A Hypera Pharma (antiga Hypermarcas) turbinou os lucros e o valor de mercado,
mas uma operação policial pôs o bom momento da empresa em teste
O ano de 2018 deveria consolidar uma guinada para a Hypermarcas, fabricante do antigripal Apracur e do analgésico Doril. Depois de vender seus negócios nas áreas de alimentos, limpeza, beleza e higiene pessoal, abrindo mão de linhas de produtos famosas, como Salsaretti e Bozzano, a companhia, fundada pelo bilionário goiano João Alves de Queiroz Filho em 2001, passava a ser definitivamente uma farmacêutica. Era a conclusão de um processo iniciado em 2011 que fez seu lucro subir 73%, para 965 milhões de reais no ano passado.
A empresa mudou de nome, em fevereiro, para Hypera Pharma, focada em remédios. “Escolhemos concentrar investimentos nesse mercado porque já temos posição de liderança em diversas categorias. Vemos um grande potencial de crescimento”, disse Breno Oliveira, presidente da Hypera, em mensagem por e-mail enviada a EXAME. Os investidores na bolsa de valores vinham compartilhando desse otimismo e levaram a companhia ao valor de mercado recorde de 24 bilhões de reais em março, 38% mais do que um ano antes. Mas, no meio do caminho, houve uma investigação anticorrupção da Polícia Federal.
Em abril, cumprindo mandados de busca e apreensão na Hypera, a Polícia Federal deflagrou a Operação Tira-Teima para esclarecer a suspeita de participação da empresa no pagamento de propinas a políticos do MDB e do PSDB entre 2013 e 2015. O esquema foi descoberto após indícios de os malfeitos terem aparecido em depoimentos de lobistas pegos na Operação Lava-Jato. Nelson José de Mello, ex-diretor de relações institucionais da Hypermarcas e homem de confiança de Queiroz Filho, confessou em acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal, em 2016, ter repassado 26,4 milhões de reais a políticos em troca de futuro apoio a projetos de lei que poderiam beneficiar a companhia.
Mello, que deixou a empresa no mesmo ano da delação, disse que tomou a decisão por conta própria. O mesmo discurso tem sido adotado pela Hypera. No entanto, a queda de 25% das ações nos últimos três meses mostra que, assim como a PF, os investidores não estão acreditando nessa versão, e os respingos do maior escândalo de corrupção da história do país podem atravancar os planos da farmacêutica.
Depois de quatro anos e 52 fases da Lava-Jato, a Hypera se destaca no imenso rol de casos derivados da apuração de desvios na Petrobras porque é a maior empresa que não tem dependência vital de contratos com o setor público, como as empreiteiras e os estaleiros, nem calcou sua expansão em financiamentos de bancos do governo, a exemplo dos frigoríficos. Assim como outras companhias envolvidas, a farmacêutica tem sofrido por sua falta de transparência na divulgação de informações relativas à Tira–Teima, na visão de analistas.
Como companhia listada em bolsa, a Hypera tem obrigação de comunicar a seus acionistas qualquer evento que possa prejudicar seu balanço. Mas levou dez dias para que a empresa admitisse que a operação de busca e apreensão da PF em 10 de abril não teve como alvo apenas a sede da companhia em São Paulo, mas também a casa do presidente do conselho de administração, Queiroz Filho, e de Claudio Bergamo, que ocupava a presidência do grupo desde 2007. “Sem clareza do que de fato está acontecendo, é impossível tomar uma decisão sobre investir na empresa. Os resultados, os projetos, tudo passa para segundo plano”, afirma Eduar-do Guimarães, sócio da consultoria de análise de ações Levante.
Os dois principais executivos da Hypera, Queiroz Filho e Bergamo, deixaram voluntariamente seus cargos no dia 26 de abril. Em maio, surgiram rumores, igualmente rechaçados pela farmacêutica, de que ambos estão negociando uma delação premiada com o MPF e de que a Hypera considera fechar um acordo de leniên-cia com pagamento de uma multa de até 2 bilhões de reais. O montante equivale a quase cinco vezes os 463 milhões de reais de ativos líquidos da empresa no momento e a quase dois terços da dívida de 2,75 bilhões de reais que a farmacêutica tinha em 2010, antes de começar a vender seus outros negócios — na época, a quantia era tida como excessivamente alta. Ou seja, uma penalidade dessa monta significaria praticamente apagar o benefício financeiro obtido com a mudança estratégica. E também ficar sem folga de recursos para investir no desenvolvimento de novas formulações, um dos pilares da nova fase do grupo.
Calmaria que perdura?
A omissão, ou a demora para confirmar informações, como a incursão dos federais na casa de Queiroz Filho e de Bergamo, alimenta a especulação em torno da gravidade dos eventuais ilícitos e do grau de envolvimento da Hypera e de seus mais altos executivos. Essa lentidão é vista por advogados com conhecimento em acordos de delação e leniência como uma tática para conseguir uma proposta melhor por parte das autoridades. “O melhor a fazer nessas situações é sempre esperar o máximo para ver todas as provas que a polícia tem nas mãos”, diz um advogado que já atuou em diversos acordos desse tipo no Brasil e no exterior. “Se o caso contra a empresa não for muito sólido, pode-se pagar uma multa menor.”
Enquanto isso, nas fábricas e nos escritórios da Hypera, o ambiente é de relativa tranquilidade, segundo EXAME apurou. Assim como os investidores, os funcionários ficam sabendo primeiro de informações a respeito da Tira-Teima pela imprensa. Os empregados relatam, em condição de anonimato para não sofrer represálias, que o clima é de surpresa cada vez que um novo fato vem à tona. Diferentemente de outros grandes grupos envolvidos na Lava-Jato, segundo as acusações, as práticas apontadas como ilegais na Hypera ficaram restritas ao alto escalão e tiveram como objetivo benefícios específicos e limitados. De acordo com o depoimento do ex-diretor Mello, ele pretendia, com os pagamentos a políticos como o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (MDB-RJ), conseguir mudanças na Medida Provisória no 627, que aumentava a tributação de empresas brasileiras no exterior. Os advogados de Mello, Queiroz Filho e Bergamo não comentaram o caso.
Se no ambiente interno da companhia o clima está ameno, no exterior os danos à reputação e ao valor de mercado da Hypera nem se comparam, por ora, aos sofridos por outros grupos brasileiros atingidos por escândalos de corrupção. Além da Odebrecht, outras empreiteiras, como a Andrade Gutierrez, viram sumir seus contratos de obras com o poder público, sua principal fonte de renda, e correram o risco de quebrar quando as dificuldades financeiras as levaram a atrasar o pagamento de dívidas com investidores.
O frigorífico JBS perdeu 38% do valor de mercado na semana posterior à divulgação de que Joesley Batista, presidente do conselho de administração e um dos controladores do grupo, tinha gravado uma conversa com Michel Temer, no Palácio do Jaburu, em que o presidente da República supostamente concordava com a compra do silêncio de Eduardo Cunha (MDB-RJ) para que o parlamentar não delatasse o que seriam pagamentos de propina.
Ao mesmo tempo que a sombra da Tira–Teima tem desencorajado novos aportes, um grupo de investidores vem se agarrando aos robustos números financeiros e dando o benefício da dúvida à farmacêutica. No primeiro trimestre deste ano, na comparação com igual período de 2017, a receita cresceu 14%, para 928 milhões de reais, com uma elevação de 42% do lucro, para 302 milhões. A estimativa média do mercado financeiro é que as vendas alcançarão 3,7 bilhões de reais em 2018 (6% mais do que em 2017), com lucro de 1,5 bilhão (40% mais). A venda de ativos nos últimos anos possibilitou zerar uma dívida que era de 2,8 bilhões de reais em 2010, o equivalente a 3,7 vezes seu Ebitda. Com esses ganhos recentes, a Hypera aumentou em 84% a distribuição de dividendos aos investidores, com pagamento de 581 milhões de reais em juros sobre o capital próprio referentes a 2017.
A estratégia de apostar todas as fichas no mercado de remédios, com foco em genéricos e sem prescrição, está dando certo, na avaliação de Maria Cristina Costa, da consultoria de análise de ações Lopes Filho, do Rio de Janeiro. Existem atual-mente 120 laboratórios no país que fabricam medicamentos genéricos — eles custam, em média, 60% menos do que os de referência nas farmácias, segundo a PróGenéricos, a associação do setor. As vendas crescem a porcentagens de dois dígitos desde a liberação dessa categoria de remédios no Brasil, em 1999, e não diminuíram com a crise. “O mercado deve continuar crescendo consistentemente nos próximos anos, acompanhando o envelhecimento da população”, afirma a analista.
Ao se desfazer de negócios nas áreas de alimentos e beleza, a Hypera abriu mão de mercadorias de margem baixa e com vendas estagnadas por causa da crise. No entanto, trocou setores muito maiores (o faturamento combinado no país é de 750 bilhões de reais, 100 vezes o de genéricos) e que requerem baixo investimento por itens que exigem alto investimento em pesquisa e desenvolvimento. O risco estava calculado pelos executivos da empresa. Mas ninguém contava com uma operação policial no caminho.
Por Denyse Godoy, na Revista Exame