam perdido os companheiros. Os respectivos maridos enfadaram-se das raposas-esposas que só conseguiam rastejar do jeito sinistro e traiçoero dos escorpiões. E como eram daqueles senhores de vida e luz que habitam as estrelas, foram ganhar a vida alhures, nas alturas onde só águias e arcanjos arriscam alcançar.
Moral da história: aunque la mona se vista de seda, mona se queda. Mesmo vestida de seda, a macaca será sempre macaca. Os adornos – teóricos e físicos – jamais encobrirão os grandes defeitos, aqueles que se referem ao caráter.
A Raposa resolveu se dedicar à psique, à alma, ao espírito, à personalidade das pessoas. E o faria através do estudo e da análise do comportamento humano, se debruçando mais amiúde à reconciliação de casais.
Foi estudar nas melhores faculdades brasileiras e, em todos os cursos, defendeu teses homéricas, profundas, que trouxeram verdadeira revolução ao desenvolvimento da ciência.
Concluído o mestrado, doutorado e o pós-doutorado, julgou-se em condições de suceder Deus em poder e glória, e passou a ostentar no nome a alcunha ‘Khristós’.
No campo da psicologia educacional, por exemplo, inovou radicalmente, suprimindo gramática e Camões dos estudos da língua portuguesa e ordenando queimar em praça pública todos os livros de matemática. No lugar de Camões fez inserir, no currículo escolar, a vida do coronel da Cavalaria-Auxiliar dos Campos Gerais Silvério dos Reis, agora elevado à condição de herói nacional. E convenceu a nata dos educadores a substituir matemática por Istudo da Incrusão Suciá que contemplava Participação & Cidadania, Ações afirmativas & Políticas públicas contra as desigualdades raciais, e Perspectivas de gênero & Responsabilidade Social.
Na psicologia industrial adotou princípios e métodos psicológicos relativos ao aumento da produção que passaram pela reestatização da economia e pela criação de uma república sindical irrigada à peleguismo e Whisky escocês 12 anos.
Reinseriu na psicologia social as velhas práticas clientelistas, substituindo o antigo par de botinas por cestas básicas e bolsas-esmolas, oxigenando as relações humanas no tabuleiro comunitário.
A inesgotável bagagem teórica da Raposa, acumulada em décadas de cursos e estudos, não manteve seu nível intelectual muito distante dos ostentados pelos jumentos e porcos do mato, a ponto de Henry Lewis tê-la repreendido em sonhos alegando que a escolada psicóloga “não seria capaz de escrever o nome OTO de trás para a frente”.
Mas nada a demoveu de se dedicar, de corpo e alma, à orientação de casais com problemas conjugais. O problema? Não apareciam pacientes, sequer um, unzinho que fosse. É que toda a vizinhança já sabia – e fazia questão de divulgar- que a consultora sentimental redentora de casamentos destruídos e semi-destroçados andava às turras com os próprios familiares, o marido encarecendo a separação pela enésima vez. De modo que, aparecendo a primeira vítima-freguesa ficou mais feliz do que pinto em restolho de lixo. Tinham em comum a vaidade, o ar esnobe, a empáfia, a ostentação, a ganância desmedida, e o costume de caluniar e apregoar mentiras.
Sem dar tempo sequer para a paciente se apresentar, a Raposa foi logo se adiantando:
- É simples, sem mistérios, sem viés de complexidade científica: seu casamento será restaurado prontamente. – E prosseguiu tomada de autoridade acadêmica: - Basta internalizar na parte mais indevassável e profunda do seu ser que, doravante, sua primeira prioridade será você; e repetir incessantemente que sua segunda prioridade será também você; e apregoar, sem traço de constrangimento ou remorso, que a sua terceira prioridade será, rigorosamente, você.
Como que arrebatadas por um espírito terrífico recém-fugido da escuridão do Tártaro, ambas ecoaram em uníssono:
- O resto é resto.
Então passaram a se elogiar mutuamente, trocando presentes, jurando amizade eterna, urdindo tramas e ciladas contra seus companheiros. A troca de bajulação foi tamanha que esgotaram o vocabulário das línguas conhecidas, exaurindo o repertório de palavras e expressões toscas e chulas. Apesar de Raposas, haviam tomado dos escorpiões o caráter.
E marcaram o reencontro para o mês seguinte.
No dia marcado, decaídas, ostentavam colossais olheiras em função do oceano de lágrimas vertidas, pois que ambas haviam perdido os companheiros. Os respectivos maridos enfadaram-se das raposas-esposas que só conseguiam rastejar do jeito sinistro e traiçoero dos escorpiões. E como eram daqueles senhores de vida e luz que habitam as estrelas, foram ganhar a vida alhures, nas alturas onde só águias e arcanjos arriscam alcançar.
Moral da história: aunque la mona se vista de seda, mona se queda. Mesmo vestida de seda, a macaca será sempre macaca. Os adornos – teóricos e físicos – jamais encobrirão os grandes defeitos, aqueles que se referem ao caráter.
segunda-feira, 12 de maio de 2014
Sobre cantorias, escolhas & caráter
____________________________________
(...)
Humilhas, avanças, provocas, agrides, espancas, torturas, aprisionas indefesos – e quem bate e violenta é a tropa de choque?
Te tornaste carne, sexo e prostituta de incubo de Saturno –
e ensandecidamente acusas o outro de estupro? (...)
Leia o poema Uma oração para canalhas clicando aqui.
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(...)
Humilhas, avanças, provocas, agrides, espancas, torturas, aprisionas indefesos – e quem bate e violenta é a tropa de choque?
Te tornaste carne, sexo e prostituta de incubo de Saturno –
e ensandecidamente acusas o outro de estupro? (...)
Leia o poema Uma oração para canalhas clicando aqui.
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Sobre cantorias, escolhas & caráter
Os que gostam do velho Gonzagão jamais esquecem a bela melodia – não por acaso, sábia lição:
“(...) mas doutor, uma esmola pra um homem que é são
ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão (...)”
A bela obra é de Luiz Gonzaga e Zé Dantas e ficou no imaginário popular e nos anais da música popular brasileira como um libelo à coragem, um vigoroso protesto contra a cultura da esmola, da vassalagem e do clientelismo.
“Vozes da Seca” deveria ser uma de nossas mais cultuadas músicas, aquelas ditas “de travesseiro”. Infelizmente não é. E por quê? Uma simples incursão pela cantoria, pelos primorosos versos da composição, não deveria dar margem a dúvidas:
Seu doutô os nordestino têm muita gratidão
Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão
Mas doutô uma esmola a um homem qui é são
Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão
É por isso que pidimo proteção a vosmicê
Home pur nóis escuído para as rédias do pudê
Pois doutô dos vinte estado temos oito sem chovê
Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cumê
Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage
Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage
Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage
Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage
Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão
Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!
Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chão
Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos
Os que gostam do velho Gonzagão jamais esquecem a bela melodia – não por acaso, sábia lição:
“(...) mas doutor, uma esmola pra um homem que é são
ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão (...)”
A bela obra é de Luiz Gonzaga e Zé Dantas e ficou no imaginário popular e nos anais da música popular brasileira como um libelo à coragem, um vigoroso protesto contra a cultura da esmola, da vassalagem e do clientelismo.
“Vozes da Seca” deveria ser uma de nossas mais cultuadas músicas, aquelas ditas “de travesseiro”. Infelizmente não é. E por quê? Uma simples incursão pela cantoria, pelos primorosos versos da composição, não deveria dar margem a dúvidas:
Seu doutô os nordestino têm muita gratidão
Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão
Mas doutô uma esmola a um homem qui é são
Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão
É por isso que pidimo proteção a vosmicê
Home pur nóis escuído para as rédias do pudê
Pois doutô dos vinte estado temos oito sem chovê
Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cumê
Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage
Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage
Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage
Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage
Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão
Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!
Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chão
Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos
Gonzagão é como ficou conhecido Luiz Gonzaga do Nascimento, nascido em dezembro de 1912, cidade de Exu, e encantado em 1989, no Recife. Por tudo o que fez, foi coroado pelo povo "rei do baião".
Aprendeu a tocar sanfona com o pai e ainda adolescente ja se apresentava em festas e feiras livres. “Asa Branca”, elaborada em parceria com Humberto Teixeira, lhe traria a consagração definitiva.
