terça-feira, 24 de outubro de 2017

A falta que a política não faz


A falta que a política não faz. O tribunal que zela pelas contas do Rio de Janeiro funciona só com servidores e endurece com o governo
Na expectativa do nascimento da filha, o carioca Rodrigo Nascimento decidiu que era hora de voltar para o Rio de Janeiro, nem que para isso tivesse de abandonar o emprego de auditor no Tribunal de Contas da União (TCU) em Brasília. Decidido a permanecer no ramo – bom salário, jornada de sete horas diárias, bom plano de saúde, estabilidade, aposentadoria integral –, Nascimento prestou concurso para o Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Rio. Era um funil estreito demais, no qual se amontoavam mais de 700 candidatos para três vagas de conselheiro substituto. Depois de algumas provas, sobraram 16 concorrentes. O último degrau era a sustentação oral de cinco temas ante bancadas diferentes, com notas divulgadas a cada rodada de avaliação. Nascimento ficou em segundo lugar, mas foi alçado a líder porque o primeiro colocado descumpriu a regra de ter pelo menos 35 anos.
Era para ser uma vida tranquila. Porém, em pouco mais de um ano, Nascimento não só atuou como conselheiro titular, como comandou sessões plenárias, aquelas nas quais os conselheiros examinam e julgam processos. “Um conselheiro substituto presidir uma sessão foi algo inédito”, diz Nascimento, um servidor comum em circunstâncias inéditas. Em 29 de março, a Polícia Federal prendeu cinco dos sete conselheiros titulares do tribunal fluminense. Por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Aloysio Neves, Domingos Brazão, José Gomes Graciosa, Marco Antonio Alencar e José Maurício Nolasco foram afastados por 180 dias, suspeitos de receber propina. No dia 15 de setembro, o prazo foi prorrogado por mais 180. Todos estão proibidos de ir à sede do tribunal e de manter qualquer contato com funcionários. Só a conselheira Marianna Montebello Willeman escapou ilesa.
À semelhança do Tribunal de Contas da União, os tribunais de contas estaduais fiscalizam os gastos e julgam as contas do governo estadual. O que uma investigação derivada da Operação Lava Jato mostrou é que os conselheiros no Rio recebiam propina justamente para não fazer seu trabalho direito. Preso, o ex-presidente do tribunal Jonas Lopes e seu filho fizeram um acordo de colaboração com o Ministério Público Federal. Lopes confessou que ele e os colegas recebiam dinheiro sujo para permitir que a Corrupção corresse solta em obras da Copa e da Olimpíada, entre outras. Segundo Lopes, ele e os colegas receberam propina de 1% do valor de obras executadas pelo governo do Rio entre 2007 e 2014. Os mais afoitos recebiam dinheiro no próprio tribunal e até reclamavam dos valores e do atraso na mesada. Lopes disse que apenas a conselheira Marianna Montebello ficava fora desses acertos.
Desde o afastamento dessa turma, o tribunal vive a situação inusitada, para os padrões de tribunais brasileiros com a mesma função, de funcionar exclusivamente com conselheiros sem ligações políticas. Assim, coisas raras – para o mundo político – acontecem. No dia 30 de maio, os conselheiros decidiram por unanimidade seguir a recomendação do corpo técnico e rejeitaram as contas de 2016 do governo de Luiz Fernando Pezão. Por coincidência, a relatora foi a conselheira Marianna, que apontou 25 “impropriedades” e quatro “Irregularidades” – a mais grave delas o Repasse para a saúde inferior a 12% da arrecadação de impostos, como manda a Constituição. Foi a segunda vez que o tribunal rejeitou as contas de um governador do Rio. O caso anterior ocorreu em 2002, na administração de Anthony Garotinho e Benedita da Silva.
Pela lei, cinco dos sete conselheiros dos tribunais de contas são escolhidos pelo governador ou pela Assembleia Legislativa –
uma vaga fica com auditores do tribunal e outra com o Ministério Público de Contas. Desse modo, a maioria dos conselheiros são expolíticos ou apadrinhados deles – no caso dos afastados do Rio, Brazão, Graciosa e Alencar eram deputados estaduais e Nolasco foi escolhido pelos deputados. Eles ganham um cargo vitalício, muito bem remunerado e cheio de regalias. Por isso, muitos demonstram uma tendência irresistível a ser dóceis e benevolentes com governadores, secretários e o governo em geral em suas análises. Na maioria das vezes, contrariam dados do corpo técnico para evitar embaraços ao poder, recorrem a raciocínios enviesados para justificar atos indefensáveis. No julgamento das contas da gestão de Pezão e Sérgio Cabral em 2014, o conselheiro Aloysio Neves – um dos afastados acusados de receber propina – contrariou os técnicos ao sugerir a aprovação das contas com 20 “ressalvas”. Uma delas mostrava que o governador descumprira o mínimo constitucional de gastar 12% da arrecadação de impostos com a saúde. Ligado ao PMDB, ex-chefe de gabinete da presidência da Assembleia Legislativa nas gestões de Sérgio Cabral e do atual presidente da Casa, Jorge Picciani, Neves ignorou ainda o parecer que o governo havia deixado de contabilizar uma dívida de R$ 1 bilhão. Neves está entre os presos por se beneficiar de propina para liberar obras do governo Cabral.
