quarta-feira, 12 de outubro de 2022

"É uma situação preocupante para o presidente". Quem são os homens que podem fazer Putin cair?

 


O cerco começa a apertar para Vladimir Vladimirovich Putin. Com uma situação económica cada vez mais difícil, uma lista cada vez maior de derrotas militares e um processo de mobilização, no mínimo, caótico, multiplicam-se as vozes críticas no interior da cúpula do poder russo.

 

Outrora antigos aliados, agora a expressam publicamente a sua dessatisfação com o decorrer da "operação militar especial". Donos de exércitos privados e governadores de Repúblicas com historial separatista ameaçam fazer tremer os alicerces do regime. Os especialistas alertam que este é o momento mais sensível da vida política do presidente russo.

Para se manter no poder, Vladimir Putin, precisa de manter o apoio inegável das elites que o suportam. Este núcleo duro que sustenta o regime russo é maioritariamente composto por três grupos. Um desses grupos domina os serviços secretos, as várias polícias e até o próprio exército. O segundo grupo é considerado como a falange moderada do regime, composta pelos mais importantes homens de negócios, que beneficiaram da abertura da Rússia aos mercados, depois do colapso da União Soviética, e amealharam enormes fortunas com a bênção do próprio presidente. E a terceira é o grupo ligado à propaganda do regime.

Neste momento, com base no que é dito publicamente pelos principais membros destes grupos, é possível presumir que nenhum deles está satisfeito. Por um lado, a elite económica, mesmo que concorde com o conflito, quer que a guerra termine o mais depressa possível, uma vez que é má para o negócio e as sanções estão a colocar a Rússia num caminho que a pode fazer recuar economicamente até o final dos anos 90. Oleg Deripaska, aliado de Vladimir Putin e um dos mais importantes oligarcas russos, chegou mesmo a classificar a invasão russa como “um erro colossal” que “deita a perder” tudo aquilo que foi conquistado após o colapso do gigante soviético.

Por outro lado, a elite militar também já começou a expressar o seu desagrado para com o presidente russo pela forma como a guerra está a decorrer. Só que, ao contrário da elite empresarial, os “siloviki”, o grupo de homens próximos de Putin que mandam nos vários ramos da defesa, consideram que a resposta russa tem sido excessivamente branda e que a Rússia deve multiplicar os seus esforços para ganhar “a guerra contra o Ocidente” na Ucrânia.

“É uma situação preocupante para o presidente russo. Quando as críticas surgem por parte do "siloviki", membros da elite ligados aos serviços secretos e de defesa, é preocupante, uma vez que são pessoas que lhe são próximas e têm meios para o afastar. Mas não é só esse eixo que tem expressado críticas.”, considera a especialista em relações internacionais Helena Ferro Gouveia.

Mobilização - solução ou desastre?

Esta situação agravou-se bastante depois do anúncio público do presidente de que o país iria iniciar uma "mobilização parcial".

Para a Ucrânia, esta guerra é um conflito existencial. Se as forças armadas falharem em travar e recuperar o território perdido, a Ucrânia corre um sério risco de deixar de existir. Conscientes da importância da batalha que está a ser travada, o governo de Kiev foi rápido a agir: proibiu todos os homens com idades entre os 18 e os 65 anos de sair do país, ofereceu armamento aos cidadãos que se quisessem juntar aos grupos de defesa territorial, uma milícia capaz de assegurar a segurança na retaguarda e em alguns pontos da frente de batalha, e começou um longo processo de recruta por vagas. Como resultado, um exército que começou a guerra com pouco mais de 200 mil soldados, tem agora mais de 800 mil e o número continua a aumentar.

Este é um grande problema para o exército russo que se encontra agora em desvantagem numérica, num território que o seu inimigo conhece bem e está determinado em defender. Para acabar com ele, Putin decretou a mobilização parcial dos cidadãos russos que se encontram na reserva, abrindo a porta para a recruta de 300 mil novos soldados, embora o decreto assinado abra a porta para uma mobilização muito mais vasta.