Os antigos sempre souberam dos perigos da ‘generosidade’ estatal travestida quase que invariavelmente com nomes pomposos, mas que redundam sempre na velha e surrada esmola, na ‘compra’ de votos e consciências. Os mais sábios tentavam responder com exemplos, lições, ensinamentos aprendidos ao longo da história. E nem sempre lograram êxito. Quem não se lembra das frases simples – singelas e profundas – tecidas por nossos antepassados? Algumas atravessaram o tempo perpassando os séculos, da pré-história à era contemporânea. É como se estivessem indelevelmente tatuadas na memória humana. Talvez a mais incisiva seja: “Bem melhor que dar o peixe, é ensinar a pescar”.
Mas, pelo que se percebe, boa parte dos governos reluta em assimilar o ensinamento tão relevante para a cidadania. A maioria dos programas governamentais gravita em torno de uma cobiçada fábrica: a que produz torrentes de ilusões e votos.
Para dourar a pílula ou untá-la com uma casquinha de verniz, convencionou-se fazer referência a esse tipo de assistencialismo como “políticas & ações emergenciais para debelar a fome endêmica”. Nome que empresta pompa e circunstância ao ‘dar o peixe’, que resulta em vício, dependência, e na perda de algo caro e precioso para nossos avós, a vergonha na cara. Já quanto ao ‘ensinar a pescar’, à institucionalização de portas de saída; quanto ao abrir janelas, alargar horizontes, assegurar profissão, emprego ou renda sustentável, gerar oportunidades e democratizá-las – essas ações ficam para ad calendas graecas.
O Bolsa Família, por exemplo, é um dos mais importantes programas sociais do governo federal.
Concebido como um programa de transferência direta de renda, beneficia famílias em situação de pobreza, aquelas com renda mensal de R$ 60,01 a R$ 120,00 por pessoa. Contempla também as famílias que se encontram em situação de extrema pobreza, as que não conseguem renda mensal superior a R$ 60,00 por pessoa.
Para dourar a pílula ou untá-la com uma casquinha de verniz, convencionou-se fazer referência a esse tipo de assistencialismo como “políticas & ações emergenciais para debelar a fome endêmica”. Nome que empresta pompa e circunstância ao ‘dar o peixe’, que resulta em vício, dependência, e na perda de algo caro e precioso para nossos avós, a vergonha na cara. Já quanto ao ‘ensinar a pescar’, à institucionalização de portas de saída; quanto ao abrir janelas, alargar horizontes, assegurar profissão, emprego ou renda sustentável, gerar oportunidades e democratizá-las – essas ações ficam para ad calendas graecas.
O Bolsa Família, por exemplo, é um dos mais importantes programas sociais do governo federal.
Concebido como um programa de transferência direta de renda, beneficia famílias em situação de pobreza, aquelas com renda mensal de R$ 60,01 a R$ 120,00 por pessoa. Contempla também as famílias que se encontram em situação de extrema pobreza, as que não conseguem renda mensal superior a R$ 60,00 por pessoa.
As origens do programa estão ligadas a governos estaduais e municipais, como o de Cristovam Buarque, que, quando governador de Brasília, implementou o Bolsa Escola, garantindo renda às famílias que, efetivamente, assegurassem a freqüência de seus filhos na escola. O governo de Fernando Henrique deu dimensão nacional ao programa.
Sob o ponto de vista emergencial o programa tem cumprido seus objetivos. Só no período de 2001 a 2004 foi o responsável por uma queda de mais de 20% no índice de desigualdade do país. A renda mensal das famílias atendidas aumentou nada menos que 21%. São vitórias retumbantes, expressivas, a se comemorar com desfiles, festanças & fogos de artifício.
Portanto, enganam-se (ou estão obliterados pela má-fé) os que desdenham o programa. Na parte que funciona, os benefícios são eloqüentes. O programa exige, por exemplo, que todas as crianças com idade entre 6 e 15 anos tenham freqüência escolar mínima de 85%; e as que se encontram em idade de vacinação devam ter a carteira em dia. Das gestantes exige o exame pré-natal. A punição para os que descumprem requisitos pode levar à exclusão do programa.
