terça-feira, 16 de setembro de 2014

A arqueologia como dano colateral

Da barbárie do califado à destruição dos grandes tesouros da Síria, o EL PAÍS percorre as últimas frentes de uma guerra silenciosa e recorrente contra a memória

Por Jacinto Antón no El País



Um rebelde cruza o velho mercado de Alepo, na Síria. / AFP

São tempos turbulentos para os vestígios do passado, especialmente noOriente Médio, berço da civilização. Sofrem as múmias, as antigas cidades mesopotâmicas, como Ebla, as mesquitas centenárias e os castelos dos cruzados – o estonteante Krak dos Cavaleiros, que fascinou Lawrence da Arábia, recebeu um tiro de canhão da artilharia síria – , e se inutilizam sítios arqueológicos que deveriam continuar dando frutos.
O patrimônio e a atividade arqueológica são as vítimas mais silenciosas da guerra. Os danos colaterais que sofrem são, em geral, os menos considerados. Tem sua lógica, sem dúvida: em conflitos bélicos, revoltas armadas e revoluções, o sofrimento e a morte de seres humanos deixam em segundo plano qualquer outra consideração; nenhum tesouro do passado vale tanto quanto uma vida humana. Dito isto, a destruição provocada pelas guerras em termos de cultura material é espantosa e empobrece a todos nós como espécie. Não é nada novo. A guerra, historicamente – embora às vezes tenha oferecido uma oportunidade paradoxal, como no caso da expedição de Bonaparte ao Egito, que praticamente iluminou a ciência da egiptologia – , não teve piedade do patrimônio ancestral: os monumentos, obras de arte e outros vestígios da antiguidade sempre sofreram de maneira dramática, como se o segundo cavaleiro do apocalipse, a guerra em seu cavalo vermelho, se deleitasse ao destruir a beleza e o conhecimento para impor sua terrível estética de armas, bandeiras e ensanguentados campos de batalha.
Recordemos eventos notáveis como o bombardeio do Partenon pela frota veneziana do almirante Morosini em 1687, que devastou o templo convertido em depósito de pólvora pelos turcos, ou a destruição com artilharia e foguetes dos grandes Budas de Bamiyan pelos talibãs em 2001, durante o longo conflito no Afeganistão.
A própria dinâmica da guerra muitas vezes leva a destruir ou danificar edifícios históricos, museus, obras e sítios arqueológicos. Raramente os militares modificam seus planos e ações por causa do patrimônio histórico. César não pensou nos danos que poderia causar à Biblioteca de Alexandria e à posteridade ao incendiar o porto. Nem os alemães entrincheirados ali, nem os Aliados, que a bombardearam em 1944 até arrasá-la, mostraram qualquer consideração pela antiga e venerável abadia beneditina de Monte Cassino, uma das muitíssimas maravilhas destruídas na Segunda Guerra Mundial. Tampouco as tropas norte-americanas deixaram de acampar nas ruínas da Babilônia, perto do palácio de verão de Saddam Hussein, e os pesados Abrams rolaram sobre os pavimentos milenares como rivais dos carros dos medos.
Outras vezes são o revanchismo e o ódio ideológico que guiam a mão destruidora – ao estilo da tocha de Alexandre em Persépolis –, como aconteceu com o museu de Cabul, mais uma vez vítima da barbuda iconoclastia talibã, ou a Biblioteca de Sarajevo. Provoca arrepios imaginar o que podem fazer – e já estão fazendo, segundo testemunhos – osfanáticos do Estado Islâmico (EI) cujos domínios correspondem a algumas das áreas de maior riqueza arqueológica do mundo, como os cursos superiores do Tigre e do Eufrates. Basta lembrar os estragos perpetrados por outros fanáticos islâmicos, os de Ansar Dine em Timbuktu em 2012.
A pilhagem segue como um tubarão o rastro da guerra. Vespasiano e Tito levaram para Roma os velhos artefatos sagrados dos judeus. Wellington, depois de derrotar o sultão Tipu, o Tigre de Misora, saqueou Seringapatam e pilhou seus tesouros (hoje no Museu Victoria & Albert). E que dizer do Terceiro Reich. O exército israelense, por sua vez, protagonizou episódios de destruição intencional do patrimônio, especialmente na Palestina e no Líbano. Os museus estão entre as primeiras vítimas da guerra e seus tesouros se espalham e desaparecem rapidamente através das redes obscuras do tráfico ilegal de antiguidades.
O panorama que se segue, a cargo dos correspondentes do EL PAÍS, das ameaças e danos a algumas das áreas mais conturbadas no Oriente Médio é um lembrete dessas outras vítimas do conflito que não devem ser esquecidas.