segunda-feira, 12 de maio de 2014

Sobre cantorias, escolhas & caráter

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Humilhas, avanças, provocas, agrides, espancas, torturas, aprisionas indefesos – e quem bate e violenta é a tropa de choque?
Te tornaste carne, sexo e prostituta de incubo de Saturno –
e ensandecidamente acusas o outro de estupro? (...)

Leia o poema Uma oração para canalhas clicando aqui.
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Sobre cantorias, escolhas & caráter

Os que gostam do velho Gonzagão jamais esquecem a bela melodia – não por acaso, sábia lição:

“(...) mas doutor, uma esmola pra um homem que é são
ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão (...)”

A bela obra é de Luiz Gonzaga e Zé Dantas e ficou no imaginário popular e nos anais da música popular brasileira como um libelo à coragem, um vigoroso protesto contra a cultura da esmola, da vassalagem e do clientelismo.

“Vozes da Seca” deveria ser uma de nossas mais cultuadas músicas, aquelas ditas “de travesseiro”. Infelizmente não é. E por quê? Uma simples incursão pela cantoria, pelos primorosos versos da composição, não deveria dar margem a dúvidas:

Seu doutô os nordestino têm muita gratidão
Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão
Mas doutô uma esmola a um homem qui é são
Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão
É por isso que pidimo proteção a vosmicê
Home pur nóis escuído para as rédias do pudê
Pois doutô dos vinte estado temos oito sem chovê
Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cumê
Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage
Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage
Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage
Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage
Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão
Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!
Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chão
Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos

Gonzagão é como ficou conhecido Luiz Gonzaga do Nascimento, nascido em dezembro de 1912, cidade de Exu, e encantado em 1989, no Recife. Por tudo o que fez, foi coroado pelo povo "rei do baião".

Aprendeu a tocar sanfona com o pai e ainda adolescente ja se apresentava em festas e feiras livres. “Asa Branca”, elaborada em parceria com Humberto Teixeira, lhe traria a consagração definitiva.

Os antigos sempre souberam dos perigos da ‘generosidade’ estatal travestida quase que invariavelmente com nomes pomposos, mas que redundam sempre na velha e surrada esmola, na ‘compra’ de votos e consciências. Os mais sábios tentavam responder com exemplos, lições, ensinamentos aprendidos ao longo da história. E nem sempre lograram êxito. Quem não se lembra das frases simples – singelas e profundas – tecidas por nossos antepassados? Algumas atravessaram o tempo perpassando os séculos, da pré-história à era contemporânea. É como se estivessem indelevelmente tatuadas na memória humana. Talvez a mais incisiva seja: “Bem melhor que dar o peixe, é ensinar a pescar”.

Mas, pelo que se percebe, boa parte dos governos reluta em assimilar o ensinamento tão relevante para a cidadania. A maioria dos programas governamentais gravita em torno de uma cobiçada fábrica: a que produz torrentes de ilusões e votos.


Para dourar a pílula ou untá-la com uma casquinha de verniz, convencionou-se fazer referência a esse tipo de assistencialismo como “políticas & ações emergenciais para debelar a fome endêmica”. Nome que empresta pompa e circunstância ao ‘dar o peixe’, que resulta em vício, dependência, e na perda de algo caro e precioso para nossos avós, a vergonha na cara. Já quanto ao ‘ensinar a pescar’, à institucionalização de portas de saída; quanto ao abrir janelas, alargar horizontes, assegurar profissão, emprego ou renda sustentável, gerar oportunidades e democratizá-las – essas ações ficam para ad calendas graecas.

O Bolsa Família, por exemplo, é um dos mais importantes programas sociais do governo federal.
Concebido como um programa de transferência direta de renda, beneficia famílias em situação de pobreza, aquelas com renda mensal de R$ 60,01 a R$ 120,00 por pessoa. Contempla também as famílias que se encontram em situação de extrema pobreza, as que não conseguem renda mensal superior a R$ 60,00 por pessoa.

As origens do programa estão ligadas a governos estaduais e municipais, como o de Cristovam Buarque, que, quando governador de Brasília, implementou o Bolsa Escola, garantindo renda às famílias que, efetivamente, assegurassem a freqüência de seus filhos na escola. O governo de Fernando Henrique deu dimensão nacional ao programa.

Sob o ponto de vista emergencial o programa tem cumprido seus objetivos. Só no período de 2001 a 2004 foi o responsável por uma queda de mais de 20% no índice de desigualdade do país. A renda mensal das famílias atendidas aumentou nada menos que 21%. São vitórias retumbantes, expressivas, a se comemorar com desfiles, festanças & fogos de artifício.

Portanto, enganam-se (ou estão obliterados pela má-fé) os que desdenham o programa. Na parte que funciona, os benefícios são eloqüentes. O programa exige, por exemplo, que todas as crianças com idade entre 6 e 15 anos tenham freqüência escolar mínima de 85%; e as que se encontram em idade de vacinação devam ter a carteira em dia. Das gestantes exige o exame pré-natal. A punição para os que descumprem requisitos pode levar à exclusão do programa.

Porém, se as vantagens e qualidades não podem ser ignoradas, os problemas também não.

E um dos inaceitáveis é que o governo faz vista grossa dos sistemas de avaliação e controle. Só a partir do final de 2004 se instituiu a sistemática de controle da freqüência escolar. E as regras de exclusão só foram estabelecidas no findar de 2005. Adiantou? Nada. Jamais alguém foi excluído do programa. Como os controles são frágeis e não há perigo de punições, muitas famílias tiraram as crianças da escola.

Outro problema da mais alta gravidade – e não há quem ignore – é que o programa se amesquinha à medida que não disponibiliza portas de saída, o que redunda em manter as famílias aprisionadas à miséria, à dependência indigente. Sinônimo da megaindústria da esmola? Megafábrica de votos.

Conseqüência imediata: ao mesmo tempo em que cresce o número de simpatizantes e uma potencial massa de votos, cresce também – entre os dependentes do Bolsa Família – o abandono escolar.

Apenas quando, com mais atenção, nos debruçamos sobre os números do Bolsa Família é que conseguimos nos dar conta do gigantismo e da real dimensão do programa. Um quarto da população do Brasil depende do Bolsa Família. São 45,8 milhões de habitantes, mais que toda a população da Argentina. E o mais grave, de todo inaceitável: as crianças beneficiárias não estão completando sequer os oito anos do ensino fundamental.

Tem sido cada vez mais comum cantores contemporâneos regravarem músicas antigas, sucessos do passado. Procura-se um para reconduzir “Vozes da Seca” às primeiras posições das paradas. Seria um tributo a Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Para os governos, uma lição sobre as melhores escolhas e opções, as que efetivamente levam à cidadania. E para a sociedade, uma mistura de beleza e encantamento com lições sobre o caráter e a vergonha na cara.

Antônio Carlos dos Santos – criador da metodologia de Planejamento Estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de Teatro Popular de Bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br