Porém, se as vantagens e qualidades não podem ser ignoradas, os problemas também não.
E um dos inaceitáveis é que o governo faz vista grossa dos sistemas de avaliação e controle. Só a partir do final de 2004 se instituiu a sistemática de controle da freqüência escolar. E as regras de exclusão só foram estabelecidas no findar de 2005. Adiantou? Nada. Jamais alguém foi excluído do programa. Como os controles são frágeis e não há perigo de punições, muitas famílias tiraram as crianças da escola.
Outro problema da mais alta gravidade – e não há quem ignore – é que o programa se amesquinha à medida que não disponibiliza portas de saída, o que redunda em manter as famílias aprisionadas à miséria, à dependência indigente. Sinônimo da megaindústria da esmola? Megafábrica de votos.
Conseqüência imediata: ao mesmo tempo em que cresce o número de simpatizantes e uma potencial massa de votos, cresce também – entre os dependentes do Bolsa Família – o abandono escolar.
Apenas quando, com mais atenção, nos debruçamos sobre os números do Bolsa Família é que conseguimos nos dar conta do gigantismo e da real dimensão do programa. Um quarto da população do Brasil depende do Bolsa Família. São 45,8 milhões de habitantes, mais que toda a população da Argentina. E o mais grave, de todo inaceitável: as crianças beneficiárias não estão completando sequer os oito anos do ensino fundamental.
Tem sido cada vez mais comum cantores contemporâneos regravarem músicas antigas, sucessos do passado. Procura-se um para reconduzir “Vozes da Seca” às primeiras posições das paradas. Seria um tributo a Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Para os governos, uma lição sobre as melhores escolhas e opções, as que efetivamente levam à cidadania. E para a sociedade, uma mistura de beleza e encantamento com lições sobre o caráter e a vergonha na cara.
Antônio Carlos dos Santos – criador da metodologia de Planejamento Estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de Teatro Popular de Bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br
Portanto, enganam-se (ou estão obliterados pela má-fé) os que desdenham o programa. Na parte que funciona, os benefícios são eloqüentes. O programa exige, por exemplo, que todas as crianças com idade entre 6 e 15 anos tenham freqüência escolar mínima de 85%; e as que se encontram em idade de vacinação devam ter a carteira em dia. Das gestantes exige o exame pré-natal. A punição para os que descumprem requisitos pode levar à exclusão do programa.
Porém, se as vantagens e qualidades não podem ser ignoradas, os problemas também não.
E um dos inaceitáveis é que o governo faz vista grossa dos sistemas de avaliação e controle. Só a partir do final de 2004 se instituiu a sistemática de controle da freqüência escolar. E as regras de exclusão só foram estabelecidas no findar de 2005. Adiantou? Nada. Jamais alguém foi excluído do programa. Como os controles são frágeis e não há perigo de punições, muitas famílias tiraram as crianças da escola.
Outro problema da mais alta gravidade – e não há quem ignore – é que o programa se amesquinha à medida que não disponibiliza portas de saída, o que redunda em manter as famílias aprisionadas à miséria, à dependência indigente. Sinônimo da megaindústria da esmola? Megafábrica de votos.
Conseqüência imediata: ao mesmo tempo em que cresce o número de simpatizantes e uma potencial massa de votos, cresce também – entre os dependentes do Bolsa Família – o abandono escolar.
Apenas quando, com mais atenção, nos debruçamos sobre os números do Bolsa Família é que conseguimos nos dar conta do gigantismo e da real dimensão do programa. Um quarto da população do Brasil depende do Bolsa Família. São 45,8 milhões de habitantes, mais que toda a população da Argentina. E o mais grave, de todo inaceitável: as crianças beneficiárias não estão completando sequer os oito anos do ensino fundamental.
Tem sido cada vez mais comum cantores contemporâneos regravarem músicas antigas, sucessos do passado. Procura-se um para reconduzir “Vozes da Seca” às primeiras posições das paradas. Seria um tributo a Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Para os governos, uma lição sobre as melhores escolhas e opções, as que efetivamente levam à cidadania. E para a sociedade, uma mistura de beleza e encantamento com lições sobre o caráter e a vergonha na cara.
