segunda-feira, 27 de julho de 2015

Educação, gestão e democracia


A palavra democracia já se popularizou entre nós. Tornou-se parte do vocabulário popular, se incorporando ao cotidiano das pessoas. Se por um lado esta situação representa um avanço expressivo, dado que qualquer que seja o significado adotado, falar em democracia sempre será oxigenar o ambiente político; por outro pode encerrar certa hipocrisia, um invólucro bem produzido para escamotear formas mais sutis de opressão e dominação. Quem não se lembra que a parte da Alemanha assumidamente bucocrático-comunista do período muro de Berlim se denominava pomposamente “democrática”?

De origem grega, a palavra democracia na realidade encerra uma multiplicidade de significados ditados sobretudo pela teoria política, ou mais apropriadamente pelas idiossincrasias circunstanciais. Originalmente significa uma forma de governo caracterizada pelos cidadãos exercerem diretamente o poder de decisão, quando prevalece a maioria.

Mas mesmo a maioria grega era bastante relativa, pois dela se excluíam as mulheres e a esmagadora maioria da população escrava.

O crescimento das cidades e a explosão demográfica ensejaram a modernização do estado e as necessárias adaptações foram tomando forma, de sorte que da democracia direta passamos para a democracia representativa, quando o exercício da decisão se processa através de representantes preliminarmente eleitos.

No Brasil, a história democrática é caracterizada por idas e vindas - infelizmente mais vindas que idas. Momentos de expansão – vezes acelerados - revezando com outros letárgicos e sonolentos. Longos períodos de obscurantismo e opressão cedendo uma fração do tempo aos frágeis, curtos e efêmeros períodos das liberdades.

Desde a proclamação da república já tivemos sete cartas magnas. Sete constituições, o que registra nossa extrema vulnerabilidade e o quanto nosso ordenamento legal é volátil.

Os limites da constituição imperial de 1824 estavam mais que evidentes quando estabeleceram inamovíveis vinculações do exercício dos direitos políticos ao nível de renda dos cidadãos, uma forma nada sutil de excluir a maioria da população do processo de participação institucional. Como que para redimir a tendência ultra-elitista, a constituição de 1891 se volta para outra direção, garantindo alguns direitos, assegurando a representação das minorias e instituindo o sufrágio universal masculino. Mas manteve os analfabetos, mendigos, soldados e religiosos ao largo desta importante conquista política e social.

Decorre daqui, portanto, dois problemas que de certa forma perduram até a atualidade.

O primeiro é que o voto aberto, nas condições em que foi estabelecido, permitiu a manipulação eleitoral, o voto de cabresto e o coronelismo, que de certa forma – assumindo formatos mais sofisticados – ainda dominam o panorama político em vários rincões do país.

E o segundo é que a falta de justiça eleitoral independente depositou nas mãos do governo o reconhecimento dos deputados eleitos.

No ano de 1934 surge uma nova constituição, inspirada na alemã, e que incorpora a Justiça do Trabalho e outras conquistas trabalhistas.

Se sete foram as constituições, as intervenções militares foram nove, testemunhando nossa cultura autoritária e a onipresença dos quartéis.

Quando lançamos o olhar sobre o conjunto dos mandatários da nação, percebemos que dos trinta e três presidentes brasileiros, dez não completaram o mandato. Destes dez, quatro foram depostos por golpes, três morreram, e um sofreu impeachment.

Do total dos presidentes brasileiros é curioso observar que apenas quinze foram escolhidos pelo voto direto, portanto menos da metade.

Mas a história política brasileira mostra um outro viés: a utilização do eleitorado como massa de manobra das elites dirigentes. Esta situação chegou a tal grau que, durante a república velha, apenas 3% dos que poderiam votar eram chamados a colocar o voto na urna.

Em contrapartida, mais recentemente foi a opinião pública que, mobilizada, possibilitou o impedimento do ex-presidente Fernando Collor.

Já tivemos presidente que imaginava ser a gestão pública um ramo da engenharia civil. Era o caso de Washington Luiz que chegou a afirmar que “governar é construir estradas”.

Se Washington Luiz foi o benemérito originário das grandes empreiteiras, não ficou atrás quando o assunto era a exclusão social. Conseguiu atribuir às forças policiais uma função muito maior que a de assegurar a elucidação de crimes e a prisão de delinqüentes. Foi Washington Luiz quem perenizou a expressão “a questão social é caso de polícia”.

Mas nossa sina autoritária tem raízes mais profundas. Nosso primeiro presidente, o marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891), determinou o fechamento do congresso, decretando a seguir o estado de sítio.

Floriano Peixoto (1891-1894) arquitetou durante todo o tempo contra as liberdades individuais, sobretudo a de opinião e foi o primeiro a fazer prisões políticas.

Arthur Bernardes (1922-1926) conseguiu aprimorar os desvios despóticos de Floriano Peixoto, tornando-se o primeiro a construir uma prisão especial para presos políticos.

E daí segue um conjunto de acontecimentos de cunho autoritário, incorporados às nossas tradições e imaginário; registrando o quanto a democracia tem sido até o momento uma cantilena principalmente para os excluídos.

Mesmo nos dias de hoje, quando vivemos uma experiência democrática jamais experimentada, salta aos olhos o que parece uma inesgotável capacidade de nossas elites políticas de promover exclusão social. A verdade é que, se avançamos na democratização da vida política, no campo econômico o que se fez foi muito pouco, haja vista o país ostentar uma das mais perversas concentrações de renda do planeta.

Este passado histórico afeta todos nós e, de uma maneira especial, os educadores. É que cabe a esta categoria especial de pessoas uma atividade por demais nobre: a de reproduzir o conhecimento, reciclá-lo, torná-lo assimilável para os aprendizes; desvendar os mistérios que emolduram as artes e o saber, e torná-los disponíveis e acessíveis a todos. E como conviver neste ambiente ignorando esta herança autoritária já incorporada – ainda que inconsciente - ao nosso modo de ser, pensar e agir? Este é o desafio do verdadeiro educador, transformar-se em um agente em permanente renovação, transformador de si e das coisas, um homem capaz de re-elaborar permanentemente o mundo, ao mesmo tempo em que re-elabora a si próprio. Um agente que enxerga o outro, e não só seus alunos, como literais parceiros neste processo dinâmico e ininterrupto de resgate da ética e da solidariedade. Um cidadão que não entenda a sala de aula como seu universo, e sim que perceba o universo como sua sala de aula.

É deste professor que nossos alunos e alunas necessitam. Nada de falsos libertários, loquazes ventríloquos, papagaios de pirata, cintilantes, onipresentes; sempre com as respostas prontas e definitivas na ponta da língua, mas hipócritas e pobres de conteúdo. Precisamos do professor que consiga superar e romper a redoma autoritária em que a sociedade está envolta. Do professor que ao invés de se colocar acima, se coloque ao lado do aluno, que partilhe com ele as dúvidas e que aceite o desafio de comungar a busca pela melhor das alternativas. Sim ao professor que - ao contrário da prepotência e arrogância da academia, dê guarida à humildade, à troca, à generosidade.

Se o que queremos construir é uma sociedade que partilhe os valores e as condições que nos transformem todos em cidadãos, então teremos que procurar por novos educadores e gestores públicos, por um agente que entenda a educação e a gestão como uma troca entre iguais com diferentes tipos de conhecimento. E que todo conhecimento tem, no seu devido contexto, importância individual e social.

Antônio Carlos dos Santos é professor universitário, criador da metodologia Quasar K+ de Planejamento Estratégico e da tecnologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo.