sexta-feira, 31 de outubro de 2014

"Nosso projeto não é político, mas humano", diz Daniel Barenboim


Em entrevista à DW, pianista e regente explica como, em meio à escalada da situação no Oriente Médio, mantém em harmonia os músicos da Orquestra West-Eastern Divan, que completa 15 anos e reúne árabes e judeus.

Da Deutsche Welle
 

Nascido em 1942 em Buenos Aires, o maestro Daniel Barenboim fundou em 1999, ao lado do intelectual Edward Said, a Orquestra West-Eastern Divan. Reunindo músicos palestinos, israelenses, libaneses, sírios, jordanos, egípcios, turcos e iranianos, o grupo é um símbolo da tolerância.

Além da West-Eastern Divan, desde 1992, ele está à frente da Staatsoper Unter den Linden, em Berlim, e é diretor do Teatro alla Scala, em Milão. O prolífero músico também continua sua carreira como solista, tocando piano em alguns dos principais palcos do planeta.

Em entrevista à Deutsche Welle, o pianista e regente de origem judaica falou dos 15 anos da orquestra, da tolerância dentro do grupo e do conflito entre israelenses e palestinos.

"Uma coisa é a forma de interpretar acontecimentos históricos; outra é o dever moral da compaixão", afirma. "Nosso projeto não é político, mas humano."

Deutsche Welle: Como você avalia os 15 anos da Orquestra West-Eastern Divan?

Daniel Barenboim: Artisticamente foram muito positivos. Tudo começou como uma orquestra jovem com diferentes níveis de qualidade entre os músicos. Com o tempo, eles foram se homogeneizando e hoje desempenham um enorme repertório em eventos importantes, como o Festival de Salzburgo, Berlim, Londres... No aspecto extramusical, o resultado foi menos impressionante. A Orquestra West-Eastern Divan só alcançará sua verdadeira dimensão no dia em que puder tocar em Líbano, Síria, Jordânia, Egito, Israel, Palestina, Turquia e Irã, que são os países de onde vêm os músicos. Tocamos uma vez na Palestina em 2005, mas hoje isso seria impossível.

A situação no Oriente Médio se complicou há alguns meses. Esses acontecimentos influenciaram os encontros entre membros da orquestra?

Alguns deles ficaram em dúvida se viriam. No final, vieram todos. Os primeiros dias foram difíceis porque, no que se refere à guerra em Gaza, os relatos de Israel e da Palestina não têm nada em comum. Houve momentos bastante complicados. Mas você não pode esperar que um palestino tenha empatia por uma família israelense que sofre porque se sente ameaçada, nem que um israelense simpatize com as barbaridades que aconteceram em Gaza. Outra coisa é a compaixão. A simpatia e a empatia são reações emocionais, mas a compaixão é uma obrigação moral. Disse a eles: "Se há aqui um israelense que não sente compaixão pelos palestinos e um árabe que não sente compaixão pelos israelenses, não há lugar para você nessa orquestra." Uma coisa é a forma de interpretar acontecimentos históricos; outra é o dever moral da compaixão.

Houve discussão entre os músicos?

Nosso projeto não é político, mas humano. Não buscamos que haja um consenso político entre os membros da orquestra. Isso é impossível entre 120 pessoas vindas daquela região, mas buscamos que aceitem, indaguem e tentem entender a história do outro, principalmente quando não se concorda com ela.
Barenboim à frente da Orquestra West-Eastern Divan em apresentação em Berlim

Recentemente, a Deutsche Welle entrevistou o escritor israelense Amos Oz. Ele começou a conversa perguntando ao jornalista: "O que você faria se seu vizinho se sentasse na varanda do outro lado da rua, colocasse o filho no colo e começasse atirar em direção ao quarto do seu filho?" Você teria uma resposta para essa pergunta?