Antônio Carlos dos Santos – criador da metodologia de Planejamento Estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de Teatro Popular de Bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br
terça-feira, 6 de maio de 2014
sexta-feira, 2 de maio de 2014
A parte perdida da vida de Shakespeare
Da revista Veja
Cansado de responder à mesma pergunta aonde quer que fosse, o pesquisador e professor da Universidade de Columbia James Shapiro dedicou anos de sua vida para escrever o livro Quem Escreveu Shakespeare? – A História de Mais de Quatro Séculos de Disputa pela Herança de uma Autoria (tradução de Christian Schwartz e Liliana Negrello, Nossa Cultura, 376 páginas, 59 reais). “Escrevi esse livro não só para mim, que estou cansado de responder a essa questão, mas para todos os professores. Agora, quando ouvem essa pergunta, eles podem dizer: ‘Vão ler o livro do Shapiro’. Ele custou anos da minha vida, mas facilitou a de todo mundo”, diz, com bom humor o americano que foi uma das atrações da Flip deste ano.
Cansado de responder à mesma pergunta aonde quer que fosse, o pesquisador e professor da Universidade de Columbia James Shapiro dedicou anos de sua vida para escrever o livro Quem Escreveu Shakespeare? – A História de Mais de Quatro Séculos de Disputa pela Herança de uma Autoria (tradução de Christian Schwartz e Liliana Negrello, Nossa Cultura, 376 páginas, 59 reais). “Escrevi esse livro não só para mim, que estou cansado de responder a essa questão, mas para todos os professores. Agora, quando ouvem essa pergunta, eles podem dizer: ‘Vão ler o livro do Shapiro’. Ele custou anos da minha vida, mas facilitou a de todo mundo”, diz, com bom humor o americano que foi uma das atrações da Flip deste ano.
Estudioso de William Shakespeare há 25 anos, Shapiro já perdeu a conta de quantas vezes foi questionado sobre a autoria das obras do poeta e dramaturgo inglês. Segundo ele, já disseram que Shakespeare não escreveu Hamlet porque não havia sido capturado por piratas, como o personagem principal foi. “É muito perigoso criar um argumento dizendo que Hamlet era autobiográfico, coisa impossível de comprovar”, explica. Segundo o americano, entre os que duvidaram da autoria das peças de Shakespeare há gente inteligente como Mark Twain, Delia Bacon e até Sigmund Freud, que tentou utilizar o mesmo Hamlet para provar sua teoria do complexo de Édipo.
Os questionamentos sobre Shakespeare foram propiciados pela nebulosidade que encobre a vida do dramaturgo. Interpretações e inferências malucas sobre o autor inglês levaram Shapiro a se tornar o maior rival acadêmico de seu vizinho e amigo Stephen Greenblatt, professor da Universidade de Harvard e um dos maiores especialistas no tema. “Greenblatt cai na tentação de achar que sabe o suficiente sobre a vida de Shakespeare, mas não há evidências suficientes sobre ele”, diz. Apesar de se conhecerem há anos, a Flip foi o primeiro evento a reunir os dois num debate sobre o dramaturgo.
Para rebater as dúvidas, Shapiro oferece no livro um amplo painel da Inglaterra da época de Shakespeare (1564-1616). “Mesmo que eu não saiba muito da própria vida dele, sei o suficiente sobre o que estava acontecendo à sua volta”, diz o pesquisador, autor também de microbiografias de um ano na vida de Shakespeare. Depois da publicação de 1599: Um Ano na Vida de William Shakespeare, em 2005, ele agora trabalha em um livro sobre 1606, ano em que o dramaturgo inglês escreveu Rei Lear, Macbeth e A Tragédia de Antonio e Cleópatra. A obra deve levar até 10 anos para ficar pronta, ao fim dos quais Shapiro planeja se aposentar.
Leia abaixo a entrevista exclusiva de James Shapiro a VEJA Meus Livros, feita em Paraty.
Em que tipo de assuntos o senhor e Stephen Greenblatt discordam? A discordância é sobre a questão de autoria? Não discordamos sobre a questão da autoria. Discordamos quanto às inferências de Greenblatt: para ele, Hamlet fala da relação de Shakespeare com o pai e o filho, mas ele tanto podia estar pensando no pai ao escrever como no tio, na filha, no homem da mesa ao lado. Nós não sabemos. Não podemos entrar em sua cabeça. Tudo o que temos é a história que ele criou, que é ficção. É muito perigoso tentar tirar um fato de uma ficção. De forma semelhante, há muitas pessoas dizendo que outros autores escreveram Shakespeare, mas não há nenhuma evidência disso.
Em que tipo de situação as pessoas dizem isso? Vou dar um exemplo. Em Hamlet, o personagem principal é capturado por piratas. Shakespeare nunca foi capturado por piratas, mas Edward de Oxford, uns dos autores que as pessoas dizem ter escrito Shakespeare, foi capturado. Então, as pessoas fazem o seguinte silogismo: “Hamlet foi capturado por piratas, Oxford foi capturado por piratas, Shakespeare nunca foi capturado por piratas. Quem você acha que escreveu Hamlet?” É muito perigoso criar um argumento dizendo que Hamlet é autobiográfico. Pode ser, mas nós não sabemos como, onde e quando ele é autobiográfico.
Você deseja descobrir algo novo sobre Shakespeare? Sim. Não sei que novidade descobrirei e se vai acontecer. Eu quero entender como Shakespeare criou bons trabalhos literários e o que estava acontecendo em seu mundo, como a pressão política, o clima e a economia, coisas que existem nas peças que ele estava escrevendo. Para fazer isso, tenho que entender as questões que as pessoas fazem sobre Shakespeare. Uma delas, não importa aonde eu vou, não importa com quem eu estou falando, é: ‘Shakespeare escreveu Shakespeare?’. Estou tão cansado de responder a essa questão em todos os lugares que senti que tinha de escrever um livro para respondê-la.
Entre os intelectuais que fazem essa pergunta, está Sigmund Freud. O senhor acha que Freud começou a questionar a autoria de Shakespeare para usar a obra Hamlet como prova de sua teoria do complexo de Édipo? Quando era jovem, Freud achava que Shakespeare tinha escrito Shakespeare. Ele não tinha dúvidas. No entanto, em 1899, ele desenvolveu sua teoria de Édipo baseado na leitura da tragédia grega e, principalmente, na leitura de uma biografia de Shakespeare, que dizia que o dramaturgo estava passando pela crise que ele chamaria de Édipo quando escreveu Hamlet, porque seu pai tinha acabado de morrer. Ele teria escrito Hamlet, então, como forma de
trabalhar um trauma. Isso explicou para Freud como sua própria teoria estava certa e como ele estava apto para explicar a obra melhor do que ninguém. No entanto, 13 anos depois, um livro do mesmo autor da biografia foi publicado e , nele, o escritor disse que errou a data errada em que Shakespeare havia escrito o livro em dois anos. O certo é que o pai ainda estava vivo quando Shakespeare escreveu Hamlet. Para Freud, ou o livro não tinha nada a ver com a morte do pai ou outra pessoa escreveu essa obra. Freud decidiu que quem escreveu foi alguém que já tinha o pai morto. Freud é um gênio e, às vezes, gênios saem dos trilhos.
trabalhar um trauma. Isso explicou para Freud como sua própria teoria estava certa e como ele estava apto para explicar a obra melhor do que ninguém. No entanto, 13 anos depois, um livro do mesmo autor da biografia foi publicado e , nele, o escritor disse que errou a data errada em que Shakespeare havia escrito o livro em dois anos. O certo é que o pai ainda estava vivo quando Shakespeare escreveu Hamlet. Para Freud, ou o livro não tinha nada a ver com a morte do pai ou outra pessoa escreveu essa obra. Freud decidiu que quem escreveu foi alguém que já tinha o pai morto. Freud é um gênio e, às vezes, gênios saem dos trilhos.
O senhor está escrevendo outro livro sobre Shakespeare?Meu próximo livro é sobre o ano de 1606, no qual eu tento entender tudo o que aconteceu no período. Para mim, 1606 é um ano muito interessante por diversas razões. A primeira é que, na maior parte do ano, todos os teatros em Londres fecharam por causa da peste e muitas pessoas morreram por causa da doença. Eu me pergunto como era viver nessa realidade e como isso influenciou as peças que ele estava escrevendo. Macbeth foi escrita nesse ano. Em um momento da obra, Shakespeare descreve como um jovem morre antes que a flor que ele colocou em seu chapéu murchasse. Essa era a rapidez com que as pessoas morriam de peste. Quero entender a relação entre peste e criatividade. Minha outra motivação é que Shakespeare também publicou duas de suas principais peças nesse ano: Rei Lear e A Tragédia de Antonio e Cleópatra. Todas as três são boas tragédias.
Como o senhor passa da pesquisa ao texto? Eu não sei como cada informação pode ser importante, mas sei que, se eu acumular informação por anos, uma história emerge. Eu pesquiso, leio tudo o que foi publicado no ano que estou estudando, desde literatura até julgamentos. Uma das palavras-chave de Macbeth, por exemplo, é “equivocar-se”, que significa mentir, dizer suas coisas ao mesmo tempo, ser ambíguo. Para entender porque essa palavra era tão importante para Shakespeare, comecei a ler vários documentos, como convocações e cartas e descobri que todos na época estavam obcecados com ambiguidade.
Como o senhor tem tempo para ensinar e pesquisar? Eu não durmo e não tenho muitos hobbies. Se eu vivesse em Paraty, não seria capaz de escrever esse livro. O primeiro livro que escrevi me custou 15 anos. Dessa vez, a obra sobre 1606 levará menos tempo, algo em torno de 10 anos, porque eu sei como achar as coisas. Em 2015, estará pronto.
Como é o trabalho de pesquisa para as obras? O trabalho é muito solitário e não é divertido. Eu preferiria estar no cinema, em um jogo de beisebol, mas isso é o que eu faço. Eu não seria feliz se não fizesse isso. Quando não estou dormindo, estou pensando sobre isso. Nos últimos seis meses, você não teria gostado de morar comigo, porque penso nisso o tempo inteiro. É muito difícil ser uma pessoa legal quando você está escrevendo um livro. É como um demônio que entra em você. Quando eu estou terminando um livro, eu vou para Londres. Sentem minha falta, mas não tanto, porque, se eu estivesse terminando o livro em casa, eles gostariam que eu estivesse em Londres. Meu filho e minha mulher não me deixam escrever em casa. Eles falam para eu sair de casa e escrever em outro lugar.
O senhor sofre por não saber como Shakespeare era como pessoa? Eu adoraria saber como Shakespeare era como uma pessoa. Cinquenta anos depois de Shakespeare morrer, sua filha ainda estava viva, mas ninguém foi perguntar para ela como seu pai era. Nunca saberei como ele era, mas, se eu puder reconstruir seu mundo, suas peças, eu entenderei um pouco mais sobre o tipo de escritor que ele era e com quais tipos de coisa ele estava preocupado. Esse é o meu ponto particular de aproximação com Shakespeare. Ninguém mais faz isso. Gostaria de saber mais sobre ele, mas não tem jeito, só posso fantasiar como ele era.
É frustrante? Não. Existem coisas sobre minha mulher, com quem durmo há 20 anos, que eu nunca vou saber. Shakespeare morreu há 400 anos e eu nunca o conheci. Então, eu sei que eu nunca o conhecerei. Eu não fico frustrado, fico apenas desapontado por não saber.
