terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

CONCORDAMOS EM DISCORDAR - ESTEBAN × REZENDE


Especialistas divergem sobre o método do ministério para medir a capacidade de apreensão das crianças

MARIA TERESA ESTEBAN, 57 anos, fluminense

O que faz e o que fez: é professora do programa de pós-graduação em educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora com ênfase em avaliação de aprendizagem. Tem graduação em pedagogia e mestrado em educação pela mesma instituição e doutorado pela Universidade de Santiago de Compostela

WAGNER SILVEIRA REZENDE, 35 anos, mineiro

O que faz e o que fez: conselheiro da Associação Brasileira de Avaliação Educacional (Abave), é professor e pesquisador do Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (CAEd/UFJF), insituição onde fez a graduação e a pós-graduação

Qual a melhor forma de secretários de educação diagnosticarem se os alunos de suas redes estão aprendendo?

MARIA TERESA ESTEBAN A melhor forma é aproximar a gestão e os processos escolares, com diálogo, e observar a situação do funcionamento das escolas. Isso inclui saber quais são as condições de trabalho do docente e os processos de formação continuada. Quando a gestão se volta para observar as circunstâncias de vida e trabalho na escola, ela vai formando um conjunto de informações bastante significativo. Inclusive sobre a aprendizagem e as ações necessárias para ampliar a qualidade desse trabalho com as crianças e o conhecimento adquirido na escola.

WAGNER SILVEIRA REZENDE O caminho é a avaliação de larga escala. Como instrumento, a avaliação pode servir para diagnosticar desigualdades e problemas de aprendizagem. Mas essa estratégia exige cuidados porque pode também hierarquizar escolas e criar uma espécie de disputa, o que não faz sentido nenhum. Essa é uma competição absolutamente sem sentido. A comparação é da escola com ela mesmo. A escola passa a ter diagnóstico periódico e se avaliar. Toda avaliação deveria produzir um processo de autoavaliação. O que a gente precisa pensar agora é em avançar nos métodos. Fazer avaliação digital, que não precisa de papel e deixa o aluno conduzir o processo. Os avanços das tecnologias na educação vão trazer reflexões. O mundo está mudando e a gente vai continuar fazendo as mesmas avaliações do começo do século XX?

Devemos avaliar a fluência na leitura de crianças no 2º ano do ensino fundamental, quando elas têm 7 anos, como pretende o Ministério da Educação (MEC)?

MTE Não. Quem tem de acompanhar a fluência das crianças são os professores e a equipe pedagógica. Elas devem se perguntar: nessa semana elas estão lendo melhor do que na passada? Estamos oferecendo propostas pedagógicas que mobilizem as crianças para fazer a leitura? Quando é que estamos pedindo para que leiam em voz alta? Em quais situações? Que materiais e em que contexto elas estão sendo desafiadas ou convidadas a ler em voz alta? Para isso, o professor precisa ter bons instrumentos de registro daquilo que está fazendo e de como as crianças estão se desenvolvendo. O que está ou não está funcionando bem. De quais alternativas ele lança mão, onde precisa de ajuda. Isso tudo faz parte da avaliação do cotidiano e precisa ser registrado e pode ser reportado à gestão central.

WSR É importante, sim. E não se restringe ao ciclo de alfabetização. A fluência é um elemento em todas as etapas. Tanto que o Ceará já fez esse teste no ensino médio. A hipótese por trás disso é que, quando um aluno lê fluentemente, entende melhor o que está sendo dito. O instrumento da avaliação nacional é importante para diagnosticar problemas em alunos que não são fluentes. Esse tipo de avaliação no Brasil é recente. Toda literatura de base é estrangeira. E existem diferentes formas de fazer isso. Uma delas é o professor fazer a gravação por um aplicativo e enviar para o MEC. A experiência que eu tive no CAEd/UFJF, com a gestão anterior do MEC, e que avaliou o Programa Mais Alfabetização, foi feita dessa forma para logisticamente dar conta de um número grande de alunos.

Quais benefícios essa avaliação pode trazer?

MTE A avaliação em larga escala e censitária, mostram as pesquisas, tem tido um efeito negativo na educação, no sentido de padronizar processos, fortalecer dinâmicas pedagógicas de natureza mecanicista, dar mais densidade aos processos que vão trabalhar a alfabetização como codificação e decodificação — e não como leitura e compreensão da palavra como forma de diálogo com o mundo. Os estudos mostram que as escolas vão adotando ações no sentido de se voltar mais àqueles estudantes que podem ter bom desempenho nos exames e ir colocando em segundo plano aqueles que não demonstram as mesmas possibilidades, além de trazer para a sala de aula atividades que sejam treinamento para que as crianças façam os exames. Tudo isso diminui a dimensão pedagógica do trabalho. E vai reduzindo a escola como o lugar de trabalho para o conhecimento e fortalecendo a escola como lugar de treinamento e reprodução de informação.

WSR Os resultados são utilizados de forma reflexiva para entender o desenvolvimento dos alunos, diagnósticos individuais. Uma criança pode passar de ano com problemas na fluência sem que isso seja percebido. Os resultados das avaliações podem servir ainda como instrumento para que problemas sejam identificados levando a uma reflexão do professor. As diferenças entre alunos que são leitores fluentes e alunos que não têm essa mesma compreensão vão se tornando cada vez maiores ao longo da trajetória escolar da criança e podem significar um futuro promissor ou não na vida e no mercado de trabalho. O mundo gira em torno da capacidade de ler e se manifestar sobre isso. Faz muita diferença para o aluno. Talvez por isso seja tão importante esse tipo de avaliação. Mas o exame da fluência é um complemento. Sozinho não resolve todo problema. A minha premissa é que, quanto mais aspectos o sistema conseguir avaliar, melhor. Não é o único. Tem ainda a avaliação de leitura com testes objetivos e de escrita.

Crianças de 7 anos devem passar por avaliações de larga escala?

MTE Para as crianças pequenas, que estão começando o ensino fundamental ainda no processo de alfabetização, esse tipo de avaliação tem muita pouca capacidade de contribuir para o trabalho pedagógico. Alguns pesquisadores, no entanto, vão defender que, quando a avaliação é amostral, reduz os problemas que elas causam. Não inibe, mas reduz esse efeito de controle e classificação na sala de aula e permite que o gestor tenha uma noção de como vai o sistema. A avaliação deveria ser do sistema, mas é cada vez mais da criança. A gente olha o desempenho do aluno, mas não se atém a todo o contexto: o que o sistema de ensino proporcionou para que a criança tenha esse resultado favorável ou desfavorável?

WSR A ideia de avaliar é amalgamada à própria ideia de escola. A avaliação é um direito, não uma imposição. O aluno tem o direito de saber como está seu desenvolvimento. E avaliação externa sofre muita resistência, desde a criação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), em 1990. Pode avaliar criança? Pode, claro. O cuidado que se tem de ter é se o que está sendo exigido é condizente com a idade e se está no currículo. E, principalmente, como os resultados serão usados. Não é punir, categorizar, mas identificar problemas. Dar suporte a outras instâncias. Pensar o planejamento de acordo com a dificuldade, até chegar no nível da secretaria de Educação. Minas Gerais tem 854 municípios. O secretário não consegue saber o que acontece em todos. Ele precisa de um indicador com uma imagem um pouco mais mapeada da rede. E isso já é realizado, na alfabetização, em estados como Ceará, Minas Gerais, Pernambuco. No Espírito Santo, isso é feito nos três primeiros anos do fundamental.

Segundo o MEC, ao fim do 1º ano, os estudantes devem ser capazes de ler 60 palavras por minuto. Essa é uma boa métrica?

MTE Como toda métrica, é um padrão único que, por princípio, desenvolve desigualdade. Crianças diferentes vão tendo possibilidades diferentes de ir se apropriando da escrita e da fluência da leitura oral. Mais uma vez, é um padrão que deve estar baseado em algum estudo, mas que vai atender a um grupo restrito de crianças. Vamos ter muitas que não vão atender a essa métrica e que vão ser vistas como aquelas que não estão lendo na fluência desejada. E, ao olhar para a métrica e para o resultado, a gente deixa de olhar para a criança.

WSR Essa não é uma métrica rigorosa. No Programa Mais Alfabetização, a expectativa de leitura de uma pessoa fluente era de mais ou menos 60 palavras por minuto, considerando palavras que existem e pertencem ao vocabulário do aluno e pseudopalavras, que são palavras que não existem. Elas são incluídas com o objetivo de que o aluno leia de fato o que está escrito. Não é uma métrica absoluta, é uma estimativa baseada em literatura consolidada. Não pode se transformar numa medida absoluta porque alfabetização é um processo no qual os alunos vão aprendendo juntos com velocidade diferentes.

O MEC pretende passar a avaliar todas as etapas, do 1º ano do ensino fundamental até o 3º do médio. Qual é sua opinião?

MTE Isso vai agravar ainda mais os processos de classificação e, portanto, de produção de desigualdade dentro da escola. Essa medida tem ainda uma possibilidade grande de ir reduzindo cada vez mais a ação pedagógica, enquanto aumenta o treinamento das crianças para as avaliações externas. Muda o foco. Tira da aprendizagem e desloca para o controle, classificação e redução do conhecimento aquilo que pode ser verificado em exames de larga escala, que são conteúdos bastante reduzidos.

WSR Avaliar o fim do ciclo, como é feito atualmente, se baseia na ideia de que a aprendizagem é cumulativa. Ou seja, essa avaliação está averiguando o conhecimento acumulado dos anos anteriores. Em minha perspectiva, a avaliação é um direito. Então, é justo que só o professor de português e matemática tenha acesso a essa excelente informação? Não é importante para todos? E por que só no 9º ano? As redes públicas mostraram que querem e até desenvolveram sistemas próprios. O perigo que há nisso é o excesso de avaliação para os alunos. Às vezes fica parecendo o tempo todo que eles estão sendo avaliados. A questão não é mais se vai ter ou não, mas a inteligência dos instrumentos que a gente aplica.

Por Bruno Alfano, na Revista Época






Para saber mais, clique aqui.



Para saber mais sobre o livro, clique aqui. 


Teatro completo