Deu nos jornais:
DNA livra acusado de estupro após 26 anos nos EUA
Um acusado por estupro que passou quase 26 anos na prisão foi libertado por uma corte de Dallas, nos Estados Unidos. Um juiz recomendou a revisão da pena de Johnnie Earl Lindsey, após um teste recente de DNA demonstrar sua inocência. O caso de 1981 envolvia uma mulher de Dallas, e Lindsey foi condenado no ano seguinte.
Segundo a advogada Michelle Moore, o acusado sempre alegou inocência e inclusive tinha o cartão de ponto provando que ele estava no trabalho no momento do crime. Morre afirmou que houve um erro das testemunhas ao identificá-lo. Além disso, os policiais teriam se equivocado na ordenação das fotos dos suspeitos, o que contribuiu para o engano.
Lindsey é o 20º réu do condado de Dallas a ser inocentado por testes de DNA desde 2001, quando passou a valer uma nova lei estadual que aceita esses exames como provas em processos.
E escrevi pouco tempo atrás:
Um país refém da ideologia dos batedores de carteira
“Castigat ridendo mores”
Alguns costumes castigam as pessoas e o mundo.
Muitos deles vêm de milênios, acompanhando os diferentes estágios da evolução humana, mas mantendo a espécie num limiar entre o moderno e o bárbaro.
Dos mais graves é o costume de julgar, um hábito embebido de preconceito, açodamento, irresponsabilidade, leviandade, arrogância, posto que, na maioria das vezes, ocorre sem que se tenham os elementos mínimum minimórum de convicção, sem que a verdade esteja – de maneira irretocável – disposta, sem que os fatos estejam plenamente esclarecidos.
E realizado nessas condições, as possibilidades de erro, equívoco, engano, se multiplicam, elevam-se à enésima potência, escancarando as portas para que a injustiça mais vil e atroz se estabeleça soberanamente.
Circula na web uma fábula - O pitbul & o coelho – uma boa ilustração para o assunto que tratamos:
Eram dois vizinhos.
O primeiro vizinho comprou um coelhinho para os filhos.
Os filhos do outro vizinho pediram um bicho para o pai, que decidiu comprar um cão pitbul.
Conversaram os vizinhos:
- Mas o seu cão vai comer o meu coelho.
- Que absurdo!, de jeito nenhum, imagina, o meu pitbul é filhote, os bichanos crescerão juntos, pegarão amizade, e olhe que eu entendo de bicho como ninguém.
E tudo levava a crer que o dono do cachorro estava coberto de razão. E não é que juntos os animais cresceram e mais que amigos ficaram?! De tal modo que ninguém mais estranhava ver o coelho no quintal do cachorro e vice-versa.
Eis que o dono do coelho resolve passar o final de semana na praia com a família e deixou o bichinho sozinho.
Domingo, final de tarde, a família saboreava o lanche quando entra o pitbul na cozinha.
Dentre os dentes, o cão trazia o coelho, todo imundo, vermelho de terra e, morto.
Não tiveram dúvidas. Mataram o cachorro de tanto agredi-lo.
Berrava o homem:
- O vizinho estava certo, e agora, o que vai ser? Só podia dar nisso!
Mais algumas horas e os vizinhos chegariam. Angustiados, todos se olhavam num misto de revolta e incredulidade.
O cachorro jazia prostrado no meio da casa, morto, irremediavelmente morto.
-Já pensaram como vão ficar as crianças?
Não se sabe exatamente quem teve a idéia, mas parecia infalível:
-Vamos lavar o coelho, deixá-lo limpinho, depois a gente seca com o secador e o colocamos na casinha dele.
E assim foi feito.
Até perfume colocaram no coelhinho. Ficou lindo, parecia vivo, diziam.
Logo depois escutam os vizinhos chegando. E os gritos desolados das crianças.
- Descobriram!
Não passaram cinco minutos e o dono do coelho veio bater à porta, assustado. Parecia que tinha visto um fantasma.
- O que foi? Que cara é essa?
- O coelho, o coelho...
- O que tem o coelho?
- Morreu!
- Morreu? Ainda hoje à tarde parecia tão bem.
- Morreu na sexta-feira!
- Na sexta?
- Foi antes de viajarmos, as crianças o enterraram no fundo do quintal e agora reapareceu!
Um cão massificado com a fama de malvado, todos os dias ilustrando as páginas dos jornais com cenas de agressividade e violência explícitas, estraçalhando crianças, matando velhinhos, atacando pessoas, avançando em tudo o que ousasse simples movimento... Como não ser o pitbul? Está julgado, condenado e executado! ‘Tua fama te condena!’ Não é assim que procedemos? E mesmo quando não prevalece a fama, prevalecem os preconceitos.
