sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

O mundo de Marcel Proust


O jantar em que os gênios não se bicaram

Diferentes no comportamento e tipo de vida, gosto e estilo literário, os dois maiores romancistas do século 20 - o francês Marcel Proust (1871-1922) e o irlandês James Joyce (1882-1941) - eram rivais entre si, não gostavam um do outro e só se cruzaram uma única vez. O encontro aconteceu a 18 de maio de 1922, em torno de elegante jantar promovido por um casal amigo, no restaurante de requintado hotel parisiense. Foi relembrado pelo historiador inglês Richard Davenport-Hines no livro Uma Noite no Majestic (Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2007) e diferentes cronistas. Mas nenhum dos escritores comeu direito, até porque ambos chegaram atrasados e Proust, para completar, habitualmente mal tocava na comida, embora fizesse apetitosas evocações de comida e cheiros em sua obra monumental.

Joyce apareceu na hora do café, maltrapilho, sem o smoking protocolar e muito bêbado, aparentemente para disfarçar o nervosismo. Sentou-se à direita do anfitrião, o milionário, culto e cosmopolita britânico Sydney Schiff (1868-1944), e não muito longe da mulher deste, Violet. Dormiu, roncou e acordou. O casal organizador da festa passara a admirá-lo depois da uma leitura pública de trechos de seu Ulisses, lançado em 1922, o livro que implodiu o romance tradicional. Aceitou uma taça de champanhe e se manteve pensativo, apoiando a cabeça nas mãos. Proust, no auge da fama, porque a obra-prima Em Busca do Tempo Perdido, em sete volumes, publicada entre 1913 e 1927, já fazia merecido sucesso, surgiu às duas e meia da madrugada. Apesar de afetado e psicologicamente atrelado à falecida mãe, que o chamava de mon petit benêt (meu bobinho), de ser asmático e estar debilitado - ele morreria seis meses depois -, sobressaía-se pela elegância do casaco preto de pele e luvas brancas de pelica.

Na verdade, o jantar no Majestic se destinou a reunir Proust e Joyce, mas oficialmente foi promovido para comemorar a estréia do balé burlesco Le Renard, do compositor russo Igor Stravinski (1882-1971), montado pela companhia do empresário e diretor artístico russo Serguei Diaghilev (1872-1929). Tanto que começou depois da meia-noite e a ele compareceram quase 50 pessoas, entre as quais, além de Stravisnky e Diaghilev, homens e mulheres de boa e má reputação, e figuras luzidias da Paris da época: o atarracado, impulsivo e genial pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973); a russa Bronislava Nijinska (1891-1972), intérprete do papel-título de Le Renard, primeira mulher feia a se tornar famosa pela dança clássica; e a princesa Edmond de Polignac, nascida Winetta Singer, filha do inventor da máquina de costura, a quem os conterrâneos descreviam como "fabulosamente rica e discretamente lésbica". Entretanto, o relato mais substancioso do jantar no Majestic, hôtel de luxe da Avenida Kleber, acha-se no livro de Davenport-Hines, apesar de dedicar apenas um capítulo à ceia e não esclarecer completamente o que os convidados conversaram e saborearam.

Combinando-se as diferentes fontes, descobre-se um pouco mais. Joyce falou a um amigo do encontro com Proust: "Nossa conversa se resumiu à palavra ?não?", disse ele. "Proust me perguntou se eu conhecia o duque fulano-de-tal. Eu respondi ?não?. Nossa anfitriã indagou-lhe se ele já havia lido algum trecho de Ulisses. Proust respondeu ?não?. E aí por diante." Quanto à comida, as receitas que iniciaram a ceia seriam da culinária russa, escolhidas para homenagear Stravinski e Diaghilev. Incluíam os obrigatórios canapés de peixe defumado e os requintados blinis com caviar. Davenport-Hines concluiu que, pelo horário tardio da refeição, a cozinha elaborou pratos mais leves: linguado à Waleska (finalizado com molho branco encorpado por creme de leite e queijo) e noisettes de cordeiro (medalhões do lombo de ovino medindo cerca de 4 cm de espessura, passados na manteiga), por exemplo. Entretanto, o forte da ceia, segundo Uma noite do Majestic, eram receitas mencionadas por Proust em sua obra.

Os anfitriões Sydney e Violet Schiff estavam fanatizados por Em Busca do Tempo Perdido. Seu autor apreciava, entre outras excelências, pratos de aspargos, pernil de cordeiro assado acompanhado de molho béarnaise (manteiga, gema de ovo, vinagre de vinho branco, cebola, estragão e pimenta); e lagosta à l?américaine (feita com tomate e vinho branco). Na sobremesa, Davenport-Hines alinhou as possibilidades proustianas: salada de frutas, bolo de amêndoas e mousse de morango. A refeição opulenta, na qual seis garçons ofereceram champanhe do começo ao fim, encerrou-se com um episódio antológico. Joyce entrou sem pedir licença no táxi apertado em que partiam Proust, Sydney e Violet. O romancista de Em Busca do Tempo Perdido falava sem parar, enquanto o de Ulisses, olhando-o de esguelha, acendeu um cigarro, abriu a janela do carro e quase matou de susto o rival, cuja asma não suportava fumaça. Além de tudo, Proust vivia trancado em um quarto forrado de cortiça e morria de medo do ar fresco.

Do Estadão

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Um estudo comparado entre Clarice Lispector e Marcel Proust. Aqui!



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