domingo, 11 de outubro de 2020

Bienal de Berlim apresenta "um Brasil para além das más notícias"

 


Em entrevista, curadora Lisette Lagnado fala sobre participação recorde do Brasil na Bienal de Arte Contemporânea de Berlim. Entre os temas estão pós-colonialismo, patriarcado, nacionalismo e o papel da religião.


O Brasil que desponta na 11ª Bienal de Arte Contemporânea de Berlim respira ofegante, mas ainda pulsa – e como. Com uma presença recorde de artistas, o país está representado por obras como o vídeo Marcha a ré, do Teatro da Vertigem, uma contundente crítica ao tratamento dispensado pelo poder público à pandemia.

"O filme interpela a falta de empatia e negligência do governo federal em relação às vítimas", diz a crítica de arte paulistana, Lisette Lagnado, de 59 anos, que divide a curadoria com a chilena Maria Berríos, a argentina Renata Cervetto, e o espanhol Agustín Pérez.

O arcabouço teórico vem do artista Flávio de Carvalho, um provocador que, nos anos 50, lança o new look e sai com uma minissaia para, segundo Lagnado, reverter "nossa submissão aos paradigmas europeus".

Morto nos anos 90, aos 22 anos, Pedro Moraleida surge com suas obras viscerais, que questionam a figura da Igreja, o papel do patriarcado e o nacionalismo – temas que atravessam a Bienal. Mais leveza – visual, ao menos – tem a instalação de Aline Baiana, que suspende minérios brasileiros para pensar o pós-colonialismo sob a ótica dos crimes ambientais e do extrativismo.

A mostra é extensa e inclui obras do Museu de Imagens do Inconsciente (RJ) e do Museu de Arte Osório Cesar (SP). Há instalações, pinturas, fotos e vídeos de oito convidados do Brasil, entre artistas, instituições e coletivos. "A ideia era dar espaço para a riqueza que o Brasil tem em termos de criatividade e de expressão visual", diz a curadora.

Com o tema "A fissura começa por dentro" ("The crack begins within"), a mostra pode ser vista até 1º de novembro na capital alemã, dentro das restrições impostas pela covid-19.

DW Brasil: O Brasil tem uma presença recorde nesta Bienal. O que isso significa para o país neste momento?

Lisette Lagnado: Isso acontece num momento especial, em que o Brasil só tem más notícias, depois de ter vivido um período de autoestima internacional durante quase uma década. É uma alegria poder trazer uma imagem para além do noticiário e do que acontece nesse momento no país, como a devastação da Amazônia, a pandemia e o genocídio das populações originárias. Mas não se pensou numa presença brasileira grande a priori. Isso se deu ao longo do processo.

Além de você, a curadoria inclui uma argentina, uma chilena e um espanhol. Essa formação se reflete claramente na escolha das obras. Foi intencional?

Isso reflete os campos de pesquisa de cada curador. Queremos falar dos nossos contextos, onde temos inserção verdadeira – e não sermos uma espécie de curador jet set, que viaja de um país para outro, busca um artista aqui, outro lá. Brasil, Chile, Argentina e Espanha têm uma presença privilegiada porque é a partir dessa realidade que a gente quer abordar os temas que nos afligem, como a destruição da noção do patriarcado, o nacionalismo tóxico, as religiões monoteístas que trazem fanatismo. Mas existe também um sul global, que a gente olhou com atenção. Procuramos não apenas fazer uma exposição internacional, mas discutir ainda os temas coloniais e fazer disso um estudo de caso. Assim há uma representação inédita de artistas de origem roma, turca, filipina e coreana, por exemplo. 

Concebido pelo Teatro da Vertigem, Marcha e Ré é apresentado como uma obra que trata da "necropolítica do regime populista de extrema direita no Brasil, engajado num genocídio contra sua própria população". Como surgiu o convite para o grupo?

A pandemia é um assunto que não estava previsto, mas que atravessa a Bienal – e o trabalho do Teatro da Vertigem, convidado a fazer uma peça aqui. O grupo faz um teatro urbano, com pessoas de diversas disciplinas. Sem poder viajar, eles acabaram convidando mais dois artistas – o Nuno Ramos e o Eryk Rocha, filho do Glauber. No vídeo, a marcha fúnebre – uma procissão com cerca de 120 carros, traz a questão do descaso com a saúde pública e das mortes que poderiam ter sido evitadas. O filme interpela a falta de empatia e a negligência do governo federal em relação às vítimas. Quando em vez de ter a bandeira brasileira sendo hasteada, a gente tem a figura da mãe morrendo – um trabalho que o Flávio de Carvalho fez em 1947 – eles acabam mostrando a imagem de uma nação morrendo.

Você escolheu o artista brasileiro Flávio de Carvalho como ponto de partida. Por que essa opção?

A minha intenção foi trazer o nome do Flávio de Carvalho como uma espécie de arcabouço teórico. O Flávio nos permite fazer o que chamamos de ‘etnografia invertida'. Porque quando ele, em 1956, lança o new look e sai com uma minissaia e discute a vestimenta de um homem dos trópicos, faz isso num momento em que o Brasil se prepara para construir uma nova capital – era um desejo de olhar para dentro do seu território, de deixar de ser colônia. A minissaia interpela um corpo europeu que tem que usar terno e gravata. Esse Flávio reverte nossa submissão aos paradigmas europeus. Ele já prenunciava uma vontade cosmopolita do Brasil de, a partir da Antropofagia, tocar em várias disciplinas. E nos ajuda a pensar o teatro, a dança, a música, a psicanálise, a antropologia, a arquitetura, a moda. Uma riqueza de assuntos que nos ajudou a fazer os convites contemporâneos.