Muitas pessoas em Israel, nem todos, sabem formular perguntas sobre a obrigação do outro, mas não se questionam sobre suas próprias obrigações. Se nós fazemos a história, não podemos voltar apenas a julho passado, mas muito antes. A história começa, colocando em um marco razoável, na época da Primeira Guerra Mundial, quando a população judaica na Palestina era de menos de 15%. Como se chegou a essa situação de um Estado em que os palestinos se tornaram refugiados e voltaram a ser minoria em sua própria terra? Tem que se fazer perguntas de ambos os lados. Lamentavelmente, no que se refere ao passado, não há uma única e coerente resposta válida para ambos os lados. Desde a invasão de Gaza, justificada ou não, o que vem acontecendo? Muitas mortes, incluindo crianças e um ódio que será difícil de eliminar em muitas gerações. Pode-se, ainda que com dificuldade, falar do ódio entre adultos. Mas ódio entre crianças... O resultado da operação em Gaza é, para os palestinos, muito sofrimento, e para Israel se encontra no mesmo ponto que estava antes. É o que Felipe González, ex-primeiro ministro espanhol, chama de um "empate permanente".

Houve uma mudança na percepção internacional do conflito depois da última ofensiva em Gaza?

A percepção internacional é importante, mas, no final, o mais urgente é a qualidade de vida das pessoas na região. No que se refere a Israel, a pressão externa é muito fraca. Assim que as coisas são. Se a União Europeia quisesse, poderia resolver o conflito em três dias, pressionando o governo de Israel – não estou falando do Estado de Israel, mas do governo – porque todo o mundo ocidental está comprometido em garantir a existência e a segurança de Israel. Isso é justo, sobretudo depois do que aconteceu no Holocausto. Mas garantir isso, não assegura nada, somente esse "empate permanente" em que todo mundo sofre. Se a comunidade internacional se preocupasse de uma maneira honesta, sincera e decidida em lidar com o destino judaico, ela precisa saber que, apoiando a política do governo de Israel, ela só vai manter o maldito "empate permanente".

Você lançou em 2010 uma série de orientações para a União Europeia sobre o conflito. O tempo passou. Você esperava mais da política de Obama em relação ao Oriente Médio?

Quando me lembro do discurso dele no Cairo, pensei naquele momento que, pela primeira vez, se via uma luz no fim do túnel. Mas a realidade não mudou em função daquele discurso. Pelo contrário, o discurso mudou desde então em função da realidade.

Daniel Barenboim durante a entrevista com a Deutsche Welle

O conflito em Gaza passou para um segundo plano na cobertura da imprensa. Você teme que a agenda política também passe para o segundo plano, movida pela ameaça permanente do Estado Islâmico e da epidemia do ebola?

O mundo sofre, desde a queda do Muro de Berlim, que está completando 25 anos, de uma falta de liderança. Havia um equilíbrio durante a Guerra Fria. Depois, tudo se voltou para um lado, e o Ocidente atuou com um triunfalismo incontrolável, como se o capitalismo fosse a resposta para todos os sofrimentos do mundo. Com a perda de hegemonia e da autoridade moral dos Estados Unidos, nós estamos em um momento único na história, que permite vários conflitos, como o "Estado Islâmico", o terrorismo no Afeganistão, a situação na Ucrânia ou o conflito entre árabes e israelenses, permanecerem. Mas isso acontece porque os líderes do mundo não estão engajados, e nós simplesmente não temos uma liderança. Essa é o verdadeiro ponto, e o que eu estou vendo desde a queda do Muro.

Além de fazer seu trabalho, por que você acredita que é necessário se envolver com os problemas do mundo?

Meu amigo Edward Said escreveu um livro sobre esse tema, concretamente, sobre o papel do intelectual na sociedade. Said diz que o intelectual tem a obrigação moral de criticar o establishment. No que se refere à música, há muitas pessoas, tanto interpretes como público, que veem a música como algo maravilhoso, mas vivem em uma torre de marfim. Eu não gosto das torres de marfim. Sinto que é minha responsabilidade o que faço com a Orquestra West-Eastern Divan. A democracia que temos nessa parte do mundo nos dá direitos, mas também responsabilidade.

Você chegaria a se envolver na política?

Não, absolutamente não. O que eu digo, eu digo pelo meu direito de cidadão de expressar o que penso. Aí entra uma questão muito perigosa, o antissemitismo. Não pode ser que, por criticar o governo de Israel, você seja automaticamente considerado um antissemita. Não podemos nos esquecer de duas coisas: em primeiro lugar, os palestinos são tão semitas como nós, os judeus. E em segundo lugar, se critica a atuação de um governo, e não seu povo.