Por ser a única conselheira remanescente, Marianna Montebello tornou-se – se não de direito, mas de fato – a presidente interina da instituição nestes novos tempos. Para evitar a interrupção dos trabalhos, ela conseguiu que o Supremo Tribunal Federal (STF) referendasse a decisão de incorporar os três conselheiros substitutos ao plenário da Casa, que, assim, passou a atuar com quatro integrantes. Ela ainda determinou que os gabinetes dos investigados fossem lacrados e que todos os 1.120 servidores assinassem um termo em que se comprometiam a não ter nenhum contato com o sexteto afastado. Nos dois meses seguintes à detenção dos conselheiros, 81 servidores pediram exoneração. Os imponentes gabinetes dos conselheiros titulares, cada um situado em um andar diferente do prédio, exibem algum movimento por parte dos funcionários que não foram realocados. O restaurante exclusivo dos figurões está deserto. Bem mais acanhadas que os latifúndios dos conselheiros titulares são as salas dos três substitutos, que ficam lado a lado. Andrea Siqueira Martins, Rodrigo Nascimento e Marcelo Verdini Maia costumam almoçar por ali mesmo. Além dos processos de que são relatores, eles herdaram o acervo de ações dos afastados.
No ranking nacional da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), vinculado ao Ministério da Justiça, o tribunal fluminense ficou na antepenúltima posição em termos de transparência em 2016, à frente apenas de Amapá e Alagoas. Em 2012, a Procuradoria da República acusou os conselheiros do Rio de embolsar uma “verba secreta” de R$ 4 milhões por ano. “Os tribunais de contas são capturados pelo que há de pior no cenário brasileiro”, afirma Diogo Ringenberg, procurador do Ministério Público de Contas de Santa Catarina e ex-presidente da Associação Nacional do Ministério Público de Contas. Algumas coisas mudaram desde março. As sessões plenárias passaram a ser transmitidas ao vivo on-line e os relatórios elaborados pelos auditores são publicados no site do tribunal – assim, é possível saber se a resolução de um conselheiro ou do plenário contraria a recomendação dos técnicos. De abril para cá, houve ainda uma economia de R$ 8 milhões em custeio do próprio tribunal, quase nada em um orçamento anual de R$ 671 milhões. Ficou mais fácil também pesquisar no site a remuneração dos funcionários, que antes era labiríntica. “Meus colegas do corpo técnico dizem que agora há mais debate em plenário”, afirma a conselheira substituta Andrea Siqueira Martins. O tribunal ameaça tornar inelegível o Prefeito que fizer a velha jogada de errar editais para poder contratar empresas de coleta de lixo de forma emergencial, sempre muito suspeita. Em agosto, o tribunal cancelou a Licitação para a contratação de uma empresa de táxi-aéreo para o governador Pezão. A economia de R$ 2,5 milhões foi simbólica para um estado com um déficit de US$ 17 bilhões.
Há episódios de afastamento de conselheiros em outros tribunais de contas, como São Paulo e Amapá. Uma radiografia feita pela ONG Transparência Brasil, no ano passado, mostra que um em cada quatro dos 233 conselheiros dos 34 tribunais de contas do país é processado ou já foi punido pela Justiça ou pelas próprias Cortes contábeis. Como aconteceu no Rio, no mês passado o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, afastou do cargo cinco dos sete conselheiros do Tribunal de Contas de Mato Grosso acusados de receber R$ 53 milhões de propina em 2013 e 2014.
Preso por Corrupção desde 2015, o exgovernador Silval Barbosa disse em sua delação premiada que o então presidente do tribunal, José Carlos Novelli, pediu propina para liberar o andamento de uma série de obras, incluindo as que envolviam a Copa do Mundo. Pelo relato de Silval, os conselheiros eram rigorosos na Prestação de contas do dinheiro sujo, não da verba pública. Novelli exigiu que Silval assinasse 36 notas promissórias que lhe seriam devolvidas à medida que a propina fosse quitada em parcelas. Segundo Silval, Novelli chegou a cobrá-lo para que zelasse melhor pelas contas da propina. Silval recebeu de volta 32 das 36 promissórias de propina que assinou. Um assombro.
Enquanto a investigação está em andamento, cada conselheiro do Rio segue recebendo vencimentos que beiram os R$ 50 mil mensais sem precisar sair de casa. Na falta da ajuda deles, os deputados estaduais socorreram o governo Pezão na última etapa: em 13 de setembro, contrariaram a decisão do tribunal e aprovaram as contas de 2016 do governo por 43 votos a 21.

Por Sérgio Garcia e Hudson Corrêa, na Revista Época

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