sexta-feira, 14 de março de 2014

Estamos perdendo nossos anjos




Algum tempo atrás a pequena Kênia Barreto, de apenas nove anos de idade, foi ter com Deus.

Kênia era como as outras crianças de sua idade. Brincava, estudava, irritava-se ao ter que comer folhas e verduras amargas nas refeições, acalentava sonhos e esperanças.

Como todas as crianças da sua idade, em virtude da falta de segurança que assola nossas cidades, era mantida em seu castelo de fadas, e pouco saía do perímetro de sua casa. Que pai e mãe não respiram melhor e aliviados ao saber que a filha, de nove anos, brinca no quintal de casa?

Kênia morava em Santa Bárbara D’Oeste, município distante 138 km da capital do Estado mais rico e desenvolvido do país, São Paulo.

E a pequena criança, de apenas nove anos de idade, morreu num estado deplorável, envolto em vômito e diarréia, picada que foi em uma das mãos por um escorpião. E isto não ocorreu enquanto desbravava a floresta amazônica. Aconteceu enquanto brincava no quintal de sua casa.

Lembrei-me de um tempo já longínquo, quando coordenava um programa de saneamento rural e educação ambiental com recursos do Banco Mundial. Em uma pequena comunidade rural, o lixo, o entulho e as condições sanitárias faziam proliferar um exército de escorpiões.

Como a pobreza e a miséria estavam enraizadas em todas as residências, optamos por uma solução alternativa para combater os escorpiões: distribuir galos e galinhas para a comunidade. Predadoras de insetos, escorpiões e pequenos animais peçonhentos, as galinhas fariam o papel de “agentes” capazes de sanear o ambiente e, ao mesmo tempo, agregar ao cardápio alimentar ovos e frangos, oriundos da criação doméstica, um misto de brigadistas da saúde e granja domiciliar.

O planejado, contudo, não logrou êxito porque, famintos e miseráveis, a comunidade não teve alternativa que não fosse comer todos os “agentes” saneadores.

No Brasil, as questões sanitárias e de educação ambiental, são, desde sempre, tratadas de maneira deplorável. O caso da morte da pequena Kênia é prova do descaso das autoridades e dos agentes públicos. Nesses últimos anos os recursos federais destinados às ações de saneamento foram dos que mais receberam cortes para atender ao superávit primário. Os dados sem de corar os que tem vergonha na cara: o atendimento em coleta de esgotos mal chega a 48% da população brasileira; do esgoto gerado, apenas 37,5% recebe algum tipo de tratamento. Nas 100 cidades maiores cidades brasileiras somente 38,5% dos esgotos são tratados. Significa que, apenas essas cidades, lançam o equivalente a 3.500 piscinas olímpicas de esgotos por dia na natureza.

Carcomidas pelos escorpiões, pela esquistossomose, pela cólera, pela amebíase, pela giardíase, pela febre tifóide, pela salmonelose, pela hepatite infecciosa, pela poliomielite e pela disenteria, são nossas crianças que pagam o alto preço da irresponsabilidade de nossos políticos, de nossos gestores públicos.

A sociedade deve se mobilizar para impedir que os lobos sequazes continuem  sacrificando nossos anjos.

Antônio Carlos dos Santos, criador da metodologia de Planejamento Estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo.