domingo, 12 de julho de 2015

A frieza tomada emprestada dos serial killers


Como - em pleno século XXI – pode o analfabetismo estar tão entranhado entre nós?

Como é possível a chaga devassar de tal forma a alma nacional, envergonhando, prostrando e humilhando a nação?

Estamos adentrando o futuro com milhões de brasileiros amargando a situação de analfabetos. E que fique claro, não estou me referindo aos analfabetos funcionais.

Estima o IBGE que a população brasileira já ultrapassa 202,7 milhões de habitantes. Sendo assim, a conta expressa uma realidade insuportavelmente medonha, de toda inaceitável. Admitir com naturalidade que mais de 13 milhões de brasileiros estejam distantes da leitura crítica, estejam ao largo da cidadania, estejam ainda sob os grilhões do obscurantismo é admitir que o destino nos reserva a banalidade, a pequenez, é admitir que estamos fadados à mediocridade e ao subdesenvolvimento. Não se trata de negar o obvio ou ignorar a realidade. Ao contrário, trata-se de reagir, resistir, protestar, não com a naturalidade dos néscios, dos hipócritas, e sim com a indignação dos justos, com a revolta incontida das pessoas de bem, com infinito desprezo para o que cuidam de perpetuar um cenário tão bizarro e nefasto.

É difícil acreditar, mas, das 5.560 cidades brasileiras menos de uma centena podem ser consideradas livres do analfabetismo. Conseguiram índices similares aos dos países desenvolvidos. Custa reconhecer, mas, do total das urbes brasileiras, apenas 1% das cidades conseguiram enfrentar e resolver o problema. O restante do país, 99% dos municípios tupiniquins são, no mapa, como manchas indeléveis, máculas de vergonha e tragédia, território disforme estigmatizado pela brutalidade da chaga medieval.

Este é um problema - um dos mais graves – cuja solução não pode ser postergada. Qualquer governo que se preze deveria tomá-lo como estratégica. Equacionar e resolver esta questão deveria figurar como ponto de honra, ainda que para isso fosse necessário mobilizar a nação num esforço de guerra. Para que o país consiga dar vazão e curso ao desenvolvimento devemos erradicar o analfabetismo, dobrá-lo, colocá-lo de joelhos numa batalha sem tréguas, sem clemência.

Se este é um discurso na boca de todos - ou pelo menos de muitos - a aplicação, a prática tem sido exercida por muito poucos, quase ninguém. Neste ponto, a distância entre teoria e prática tem se mostrado imensuravelmente dolorida.

Aliás, associar teoria à prática tem sido desafio perene, onipresente para os brasileiros. Às vezes a teoria galopa um cavalo árabe, um corredor invencível, enquanto a prática se ajeita num pachorrento burro de carga. Outras vezes, é o contrário que se verifica, e a prática avança léguas deixando a teoria lá atrás, submersa numa nuvem densa de poeira. Parece que um dos fundadores de Pindorama, só para azucrinar nossas vidas, besuntou a teoria com óleo e a prática com água, de modo que misturar os dois passou – dentre nós - à categoria das impossibilidades físicas.

Políticos e autoridades que cultuam a ética costumam esculpir suas obras em rocha. Por isto são reconhecidos pelos contemporâneos e pelos que só viverão nos séculos seguintes. Deixam saudades. Já os que permitem que 13 milhões de brasileiros amarguem – em pleno século XXI – a escuridão da idade média, são loquazes, prolixos e escondem por detrás de olhares candidamente doces a frieza que tomaram emprestada dos serial killers. Enganam-se, portanto, os que acreditam que esses porcalhões entalham suas obras em água ou em vento. Não. Utilizam uma rocha ainda mais dura, porque o mal que perpetram atravessará muitos séculos à custa da dor, do sofrimento de milhões de brasileiros. A história os tem como os senhores da miséria.


Ilustração: Jornal Folha de São Paulo


Antônio Carlos dos Santos criou a metodologia Quasar K+ de Planejamento Estratégico e a tecnologia de produção de teatro popular Mané Beiçudo.