segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Se Putin vencer, será o retorno à barbárie

"Guerra da Rússia contra a Ucrânia vai custar muito dinheiro. Putin só conseguirá manter seu domínio se transformar seu país num grande presídio" Foto: ALEXANDER ERMOCHENKO/REUTERS

Na guerra da Rússia contra a Ucrânia, não está apenas em jogo o destino de um país. Caso o mundo não acorde, passará a valer apenas a lei do mais forte. Paz e liberdade também exigem sacrifícios, opina Miodrag Soric.

 

Vladimir Putin precisa vencer rápido a sua guerra de ofensiva contra a Ucrânia. Não porque tenha uma consciência ou escrúpulos. A questão é, antes, que caixões de jovens russos mortos na luta contra o povo-irmão ortodoxo suscitam dúvidas quanto à propaganda estatal de que esta seria uma guerra defensiva.

Em breve chega no Leste Europeu a época de jejum pré-pascoal, que o ex-homem da KGB, o serviço secreto da União Soviética, aproveitará para se apresentar como cristão devoto, de vela na mão. Só que isso não combina com as imagens de mulheres, crianças e homens que, por estes dias, morrem nos ataques do exército da Rússia.

Mas essa guerra não vai passar tão rápido. Mesmo que tenham que lutar com coquetéis molotov e com as mãos nuas, os ucranianos não vão desistir! O povo russo provou grande capacidade de sofrer durante a era soviética, e coragem na Segunda Guerra Mundial, mas os ucranianos não ficam nada atrás. Além disso, têm a primazia moral: estão defendendo seu país, suas famílias, sua vida. Os soldados russos, em contrapartida, chegam como agressores, ocupadores, fratricidas.

Paz e liberdade não são grátis

Para o tão reticente Ocidente, a questão é a seguinte: até agora, não havia hostilidade em relação à Rússia. Pelo contrário: fazíamos negócios, cooperávamos na política, cultura e ciência. Milhões de russos vinham como turistas à Espanha, Turquia ou Grécia, lá onde também os europeus ocidentais passam suas férias. Justamente por isso, quase ninguém no Ocidente conseguia imaginar que Putin cometeria esse crime, e que os russos seguiriam essa loucura.

Sim, o presidente da Rússia tem razão: os europeus estão mal equipados, têm tomado a sua vida na prosperidade como um fato inquestionável. Mas isso está mudando, agora mesmo. Pois todo europeu que ame a liberdade e a paz percebe essa ofensiva contra os ucranianos como um ataque contra si mesmo. Todo mundo está vendo que Putin mente quando abre a boca, que não se atém a nenhum pacto nem regra internacional.

De repente, muitos na Alemanha compreendem, com nitidez maior do que lhes conviria, que só os Estados Unidos garantem a sua segurança – e estão gratos por isso. Mas é justo exigir de uma mãe do Mississipi que seus filhos se engajem pela segurança da Europa, quando outra mãe em Berlim não está disposta a isso? A Alemanha precisa acordar e compreender: a paz, a liberdade e a nossa democracia não são de graça.

A disposição de tornar as Forças Armadas alemãs novamente aptas à mobilização e a fortalecer a Otan cresce com cada foto de mulheres e crianças em prantos nos metrôs de Kiev, onde vão buscar proteção das bombas russas. Os europeus de dispõem a fazer sacrifícios em nome de seus valores. E vão fazer frente à declaração de guerra da Rússia contra a ordem pacítica da Europa.

Putin mente, China observa

As perspectivas que o mundo civilizado tem de ganhar essa luta, são boas. Putin pode bem tentar convencer seus compatriotas e o mundo de que a Rússia é forte, mas também isso é uma mentira. A moral dos russos é forte quando eles sabem que estão do lado do bem. Apesar da imprensa manipulada pelo Estado, vão cada vez mais perceber que sua guerra contra o povo-irmão ucraniano é um crime.

Além disso, a Rússia está economicamente fraca, pois Putin é incapaz de modernizar seu país. A atual classe política é ainda mais corrupta do que nos tempos do líder do Soviete Supremo Leonid Brejnev. E o presente chefe do Kremlin só suporta a seu redor servidores submissos, que ainda por cima humilha diante das câmeras.

Sanções econômicas e gastos de defesa significativamente mais altos não bastarão para vencer a confrontação com o ditador. A elite criminosa da Rússia tem que ser isolada; as relações diplomáticas, reduzidas ao mínimo.

Acima de tudo, entretanto, o Ocidente não deve fechar suas portas aos jovens russos. A economia alemã e americana procura desesperadamente centenas de milhares de profissionais. Quem queira emigra da Rússia, a fim de levar uma vida normal em ambiente seguro, deve ser bem-vindo.

Pois uma coisa é certa: a guerra da Rússia contra a Ucrânia vai custar muito dinheiro. Putin só conseguirá manter seu domínio se transformar seu país num grande presídio – como a China.

O que, aliás, é mais um motivo por que a civilização amante da liberdade deve vencer esse conflito: Pequim está acompanhando minuciosamente o que ocorre na Ucrânia. Caso Putin tenha sucesso, a China atacará Taiwan e, em algum momento, também outras nações.

Aí, só o que vai valer por todo o mundo é a lei do mais forte. A humanidade se precipitaria de volta na barbárie. Mas a coisa não precisa ir tão longe se, a partir de já, estivermos dispostos a também fazermos sacrifícios em nome da nossa liberdade.

Miodrag Soric, DW



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domingo, 27 de fevereiro de 2022

Vladimir Putin: comunismo e nazismo personalizados no anti-humano

Explosão é vista na capital ucraniana Kiev no dia 24 de fevereiro - Foto: Gabinete do Presidente da Ucrânia via EBC


GUERRA NA UCRÂNIA

Sessenta anos depois da crise dos mísseis em Cuba, Rússia e EUA voltam a se enfrentar, sob olhar atento da China

 

Era outubro de 1962. O guia espiritual do Colégio Santista, a escola marista em Santos, padre Paulo Horneaux de Moura, entrou, com ar solene, na sala da então quarta série ginasial e nos advertiu que o mundo passava por um momento aflitivo, que poderia resultar num conflito nuclear. Os Estados Unidos haviam detectado que a União Soviética plantara mísseis balísticos na Cuba de Fidel Castro, a 90 quilômetros de Miami, e, a menos que fossem retirados, seriam obrigados a reagir…

Um ano antes a União Soviética erguera o Muro de Berlim para evitar a crescente fuga de cidadãos de Berlim Oriental, sob seu controle desde o fim da Segunda Guerra Mundial, para a parte ocidental da ex-capital alemã, sob o domínio dos EUA, da Inglaterra e da França. A tensão entre o Ocidente e a União Soviética atingira níveis perigosos. O espectro de um confronto nuclear assombrava o mundo. Depois de intensas negociações, à frente o jovem presidente dos EUA, John Kennedy, e o experiente Nikita Khrushchov, pela União Soviética, chegou-se a um acordo: os EUA retiraram seus mísseis balísticos dirigidos contra a União Soviética a partir de bases instaladas na Turquia e a URSS levava os seus de volta para casa – deixando Fidel Castro furioso, segundo consta na história.

Seis décadas depois, num mundo mais sofisticado e num quadro geopolítico muito mais complexo, mais atores em cena, as posições se invertem, com a Ucrânia no centro da disputa e a Rússia já desdentada, a partir da queda do Muro de Berlim, dos satélites que formavam a União Soviética. Queda esta, vivenciada pelo atual mandatário da Rússia, desde Dresden, então parte da Alemanha Oriental, onde servia na temida KGB, o todo-poderoso serviço secreto da ainda União Soviética. Voltando para a Rússia, escolado pela vivência e o conhecimento dos subterrâneos da sociedade, escalou os degraus do poder em seu país, que se fragilizou desde a época da Glasnost e da Perestroika, vãs tentativas de modernização e liberalização dos sistemas políticos e econômicos do bloco soviético – abrindo espaço para um domínio hegemônico dos EUA sobre o mundo.

Eternizando-se no poder na já solitária Rússia, Putin não esconde sua nostalgia pelos tempos da União Soviética, surgida há exatos 100 anos e cujo desaparecimento classificou como “o maior desastre geopolítico da história”. Consolidando-se, cada vez mais, no comando da Rússia, intervém, sem contestações, em porções da ex-URSS, como a Ossétia do Sul e a Abecásia, regiões que procuravam se independentizar da vizinha Geórgia. Agora, avança militarmente sobre a Ucrânia, da qual já tomou a região Crimeia, alegando que os dois países têm história comum e populações que se mesclam, mas, essencialmente, pelo namoro do país com a Otan – a Organização do Tratado do Atlântico Norte, que reúne os EUA e 30 países da Europa e a União Europeia, que já atraíram para sua órbita quase todos os países que se alinhavam à ex-União Soviética, inclusive as vizinhas Estônia, Letônia e Lituânia. 