Pouco importa que o pitbul seja inocente, que não tenha nada a ver com o ‘crime’. Pouco importa que, desesperadamente, tenha procurado o amigo de infância, esquadrinhado toda a redondeza, farejado por todos os quarteirões, numa busca frenética, angustiante, como a do pai que procura o filho perdido. Pouco importa que tenha desejado morrer junto com o amigo-coelho quando o encontrou enterrado. E que, carinhosa e cuidadosamente, tenha desenterrado o companheiro de todas as horas, e – se apegando num tênue fio de esperança - decidido recorrer ao dono, acreditando, com todas as forças, possível a ressuscitação... afinal não são os humanos tão poderosos e criativos?
Sim, os humanos sempre foram muito poderosos e criativos... para o bem e para o mal. E muitas vezes, a única ‘verdade’ que interessa é a urdida nos escaninhos do imaginário coletivo. Se o vermelho é púrpuro, torne-se azul; se o sabor é limão... ei-lo chocolate; se a textura é rugosa, num estalar de dedos está plenamente lisa e uniforme.
Mas... e os fatos, os antecedentes, a lógica, os indícios, as provas, os interesses, as contradições?
Qual o quê?! Se é noite, basta afirmar que o sol está a pino. É inverno? Decrete-se verão. É inocente? Oficialize-se culpado. O que importa são as convenções sociais. Se à consciência dói prender, então sejamos politicamente corretos, interne-se no manicômio. Bradam os hipócritas:
- A média é tudo! E não interessa que os pés estejam esturricando no forno em brasas e a cabeça petrificando, no congelador, pois que a temperatura média está em equilíbrio.
Vivemos o império da mentira. Os honestos, os íntegros, os éticos, os que cultuam e propagam a verdade são diuturnamente vítimas de ciladas, tramóias, intrigas, fuxicos, armações ilimitadas, urdis medonhos e mesquinhos...
Em Miami, na Flórida, EUA, um homem permaneceu durante 26 anos preso, condenado por ter cometido sete crimes sexuais. Foi detido no dia 29 de agosto de 1979 e acusado por nada menos que 25 mulheres. Todas, sob juramento, asseguraram terem sido violentadas ou vítimas de tentativas de violação.
A organização norte-americana “Projeto Inocência” - que investiga casos de possíveis erros judiciais - conseguiu convencer as autoridades a providenciar testes de DNA e escutar novamente as testemunhas, com o que se comprovou a inocência do indivíduo de origem cubana Diaz, no mais importante caso de reabilitação – dentre os 160 - já resolvido pela instituição.
O Ministério Público local se manifestou informando que encerraria o caso contra Diaz, visto que as provas de DNA indicam que o criminoso é uma outra pessoa e que algumas das presumíveis vítimas alteraram os testemunhos apresentados.
Porém, 26 anos da vida de Diaz foram parar no esgoto, na lata de lixo. O pujante sistema judiciário ostentado pelo país mais poderoso e desenvolvido do planeta não foi eficaz o suficiente para impedir que o erro fosse perpetrado.
Um outro caso ficou como mácula indelével na história.
No início dos anos 20, dois imigrantes italianos foram detidos pela polícia de Boston, EUA. Nicola Sacco, sapateiro, e Bartolomeo Vanzetti, peixeiro, integravam o movimento político anarquista e foram acusados de responsáveis por um assassinato ocorrido no dia 15 de abril de 1920.
O sistema encontrou em Sacco e Vanzetti uma forma de reafirmar suas referências conservadoras e conduziu o julgamento para ‘verdadeirar’ suas versões e visões. O sentido de tudo era, sobretudo, nortear os estrangeiros imigrantes quanto aos valores defendidos pela América e deixar um exemplo suficientemente convincente para os que ousassem questionar o stabilishment.
Acusados de assassinato, em 1921 foram levados a julgamento e condenados num dos mais escandalosos episódios de erro judicial do século XX. O Estado acusava-os do homicídio de um contador e de um guarda de uma fábrica de sapatos. Nem o aparecimento de um outro homem admitindo a autoria dos crimes foi suficiente para inocentá-los.
E no dia 23 de agosto de 1927 a sentença foi executada com Sacco e Vanzetti sendo eletrocutados na cadeira elétrica. Todo o processo manteve-se a léguas de distância da reparação judicial para conforma-se no caldo raso e mesquinho dos interesses políticos.
Filmado pelo diretor italiano Umberto Marino, o filme teve – no período da ditadura militar - sua exibição proibida no Brasil.
Por aqui, um caso que chocou o mundo foi o que vitimou a família Shimada, proprietários da Escola Base, de São Paulo.
Em 1994, Maria Aparecida e seu marido Icushiro Shimada, além do colaborador Maurício de Alvarenga, foram acusados pela polícia de promover orgias com menores na escola infantil que mantinham no bairro da Aclimação, cidade de São Paulo.
Boa parte da mídia, ávida por escândalos que dêem visibilidade aos indicadores de audiência, embarcaram de corpo e alma na cantilena policial, ajudando a mobilizar o povo para o justiçamento. E foi o que literalmente aconteceu.
Tudo começou quando duas mães de alunos acusaram os proprietários da Escola Base de promoverem orgias com as crianças lá matriculadas. O delegado Edélcio Lemos, no afã de aparecer, acatou imediatamente a denúncia e, estabanadamente, deu curso aos procedimentos atropelando tudo o que a boa lógica e a gestão serena recomendavam.
Um delegado incompetente aliado à parte da imprensa sensacionalista e irresponsável conceberam e edificaram o ambiente propício para a caçada às bruxas.
Pedofilia, violência contra crianças, abusos sexuais e estupros são questões que a plebe ignara utiliza para purgar os pecados coletivos, para redimir fracassos e frustrações. Pouco importa se, de fato, algum crime foi perpetrado, e se existem suspeitos. Como nos idos dos gladiadores romanos, a massa clama e requer martírio e sangue. Objetivam a catarse coletiva. Se não existe crime, invente-se. Não existem suspeitos? Criem-se culpados. O que resta? A aplicação da pena máxima, o justiçamento, preferencialmente por linchamento seguido de incineração do corpo.
Neste caso, a formalização dos procedimentos deu ao episódio uma vestimenta de seriedade, ‘lógica’ e consistência oficial. Os trâmites dispostos nas normas foram observados, testemunhas foram ouvidas, laudos técnicos elaborados. O circo estava preparado para o trágico e insidioso espetáculo. A parte da imprensa que integrou a súcia gozava o êxtase. A Folha da Tarde chegou a estampar: “Perua escolar carregava crianças para orgia”. E a Revista Veja, num de seus piores momentos, deu como manchete: “Escola de horrores”.
Plenamente convencido da existência do crime e da cabal identificação dos ‘criminosos’, o povo foi cuidar de garantir – com as próprias mãos – a defesa dos interesses sociais, promovendo o que o Estado se mostrava incapaz de cumprir: através de telefonemas, bilhetes, cartas e gritos passaram a ameaçar de morte o casal Shimada; invadiram e depredaram a escola de educação infantil, levando-os à bancarrota; roubaram-lhes a paz e até hoje as seqüelas persistem. Raramente o casal sai de casa, e tanto Maria Aparecida como seu marido Icushiro Shimada só conseguem dormir à custa de medicamentos tarja preta.
Logo o Estado teve que admitir o descomunal erro da polícia e a imprensa não teve como deixar de noticiar que as denúncias eram inteiramente falsas, desprovidas de qualquer fundamento.
Maiores vítimas da orquestração, os acusados foram considerados inocentes e o delegado tratou de arquivar, com a maior celeridade, o inquérito policial. Era necessário que todos esquecessem a sórdida trama: intimidação e tortura, testemunhas mentindo, provas arranjadas, laudos forjados, a ética profissional tripudiada e um conjunto indecoroso de procedimentos urdidos para consolidar o mal.
Um dos casos que devem angustiar Franz Kafka, impedindo-o de descansar no túmulo. Delegados, policiais e jornalistas saíram ilesos, ninguém foi punido, a não ser as vítimas que hoje, lutam na justiça por um mínimo de reparação.
A lição se prestou para alguma coisa? Qual?!
Todos os dias fatos similares ao da Escola Base ocorrem Brasil afora.
O ex-Ministro Alceni Guerra foi praticamente linchado por, segundo as autoridades/imprensa, ‘estar comprometido até os ossos’ com a corrupção e o desvio de dinheiro público, como o superfaturamento na compra de bicicletas. Provado a inocência, quem foi punido senão o ex-ministro, a vítima da tramóia?
Em 1996, na Choperia Bodega ocorreu um assalto seguido de dois assassinatos. Foi um episódio emblemático que gerou, inclusive, o surgimento do movimento Reage São Paulo. Em 15 dias as autoridades policiais chegaram a apresentar nove suspeitos. Posteriormente todos foram absolvidos e liberados por falta de provas. A tortura foi o mecanismo novamente utilizado para arranjar as confissões. E novamente parte considerável da imprensa caiu no conto de sereia policial, fotografando os suspeitos algemados, estampando-os nas primeiras páginas como marginais, delinqüentes, assassinos confessos.
A comédia - gênero da dramaturgia universal originada na Grécia antiga - tem um lema que classifico como uma das regras de ouro do teatro: “castigat ridendo mores” - rindo, castiga os costumes. Na realidade, ao que tudo indica, o país transformou-se numa grande comédia aos avessos. Ri, e ri muito, mas não consegue castigar seus costumes. E o ‘julgue e execute primeiro para comprovar depois’ tem sido um de nossos mais hediondos costumes.
Ainda que a culpa esteja comprovada, todos deveriam ter direito a um julgamento nos moldes preconizados na lei, todos deveriam ter garantido o direito de apresentar defesa, contraprovas, testemunhas, todos deveriam ter assegurado direito ao contraditório. É o que preconiza a lei maior da nação.
A passagem registrada pelo evangelista João parece não ter mais sentido no mundo de hoje. Inocente ou não, o que vale é a lei do talião, a Lex Talionis, o Código de Hamurabi de 1730 a.C: olhos por olho, dente por dente. Na passagem bíblica, Jesus adverte aos que acusavam uma pecadora: “Aquele que não tem pecado que atire a primeira pedra...”.
Pouco tempo atrás escrevi uma fábula expressando minha indignação contra os que, qual gado em estouro de boiada, se deixam conduzir pela manada, sem sequer refletir sobre o rumo e a direção que perseguem. É um retrato de minha indignação contra os que semeiam a mentira e contra os que anseiam, os que estão sempre ávidos, solícitos e sedentos por uma nova rede de intrigas, novas teias de mentiras, urdindo fofocas e mais fuxicos, plantando boatos e mentiras, sequiosos por enganar e serem enganados. Ei-la aqui:
A raposa e o estancieiro
A raposa, sendo surpreendida pelo dono da estância, não se fez de rogada:
- Foi o coelho quem comeu as galinhas, os pobres dos pintinhos e os suculentos patos também.
- Mas coelhos não são herbívoros? – replicou indignado o homem.
Procurando manter a pose e a empáfia, a raposa não se deixou intimidar:
- Não acompanhas a evolução do conhecimento, estúpido? Nada sabes sobre as revolucionárias inovações da genética, das pesquisas com células tronco, da nanobiologia? – E, impávida, arrematou toda impoluta e senhora de seus botões: - Com a modernidade, os coelhos tornaram-se vorazes carnívoros e nós, as raposas, redimidas de todo o mal, transformamo-nos em inofensivas devoradoras de relva e gramíneas, intelectuais orgânicas, cidadãs dos processos de inclusão e transformação social e baluartes do politicamente correto.
Respirando fundo para manter o controle, o estancieiro deu trelas ao animal, como que desejando investigar até onde chegaria a perversidade e a delinqüência do outro:
- Se é de relva que se alimenta, então qual a razão de tanto sangue e penugem nesses pontiagudos caninos?
Arfando ar autoritário e professoral, a raposa esquadrinhava o universo tentando localizar, no pantanal, um naco de chão onde pudesse firmar as pernas bambas:
- Como é insuportável lidar com a ignorância e a estultice. – E prosseguiu, intrépida e afoita: - Com o novo ordenamento dos filamentos helicoidais do DNA, a verde clorofila tornou-se púrpura intensa e a apetitosa gramínea adquiriu o formato de penas, plumas e penugens...
Não cabendo de revolta e repulsa, o homem riscou o facão no ar para ver a cabeça da raposa cair distante do restante do corpo. Náusea, fastio e asco lhe turvaram os sentimentos quando viu estampada na cabeça inerte da sanguinária e impiedosa assassina o olhar singelo, cândido e inocente só dado aos puros de coração.
Moral da história: jamais acuse o outro de fazer o que você faz. Ainda que tarde, haverá um dia em que a mentira sucumbirá frente ao inexorável e avassalador romper da verdade.
Poderíamos resgatar um antigo hábito que se esvaiu no tempo: o de questionar, fazer perguntas, inquirir, duvidar, analisar criticamente, identificar e refletir sobre os interesses em jogo, passar e repassar os fatos, checando com rigor os procedimentos adotados, assegurar como cláusula pétrea o contraditório, a premissa de que todos são inocentes até prova cabal em contrário, até esgotadas todas as instâncias processuais.
Onde foram parar os princípios que, desde a antiguidade, norteiam o raciocínio lógico, o encadeamento racional dos acontecimentos, as questões estratégicas que deveriam balizar o procedimento investigativo?
Quem não se lembra da piada do ladrão batedor de carteira que, correndo em fuga, ia abrindo caminho dentre a multidão gritando “pega o ladrão, pega o ladrão”?
Temos que zelar para que o Brasil não se torne o paraíso dos gatunos batedores de carteira.
Antônio Carlos dos Santos – criador da metodologia de Planejamento Estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de Teatro Popular de Bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br