Mas a chegada destes novos soldados pode não ter o efeito desejado. Multiplicam-se os relatos de que muitos destes recrutas foram enviados para a frente de batalha sem qualquer treino, sugerindo que existe um grave problema no que toca à falta de soldados na frente de batalha russa. “Foi-nos dito que não haveria qualquer treino antes de sermos enviados para a zona de combate. O comandante do regimento confirmou-o, vamos ser enviados para Kherson”, lamenta um recruta, num vídeo partilhado nas redes sociais russas.

O Institue for the Study of War alertava para isso mesmo. Desmotivados, sem condição física, mal equipados, sem treino e sem oficiais preparados para liderar: esta é uma combinação explosiva que “é pouco provável que tenha qualquer efeito significativo no reforço das posições russas”. Sem preparação, é muito provável que a taxa de mortalidade destes homens seja muito superior à de um grupo de militares treinados.

Como se isso não fosse suficiente, a notícia da mobilização desencadeou uma vaga de migração, com centenas de milhares de pessoas a tentar fugir para algum dos poucos países vizinhos que permitem a entrada de cidadãos russos, como a Georgia, a Arménia, o Cazaquistão e a Finlândia. Os números variam, mas, de acordo com um relatório independentemente verificado e publicado pelo jornal dissidente russo Novaya Gazeta, pelos menos, 261 mil homens já fugiram do país desde que foi decretada a mobilização. Já a Forbes Rússia aponta para um número bem mais alto, a rondar as 700 mil pessoas.

A verdade é que o número de bilhetes de avião só de ida subiu 27%, com o preço das viagens para alguns dos principais destinos, como a Turquia ou a Georgia, a chegarem a custar cinco mil euros por pessoa. E estes valores continuam a disparar sempre que surgem rumores de que as autoridades russas podem vir a fechar as fronteiras ou a convocar uma nova ronda de mobilização.

Mas todo este esforço causa enormes atritos sociais no seio da Rússia. Por um lado, todos os homens mobilizados representam a perda de trabalhadores em várias indústrias, já por si bastante fragilizadas pelas sanções impostas pelo ocidente. Por outra, o próprio processo pode não colher os resultados esperados no campo de batalha e ser visto pelos membros mais extremistas do núcleo duro de Putin como um sinal de fraqueza do líder.

“A mobilização foi, do ponto de vista genérico, a abertura de um problema social interno que não existia. Vamos ver de que forma é que a abertura deste problema não acaba por ter consequências de natureza política”, afirmou o major-general Arnaut Moreira.

Perigo vem de cima ou debaixo?

Mas é provável que a queda de Putin venha de cima e não debaixo. Após a libertação ucraniana da cidade de Lyman, na região de Donetsk, apenas 24 horas depois de Vladimir Putin ter decretado aquela província como parte integral da Rússia, um coro de vozes do topo do regime veio a público expressar o desagrado para com a chefia militar russa, particularmente para com o ministro da Defesa, Serguei Shoigu. A principal voz de descontentamento é a de Ramzan Kadyrov, líder da República da Chechénia, e “proprietário” de um exército autónomo que conta com mais de 70 mil soldados.

“Se hoje ou amanhã não houver mudanças na estratégia, serei obrigado a falar com a liderança do ministério da Defesa e a liderança do país para explicar a situação real no terreno”, afirmou, para dias depois, sugerir mesmo a utilização de armas nucleares táticas no terreno, de forma a reconquistar a vantagem.

Mas Kadyrov não foi o único membro da elite russa – e dono de um exército privado com milhares de soldados – a tecer duras críticas ao exército russo. O empresário de São Petersburgo, Yevgeny Prigozhin, fundador da famosa empresa privada militar Wagner, também expressou o seu apoio às palavras do checheno e classificou as tropas russas como "montes de lixo". Ambos têm um grande número de soldados a combater no terreno e o seu descontentamento pode representar um perigo para as elites militares.

“Na atual onda de patriotismo, [Prigozhin] quer posicionar-se como um feroz defensor da pátria, criador de uma organização militar profissional. Ele quer mostrar que pode lutar melhor do que o exército regular. Sempre tivemos tensões com o Ministério da Defesa”, alerta Marat Gabidullin, antigo mercenário do grupo Wagner, em declarações ao The Guardian.

Um dia depois, começou a circular um vídeo em várias contas de bloggers militares russos, que mostravam o que diziam ser um grupo de soldados recém mobilizados, que se queixavam das condições em que se encontravam, da falta de munições, equipamento, e apontavam sérias críticas ao ministério da Defesa. Porém, algo não batia certo. Os homens desse vídeo utilizavam máscaras a tapar a cara – uma marca característica dos mercenários do grupo Wagner – e pelo menos um utilizava uma insígnia do grupo, levantando questões entre os próprios russos sobre o vídeo não seria da autoria do próprio Prigozhin.

A verdade é que, dois dias depois Aleksey Slobodenyuk, funcionário do grupo de comunicação Patriot, do qual Prigozhin faz parte do conselho de administração, foi detido pela polícia russa, após os canais de Telegram que gere terem feito vários ataque a Shoigu e outros membros do exército.

“Um dos pontos de ataque contra o decorrer da guerra tem vindo também do eixo propagandístico, que são sobretudo os bloggers militares e pessoas ligadas à propaganda. Eles próprios têm sido vocais nas queixas contra as derrotas militares russas. Tudo isto erode o poder do presidente Vladimir Putin”, explica Helena Ferro Gouveia.

Mas Vladimir Putin conta com aliados bastante poderosos. Além do controlo quase total que exerce nas forças armadas, depois de ter colocado dois homens da sua confiança no poder, Serguei Shoigu e Valery Gerasimov, o presidente russo conta com parceiros em alguns dos lugares mais importantes do país, quase todos antigos membros dos serviços secretos soviéticos. Entre eles está Alexander Bortnikov, líder do FSB, a agência que sucedeu ao KGB, e que conta com mais de 160 mil funcionários encarregues de proteger o país e travar qualquer tentativa de insurreição contra a elite russa.

O controlo de Putin sobre a sociedade russa é tão profundo que a única forma do presidente ser afastado é por alguém próximo de si. E o líder russo sabe disso. Por isso, mesmo depois de ter criticado as mais altas chefias militares russas e ter colocado em causa a competência dos seus chefes, Kadyrov foi promovido pelo próprio presidente ao cargo de coronel-general.

Para Helena Ferro Gouveia, esta é uma “tentativa de apaziguamento” de um homem “que tem um peso grande no regime russo” e pode ressuscitar problemas como o separatismo checheno.

Um recente relatório dos serviços secretos norte-americano, publicado esta sexta-feira, confirma que os problemas de Putin podem estar mais próximos do que o que se pensa. O documento, que chegou mesmo ao livro do briefing diário do presidente americano, revela que Putin foi confrontado por uma pessoa próxima pelo que considera ser uma “má gestão do esforço de guerra e os erros cometidos por aqueles que executam a campanha militar”.

“Desde o início da ocupação, temos testemunhado um alarmismo crescente por parte de pessoas do círculo próximo de Putin. As nossas avaliações sugerem que são particularmente exercidas devido às recentes perdas russas”, revelou ao jornal Washington Post uma fonte dos serviços secretos.

O presidente conhece a história da Rússia. Tanto a queda do Czar, em 1917, como a queda da União Soviética, em 1991, vieram das ruas. Por isso, tanto para Putin como para os restantes membros dos membros dos siloviki, a segurança interna foi sempre a maior das prioridades. Por isso, protestos populares contra o regime e a mobilização pode “galvanizar a oposição” ao líder, mesmo dentro da “fação de falcões” que o apoia e representam um dos maiores perigos para o sistema criado por Putin.

“Os protestos populares podem galvanizar a oposição a Putin, levando eventualmente a um golpe. A ser alvo de um afastamento, esse golpe teria de vir de pessoas próximas do aparelho de segurança. É muito difícil haver um golpe de pessoas que não sejam próximas do presidente. Parece-me muito difícil que seja de uma outra forma”, conclui Helena Ferro Gouveia.

TVI


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