A Bienal teve que ser adiada por três meses em função da pandemia. Como ela está sendo recebida pelo público?

A recepção é muito positiva. Estou bastante surpresa, mas acho que isso se dá, em primeiro lugar, pela necessidade que os alemães tinham de voltar a ter uma vida cultural. A pandemia interrompeu os concertos, os espetáculos, as exposições. E é a primeira exposição grande que está abrindo. A gente se beneficia de um retorno a certa normalidade, apesar das reservas pela internet, do gel, das máscaras. Havia uma demanda represada de vontade de ver arte. E isso é muito bonito.

Quais os critérios de seleção para a escolha dos artistas brasileiros?

Um dos critérios foi o de não repetir um nome que já tivesse participado de uma Bienal de Berlim ou de uma próxima. Evitamos artistas que tivessem passado por Veneza, por exemplo. E a gente queria abraçar o máximo de vertentes que pudessem decorrer dessa releitura do Flávio 80, 90 anos depois. O Flávio é um nome histórico, mas com esse caráter de vanguarda e com temas atuais. A ideia era dar espaço para a riqueza que o Brasil tem em termos de criatividade e de expressão visual. São temas como o questionamento da figura da Igreja, do patriarcado e do nacionalismo, que podemos rastrear nas pinturas do Pedro Moraleida, por exemplo. Um artista dos anos 90, que se suicida aos 22 anos, cuja gestualidade e paleta cromática têm um diálogo muito forte com o Flávio de Carvalho.

A questão religiosa está presente ainda em outras obras de artistas brasileiros. Qual foi a sua intenção?

Eu queria trazer a religião sob uma perspectiva que não fosse a eurocêntrica, da colonização do Brasil. Ao discutir o que acontece hoje em termos de presença da bancada evangélica no governo, de um país que deveria ser laico, mas que passa a ter várias instâncias que acabam impedindo as minorias de fazer seus cultos, e as populações originárias de viver seus rituais, a gente chega em dois artistas: Virginia de Medeiros e Castiel Vitorino Brasileiro. A Virginia fez uma residência artística em Berlim e entrou em contato com a primeira e única casa de candomblé daqui, o Fórum Brasil. E a Castiel é uma jovem trans preta que se denomina macumbeira – a primeira formação dela é como psicóloga. Na prática dessas duas artistas, a gente não só traz as minorias que estão sendo sufocadas no Brasil como possibilidades de cura do trauma do racismo e do trauma da colonização. Essas duas artistas trabalham isso nas suas obras.

Uma outra obra que remete ao colonialismo é a instalação da Aline Baiana. O que ela significa?

A Aline questiona esse processo colonial através dos crimes ambientais, do processo de desmatamento, da entrega da Amazônia e do extrativismo. A instalação da Aline, que traz cinco minérios importantes do Brasil, forma essa constelação que é o Cruzeiro do Sul – a bússola que os navegantes usaram para colonizar as Américas. Ela refaz essa constelação através dos minérios e retorna à questão do extrativismo. Porque os minérios estão aqui. Essa é uma instalação muito potente.

Obras de pacientes psiquiátricos do acervo de dois museus – de Imagens do Inconsciente, e de Arte Osório Cesar – estão sendo vistas por um público amplo, enquanto no Brasil ficam praticamente esquecidas. Como você chegou até elas?

Esses museus foram convidados porque, já nos anos 30, o Flávio conseguiu ver a riqueza da expressão de artistas que vivem em confinamento, dos doentes mentais. Quando a pandemia eclode, eles aparecem como instituições brasileiras que atravessam intempéries e continuam resistindo. Ao tratar do inconsciente, eles são extremamente importantes para lidar com uma sociedade doente, que está sofrendo. O planeta está sofrendo. Esses museus abordam a questão da saúde pública, e a questão da fragilidade das nossas coleções, junto com o meteorito que sobrevive ao incêndio do Museu Nacional, e se contrapõem a esse descaso. Não convidei o museu para estar aqui com uma coleção de ruínas – mas a imagem do meteorito está, na fotografia de Leo Correa.

Que papel a Europa deve ter nessa revisão do olhar sobre o sul, para as ex-colônias?

A gente questiona a legitimidade das coleções que existem aqui. Existe um pensador, o Achille Mbembe (filósofo camaronês), que diz que não se trata apenas de fazer uma restituição, mas de devolver aos povos que perderam a possibilidade de cultuar esses objetos. Na Bienal, por exemplo, tem uma artista, a Pélagi Gbaguidi, que coloca dois animais da coleção do museu africano Tervuren –totalmente feito de artefatos pilhados, sobretudo do Congo. A ideia é dar a esses animais – que, para ela, são entidades – almas que não encontraram numa cerimônia funerária. Em vez de investir o dinheiro aqui, para que brancos vejam essas coleções, a responsabilidade colonial (da Europa) é construir isso nos países de origem. Não é só devolver um trono, ou um pote. Mas dar a infraestrutura para que o país possa ser responsável por essas coleções.

Que leitura você faz do tema escolhido para esta Bienal, "A fissura começa por dentro"?

Fiquei muito feliz com esse título, porque só se pode dar esse passo para o novo quebrando, e entendo que a quebra é a partir de dentro. Quando a gente rompe com essas estruturas é que a gente pode dar espaço para alguma coisa nova. E fissura remete também a desejo. A gente está ainda num estágio em que acredita que exista uma beleza a ser resgatada.

Por Cristiane Ramalho, na Deutsche Welle 


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