sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Jean Charles e Eloá

O erro é mais facilmente admitido em alguns setores que em outros. O erro de uma criança impacta, quando muito, sua roda de amigos, parentes e vizinhos. O de um empresário, no máximo, sua esfera de influência. Já o erro promovido por um político ou servidor público pode até mesmo comprometer os destinos de uma nação.

Há aqueles intencionais, os meramente ocasionais e incidentais, mas, infelizmente, não há pra onde correr: para a espécie humana, o erro é inexorável, e está sempre a nos espreitar nas esquinas. O que resta à parte responsável da humanidade é cuidar para que as possibilidades de ocorrência se reduzam ao extremo. E manter a incidência de erros sob controle, em estado vegetativo, numa margem administrável não é tarefa das mais fáceis; e exige investimentos pesados, sobretudo em educação.

Por mais eficaz que seja a ação para aproximar a margem de erro de zero, quando ocorrer, a polêmica estará estabelecida, ainda que no plano da individualidade. Explico.
Qual a margem de erro admissível para o médico que deixa o recém-nascido escorregar das mãos, fazendo com que o bebê estatele a cabecinha no chão duro da sala de parto? Para os pais da criança, com certeza, nenhuma!

Coletivamente, será sempre possível demonstrar, através de gráficos coloridos e relatórios vistosos, que o erro se reduziu a um algarismo insignificante – um efêmero traço – quando cotejado com o sem número de ocorrências exitosas. Mas para as pessoas próximas, emocionalmente envolvidas, o que a estatística reduz à insignificância pode representar numa tragédia gigantesca, irreparável, de efeitos devastadores. A relatividade em ação: quando um mesmo episódio é insignificante para alguns e irreparável para outros.

A polícia é sempre um prato cheio quando queremos discutir forças e fragilidades, virtuosidades e deficiências.

Os policiais geralmente são levados a trabalhar no limite. Diuturnamente arriscam a própria vida, e como o salário mal dá para o gasto, são obrigados a recorrer a bicos e improvisos. Apesar do cenário adverso, cotidianamente praticam nobres ações de solidariedade humana que deveriam merecer o reconhecimento da sociedade. Por força das circunstâncias, não raro utilizam as viaturas policiais como ambulâncias, fazem às vezes de parteiros; de aconselhadores que evitam suicídios; de professores que, nas escolas, alertam alunos para os perigos das drogas e das más companhias. E quantos bandidos são retirados das ruas, quantos crimes e delitos impedem que acorram? Mas basta um passo em falso e...

Sobretudo nos estados onde a politicagem grassa, a polícia erra e muito. Porque falta salário, faltam viaturas e equipamentos, faltam investimentos em educação, faltam diretrizes e políticas públicas adequadas. E nessas circunstâncias, os erros são mera conseqüência da irresponsabilidade governamental.

Resultam dessa irresponsabilidade casos grotescos como o que vitimou o pequeno João Roberto Soares, de apenas três anos. No dia 06 de junho deste ano, policiais militares do Rio de Janeiro perseguiam um veículo suspeito. No meio do caminho confundiram um carro com o veículo dos bandidos e dispararam 17 tiros. No carro confundido estava a mãe, Alessandra, e seus dois filhos. Um deles, João Roberto Soares, de três anos, morreu com um tiro na cabeça.

Cerca de um mês depois, Luiz Carlos Soares da Costa, administrador de empresas, 35 anos, foi feito refém por um assaltante na zona norte do Rio de Janeiro. O bandido entrou em seu Siena, obrigando Luiz a passar para o banco de passageiros. Desconfiada, a polícia passou a perseguir o veículo. Segundo relataram os policiais, ao se aproximarem do Siena, o bandido, de 18 anos, disparou contra a viatura, obrigando-os ao revide, com o que acertaram dez tiros no Siena, três dos quais mataram Luís, a vítima. O bandido levou um tiro no abdome, foi socorrido e sobreviveu.

Mas mesmo onde se valoriza o planejamento e se busca a eficácia, os erros acontecem. E erros crassos. Como exemplifica o caso Jean Charles.

A polícia britânica é uma das que mais investem na formação de seus policiais. É a típica polícia de primeiro mundo. Veículos e equipamentos de ultima geração, e investimentos abundantes em formação e capacitação profissional. Fazendo assim remetem a margem de erro às proximidades de zero, mas não conseguem se manter incólumes a ele.

Como aceitar que uma das polícias mais modernas e eficazes do planeta cometa um erro tão primário e ignóbil como o que levou à morte de Jean Carlos. Confundido com um terrorista, em 2.005, o brasileiro foi estupidamente executado no metrô de Londres.

Segundo depoimento colhido recentemente de um agente da Scotland Yard, o jovem eletricista poderia ter sido abordado e detido sem problemas antes de a polícia ter feito os disparos fatais na estação de Stockwell, sul de Londres, na manhã fatídica de 22 de julho.

Outro festival incompreensível de erros ocorreu recentemente, em Santo André, quando o país se viu hipnotizado diante dos aparelhos de televisão: a tragédia que culminou na morte de Eloá.

Toda a operação policial foi executada pelo Grupo de Ações Táticas Especiais da polícia de São Paulo. O GATE de São Paulo é uma referência quando se trata de eficácia policial. Em uma década de operações promovidas pelo Grupo, há o registro de apenas duas vítimas, Eloá e uma outra.

Apenas neste ano, o GATE realizou 18 ações, salvando 47 cidadãos brasileiros. São números que atestam qualidade da polícia paulista; mas o festival de besteiras perpetradas no caso Eloá demonstram, de maneira cabal, que investimentos em treinamento, capacitação, educação devem ser atividades diuturnas em qualquer setor da atividade humana, em qualquer instituição, seja militar ou não, esteja ela num elevado nível de sustentabilidade e eficácia ou não.

Se não conseguimos eliminar, de todo, o erro de nossas vidas, com a educação de qualidade podemos manter a margem bem próxima a zero, num ponto em que a dor, para a coletividade, se torne um pouco mais suportável.