Raissa Pascoal
quinta-feira, 1 de maio de 2014
450 anos de Shakespeare: uma singela homenagem
Há 450 anos nascia William Shakespeare, um dos grandes gênios da humanidade, que exerceria enorme influência no pensamento da civilização ocidental. Como singela homenagem aos momentos de prazer que o Bardo me propiciou, seguem trechos de algumas de suas peças:
“Não concedais à natureza mais do que aquilo que ela exige e a vida do homem será de tão baixo valor como a dos animais.” (Lear, em Rei Lear)
“‘Não está dentro de minha capacidade’, uma ova! Está em nós ser isso ou aquilo outro. Nossos corpos são jardins, dos quais nossas vontades são os jardineiros. [...] Se à balança de nossas vidas faltasse o prato da razão para estabilizar o outro, da sensualidade, o sangue e a baixeza de nossas natureza acabariam por nos conduzir a conclusões absurdamente grotescas. Mas dispomos da razão para resfriar nossos impulsos de paixão e fúria, os ardores de nossa carne, nossos desejos, as luxurias desenfreadas. Vejo, portanto, isso que você chama de amor como sendo mero rebentão ou enxerto.” (Iago, em Otelo)
“É morta… Não devia ser agora. Sempre seria tempo para ouvir-se essas palavras. Amanhã, volvendo trás amanhã e trás amanhã de novo. Vai, a pequenos passos, dia-a-dia, até a última sílaba do tempo inscrito. E todos esses nossos conténs têm alumiado aos tontos que nós somos nossos caminho para o pó da morte. Breve candeia, apaga-te! Que a vida é uma sombra ambulante: um pobre ator que gesticula em cena uma hora ou duas, depois não se ouve mais; um conto cheio de bulha e fúria, dito por um louco, significando nada.” (Macbeth, em Macbeth)
“Delírio! O meu pulso, como o seu, marca o tempo calmamente, e soa música saudável. Não é loucura o que eu proferi; é só me pôr à prova que repito, palavra por palavra, aquilo que a loucura embolaria. Mãe, pela graça divina, não passa em tua alma esse enganoso ungüento de que não é o teu delito que fala, mas a minha demência. Isso é apenas uma pele fina cobrindo tua alma gangrenada, enquanto a pútrida corrupção, em infecção oculta, corrói tudo por dentro. Confessa-te ao céu; arrepende-te do que se passou e evita o que há de vir; não joga estrume sobre ervas daninhas que elas crescem ainda com mais força. Perdoa-me por minha virtude: É! Na velhacaria destes tempos flácidos, a virtude tem que pedir perdão ao vício; sim, curvar-se e bajulá-lo pra que ele permita que ela o beneficie.” (Hamlet, em Hamlet)
“Em tempos de paz, nada fica melhor em um homem que a humildade e uma modesta calma. Mas, quando a guerra vem trovejar em nossos ouvidos, então imitem a ação do tigre: tencionem os músculos, evoquem todo o seu sangue, disfarcem sua natureza simpática com uma raiva cruel, dura. Depois, emprestem ao olhar um aspecto pavoroso, permitam-se ter os olhos esbugalhados; que, para enxergar, eles avancem nas órbitas, como canhões de bronze. Deixem as sobrancelhas tomarem conta do semblante: o cenho franzido sobre os olhos de modo tão temerário quanto um penhasco debruçado sobre o mar selvagem, e este lhe corroendo a base com a energia devastadora das águas.” (Rei, em Henrique V)
“Embora os altos crimes por eles perpetrados tenham me deixado em carne viva, ainda assim tomo o partido de minha razão, porquanto mais nobre, contra minha fúria. A ação mostra-se mais rara na virtude que na vingança. Em sendo eles penitentes, a única intenção de meu propósito agora pára de somar rugas à minha fronte.” (Próspero, em A Tempestade)
“Mas acontece que tal homem não existe, porque, meu irmão, os homens sabem aconselhar e consolar quando a dor é aquela que eles próprios não sentem. [...] Claro, claro, é obrigação de todo homem pedir paciência àqueles que se contorcem sob o peso da tristeza, mas não existe em homem algum nem a virtude nem a capacidade de ser tão moral assim quando é ele quem tem de suportar o mesmo fardo. Portanto, não me dês conselhos; meu desalento grita mais alto que tuas censuras.” (Leonato, em Muito Barulho por Nada)
“Apenas, meu bom amo, por mais que admiremos essa virtude, essa disciplina moral, rogo-lhe não nos tornemos estóicos ou insensíveis. Nem tão devotos da ética de Aristóteles a ponto de achar Ovídio desprezível. Apóie a lógica nos seus conhecimentos do mundo e pratique a retórica na conversa usual; inspire-se na música e na poesia e não tome da matemática e da metafísica mais do que o estômago pode suportar; o que não dá prazer não dá proveito. Em resumo, senhor, estude apenas o que lhe agradar.” (Trânio, em A Megera Domada)
Shakespeare muito me agrada. Espero que agrade ao leitor também…
Rodrigo Constantino, na Revista Veja
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