segunda-feira, 19 de maio de 2014

Fábulas de Antônio Carlos

Sobre Raposas-escorpiões

A Raposa resolveu se dedicar à psique, à alma, ao espírito, à personalidade das pessoas. E o faria através do estudo e da análise do comportamento humano, se debruçando mais amiúde à reconciliação de casais.

Foi estudar nas melhores faculdades brasileiras e, em todos os cursos, defendeu teses homéricas, profundas, que trouxeram verdadeira revolução ao desenvolvimento da ciência.

Concluído o mestrado, doutorado e o pós-doutorado, julgou-se em condições de suceder Deus em poder e glória, e passou a ostentar no nome a alcunha ‘Khristós’.

No campo da psicologia educacional, por exemplo, inovou radicalmente, suprimindo gramática e Camões dos estudos da língua portuguesa e ordenando queimar em praça pública todos os livros de matemática. No lugar de Camões fez inserir, no currículo escolar, a vida do coronel da Cavalaria-Auxiliar dos Campos Gerais Silvério dos Reis, agora elevado à condição de herói nacional. E convenceu a nata dos educadores a substituir matemática por Istudo da Incrusão Suciá que contemplava Participação & Cidadania, Ações afirmativas & Políticas públicas contra as desigualdades raciais, e Perspectivas de gênero & Responsabilidade Social.

Na psicologia industrial adotou princípios e métodos psicológicos relativos ao aumento da produção que passaram pela reestatização da economia e pela criação de uma república sindical irrigada à peleguismo e Whisky escocês 12 anos.

Reinseriu na psicologia social as velhas práticas clientelistas, substituindo o antigo par de botinas por cestas básicas e bolsas-esmolas, oxigenando as relações humanas no tabuleiro comunitário.

A inesgotável bagagem teórica da Raposa, acumulada em décadas de cursos e estudos, não manteve seu nível intelectual muito distante dos ostentados pelos jumentos e porcos do mato, a ponto de Henry Lewis tê-la repreendido em sonhos alegando que a escolada psicóloga “não seria capaz de escrever o nome OTO de trás para a frente”.

Mas nada a demoveu de se dedicar, de corpo e alma, à orientação de casais com problemas conjugais. O problema? Não apareciam pacientes, sequer um, unzinho que fosse. É que toda a vizinhança já sabia – e fazia questão de divulgar- que a consultora sentimental redentora de casamentos destruídos e semi-destroçados andava às turras com os próprios familiares, o marido encarecendo a separação pela enésima vez. De modo que, aparecendo a primeira vítima-freguesa ficou mais feliz do que pinto em restolho de lixo. Tinham em comum a vaidade, o ar esnobe, a empáfia, a ostentação, a ganância desmedida, e o costume de caluniar e apregoar mentiras.

Sem dar tempo sequer para a paciente se apresentar, a Raposa foi logo se adiantando:
- É simples, sem mistérios, sem viés de complexidade científica: seu casamento será restaurado prontamente. – E prosseguiu tomada de autoridade acadêmica: - Basta internalizar na parte mais indevassável e profunda do seu ser que, doravante, sua primeira prioridade será você; e repetir incessantemente que sua segunda prioridade será também você; e apregoar, sem traço de constrangimento ou remorso, que a sua terceira prioridade será, rigorosamente, você.

Como que arrebatadas por um espírito terrífico recém-fugido da escuridão do Tártaro, ambas ecoaram em uníssono:
- O resto é resto.

Então passaram a se elogiar mutuamente, trocando presentes, jurando amizade eterna, urdindo tramas e ciladas contra seus companheiros. A troca de bajulação foi tamanha que esgotaram o vocabulário das línguas conhecidas, exaurindo o repertório de palavras e expressões toscas e chulas. Apesar de Raposas, haviam tomado dos escorpiões o caráter.

E marcaram o reencontro para o mês seguinte.

No dia marcado, decaídas, ostentavam colossais olheiras em função do oceano de lágrimas vertidas, pois que ambas haviam perdido os companheiros. Os respectivos maridos enfadaram-se das raposas-esposas que só conseguiam rastejar do jeito sinistro e traiçoero dos escorpiões. E como eram daqueles senhores de vida e luz que habitam as estrelas, foram ganhar a vida alhures, nas alturas onde só águias e arcanjos arriscam alcançar.

Moral da história: aunque la mona se vista de seda, mona se queda. Mesmo vestida de seda, a macaca será sempre macaca. Os adornos – teóricos e físicos – jamais encobrirão os grandes defeitos, aqueles que se referem ao caráter.