terça-feira, 11 de novembro de 2014

"Nós confundimos a tecnologia com o uso que fazemos dela", diz Alberto Manguel sobre e-books

Aficionado por livros (impressos), escritor nega rótulo de 'tecnofóbico'



Por Gabriela Loureiro, na Galileu

Quando Alberto Manguel fala de seus livros preferidos, seus olhos azuis se iluminam. Nascido em Buenos Aires e hoje cidadão canadense, Manguel escreveu uma série de livros sobre a leitura e é hoje reconhecido como um especialista no ato de ler e acumular obras. Mas, apesar de ter uma biblioteca de 50 mil livros em sua casa no interior da França, Manguel reconhece a importância dos livros eletrônicos e nega o rótulo de “tecnofóbico”.

Manguel atingiu reconhecimento internacional com várias honrarias, como o título de Oficial da Ordem das Artes e das Letras, do Ministério da Cultura da França, e os Prêmios Grinzane Cavour e Roger Caillois. Em todas as suas obras, prega a leitura como a mais civilizada das paixões, uma celebração da alegria e da liberdade. Por exemplo, seu livro mais conhecido, “Uma História da Leitura”, trata sobre uma “cartografia imaginária”, uma espécie de atlas que criamos na mente com os lugares que imaginamos ao ler livros. Ele esteve em São Paulo esta semana para o ciclo Fronteiras do Pensamento e conversou com a GALILEU sobre sua paixão pela leitura, tecnologia e seu próximo livro, “Curiosidade”.

GALILEU: No seu livro “Uma História da Leitura”, você diz que ler é uma espécie de cartografia prática. Por favor, explique esse conceito.
Quando temos uma experiência, a adicionamos ao nosso mapa do mundo, onde fica cada experiência que construímos desde que nascemos, nossa visão das coisas. Ler nos dá palavras para definir de forma mais precisa as experiências da nossa vida nesse mapa do mundo. A cartografia de cada um é diferente porque a experiência e leitura de cada um são diferentes. Esse atlas individual constitui o que chamamos de realidade.

Mas quando eu leio Game of Thrones, por exemplo, e imagino um castelo que não existe no “mundo real”, isso faz parte da minha cartografia?
Claro. Por exemplo o castelo de Drácula. Não existe. Mas se estamos em uma casa escura, sem saber quem mais está lá, é noite... O imaginário que você criou a ler o Drácula vai te dar vocabulário para essa experiência agora. Cada experiência que temos como leitores no mundo que chamamos de real é colorido pelas nossas experiências imaginárias.  Quando você se apaixona e sente que essa experiência é única porque está acontecendo com você e não sabe como falar sobre isso, poemas e histórias de amor te darão as palavras e você vai entender melhor o que está acontecendo.

E qual é o seu lugar imaginário preferido?
Alice no País das Maravilhas, porque é tão parecido com a minha experiência do mundo. Eu li esse livro várias vezes ao longo da minha vida e, com o passar do tempo, eu comecei a ler diferentes Alices, o texto era o mesmo, mas a minha experiência era outra. Quando criança, era uma história sobre a experiência de uma criança no mundo maluco dos adultos, com suas regras loucas. Por quê? Porque sim. Na minha adolescência, essa questão por que se tornou uma forma de rebelião contra a estupidez do mundo, porque Alice é a única criatura racional nesse mundo louco, e é o que todo adolescente sente: “que sociedade é essa que não me permite ser eu mesmo?”. Alice tem um momento maravilhoso em que ela está tão confusa com o que está acontecendo, ela diz: “eu não sei mais quem eu sou, eu não sou mais a pessoa que eu era de manhã. Já sei o que vou fazer, vou esperar aqui até alguém me chamar pedindo para subir e eu vou perguntar ‘quem você quer que suba?’ e se eles falarem alguém que eu não gosto, eu não vou responder”. Na adolescência, você faz isso, você acusa os adultos de exigirem que você seja alguém que você não é. E então, quando adulto, percebi que o País das Maravilhas era o mundo da ganância, de banqueiros, do chapeleiro maluco que tinha uma mesa gigante de chá para muitas pessoas mas não deixa Alice sentar, ele diz “não tem lugar, não tem lugar”. Ela diz “é claro que tem lugar”. Mas nesse mundo não há lugar para quem sente fome, para quem é pobre. Nossa mesa é enorme, podemos servir todo mundo, mas dizemos não, porque somos como o chapeleiro maluco, egoístas e gananciosos.