A nostalgia do poder da ex-URSS por parte de Putin deve ter aumentado, nos últimos tempos, à medida que cresceu a importância da China no contexto mundial, tirando da Rússia o status de maior potência desafiadora da hegemonia dos EUA no mundo. No ano passado, os EUA continuavam a primeira economia do mundo (segundo previsão do FMI de outubro de 2021), com PIB de US$ 20,894 trilhões, e a China já ocupava o segundo lugar, com US$ 14, 686 trilhões. A Rússia aparecia apenas em 11º lugar com modestos US$ 1,479 trilhão, valor semelhante ao do Brasil. Além disso, a China aumenta sua presença e influência globalmente desde o começo deste século: lançou a iniciativa da Nova Rota da Seda, que envolve propostas de investimentos e acordos bilaterais com 140 países do mundo, é importante parceiro econômico dos países da América Latina, aumenta seus laços econômicos com a União Europeia, ocupa crescente espaço político e econômico na África; tornou-se, enfim, a maior competidora dos EUA, obscurecendo o papel da Rússia na política global.

Na geopolítica mundial, a Rússia ainda mantém um grande trunfo, o arsenal nuclear herdado da União Soviética, do qual Putin lançou mão, em recente fala, ao justificar a ação militar contra a Ucrânia: “Quem quer que tente nos impedir… deve saber que a resposta da Rússia será imediata e levará a consequências nunca enfrentadas na história”. Não se deve esquecer ainda as capacidades russas em promover guerras cibernéticas com enorme poder de semear dificuldades entre adversários. E, ao mesmo tempo em que armava sua ação contra a Ucrânia, Putin tratou de proteger sua retaguarda assinando com seu homólogo chinês Xi Jinping, em Pequim, um memorando conjunto sobre “A Nova Era das Relações Internacionais e o Desenvolvimento Global Sustentável” em que os dois países se propõem a trabalhar unidos na solução de vários problemas críticos globais. A declaração foi mundialmente interpretada como uma redefinição da estrutura de poder mundial ao aproximar ainda mais os dois países face às suas disputas com o Ocidente.

Diferentemente do conflito dos mísseis soviéticos em Cuba, o embate da Otan, liderada pelos EUA, com a URSS, apesar de tão grave quanto, tem sido indireto pois a Ucrânia, embora desejasse, ainda não faz parte da organização. O máximo que os membros do pacto puderam e têm feito é reforçar as tropas da organização nos países vizinhos, pois não têm respaldo legal para colocar tropas on the ground, na própria Ucrânia. Simultaneamente, o presidente Joe Biden, membros de seu governo e países aliados denunciaram contínua e cotidianamente que Putin invadiria a Ucrânia, o que acabou ocorrendo. E agora providenciam sanções econômicas contra a Rússia, cuja eficácia no curto prazo é posta em dúvida.

No decorrer de toda essa movimentação, entretanto, surgiram contestações sobre a conveniência de a Otan ter se expandido tanto para o Leste europeu abrigando quase todas as nações que faziam parte da ex-URSS, projetando sombras sobre a segurança das fronteiras da Rússia, o que justificaria as apreensões e cautelas de Putin. O fato é que esses países também foram atraídos pelo potencial econômico e financeiro da União Europeia, que lhes oferecia novas perspectivas de desenvolvimento depois da debacle econômica da União Soviética. Seria possível evitar que também desejassem entrar na Otan?

Escrevo estas linhas panorâmicas sobre o conflito na sexta-feira pré-carnaval, que não é bem carnaval em função da pandemia, quando ainda não é possível prever os desdobramentos dos confrontos na Ucrânia. Tudo indica que Putin quer a desmilitarização da Ucrânia e a independência, que já reconheceu, das regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk, onde já há conflitos comandados por separatistas pró-Rússia. Tolerará a permanência do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, o ator transubstanciado em político, que gostaria de incluir seu país na União Europeia e na Otan?

É surpreendente vermos GUERRA NA EUROPA nas manchetes em pleno 2022. Talvez seja ingenuidade imaginar que essa manchete está fora de lugar e de tempo. Os atores principais desta crise da Ucrânia são os mesmos daquela dos mísseis soviéticos em Cuba em 1962, quando as imagens predominantes ainda eram em preto e branco.

Luiz Roberto Serrano, Jornal da USP




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