sexta-feira, 10 de junho de 2011

Cesariny - O Navio de Espelhos

O navio de espelhos
não navega cavalga


Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível


Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos


Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele


Os amadores não amam
a sua rota clara


(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)


Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga


O seu porão traz nada
nada leva à partida


Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta


(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)


Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto


A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto


Quando um se revolta
há dez mil insurrectos


(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)


E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo


Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)


Do princípio do mundo
até ao fim do mundo

ESTADO SEGUNDO, XXI
Ama como a estrada começa
Mário Cesariny
(Lisboa, 9/8/1923 – Lisboa, 26/11/2006)

Pintor e poeta, fundador do Movimento Surrealista Português.