Em um artigo, você criticou o chamado “extremismo tecnocrático”, a ideia de que e-books vão substituir os livros impressos. Explique melhor sua visão sobre essa dicotomia impresso x eletrônico.
Nós confundimos o instrumento que usamos com o uso que fazemos do instrumento. Posso dizer que essa xícara de café não tem qualidades de ação, não faz nada. Eu faço ela fazer algo, posso fazer com que ela segure o café para que eu possa beber e posso fazer uma ação negativa, jogando-a na sua cabeça e te matando, por exemplo. Dizer que a xícara é ruim porque pode matar pessoas é atribuir à xícara qualidades humanas que ela não tem. A xícara não seria culpada de homicídio, eu seria. A tecnologia eletrônica é um instrumento com qualidades como a xícara, pode fazer algumas coisas melhor que outras, mas dizer que a xícara é melhor que o pires porque segura o café é não aceitar nossas responsabilidades de ação. Não precisamos dizer “só vou ter livros eletrônicos” ou “só vou ter livros impressos”. Mas, se você tem uma companhia muito poderosa de pires, ela vai te convencer que o pires é melhor, se você tem uma empresa que quer que você compre um livro eletrônico por semana para a indústria continuar bem, ela vai tentar te convencer que livros impressos são obsoletos. Eles não te dão espaço para perguntar, como Alice, por quê? Ninguém questiona o porquê. Existe uma frase que era usada pelos romanos no Senado para fazer leis: per cui è buono, ou para quem isso é bom, a quem beneficia? É uma pergunta muito útil. Toda vez que lhe dizem para fazer algo, você deve fazer essa pergunta a si mesmo, e, se beneficiar a você ter somente e-books, claro, então os escolha. Mas, se a resposta for “beneficia a fábrica de pires”, então não faça.

Por “fábrica de pires” você quer dizer Amazon?
O problema da Amazon é o problema de qualquer monopólio. Tudo que quer acumular todo o poder é ruim. Quando você não dá ao consumidor uma escolha, quando todas as livrarias falirem, a Amazon poderá ditar o que, quando e como você vai comprar. Eu me oponho à Amazon por causa dessa possibilidade futura e porque eles usam métodos gangster de intimidação ao dizer ao cliente “eu posso te dar esse livro mais rápido e de uma forma melhor que o livreiro, que conhece seu negócio”.

Qual é a diferença entre ler um e-book e um livro impresso?
Quero deixar bem claro que não há uma hierarquia, nenhum é melhor que o outro. O importante é que cada suporte de texto tem diferentes qualidades, então depende de como você quer ler. Se você quer ler rápido e superficialmente, para escolher partes do texto em que você está interessado, se seu maior interesse é velocidade ou se você está viajando e não há espaço na sua mala, o livro eletrônico é perfeito. Mas se você está interessado em ler um livro no seu próprio ritmo e poder ir e voltar em páginas diferentes e ter uma relação física com o objeto, o livro impresso é melhor.
Você prefere o livro impresso, certo?
Sim, mas eu não gosto de dizer isso porque as pessoas pensam que eu sou “tecnofóbico”, eu uso computador, mas só para o que eu preciso. Tenho uma biblioteca imensa, não preciso da internet para ler. Mas reconheço suas utilidades.

Fale mais sobre seu próximo livro, por favor.
O livro se chama “Curiosidade” e é sobre as perguntas que fazemos a nós mesmos desde o começo dos tempos sobre nossa condição. Quem somos? Onde estamos? Qual é a nossa responsabilidade sobre o mundo? Como pensamos? Como transformamos pensamentos em palavras? Todas essas questões foram refletidas na literatura, e eu falo sobre como a literatura tentou responder essas perguntas através dos livros que li e minha experiência. Sempre achei que o que eu leio e o que eu vivo estão entrelaçados. Para estruturar o livro, escolhi ser guiado pela Comédia de Dante, porque é de uma riqueza e complexidade impressionantes e me permite olhar as perguntas em um contexto literário e no que acontece na história do mundo. Mas não há respostas porque não estou interessado em respostas. Há um ditado que diz “se você quer saber o caminho, não pergunte a alguém que vá te dar uma resposta, porque aí você não consegue se perder”.