Rosto aberto, trauma eterno: Nadia e Lamiya, desfigurada por mina, são das raras vítimas que se expõem (Frederick Florin/AFP) |
Militantes do Estado Islâmico são
levados a julgamento no Iraque, mas a vitória também traz problemas, como a
forma de tratar responsáveis por atrocidades
Mohammed Ahmed tem tanto arrependimento “quanto
fios de cabelo” na cabeça. Ele diz que foi doutrinado, induzido e até drogado
para combater o mais nobre dos combates: lutar pelo Estado Islâmico. Seu
depoimento, dado a um juiz da província iraquiana de Nínive, foi reproduzido
pelo Telegraph.
Por ser um bom combatente, Ahmed foi recompensado.
Ganhou quatro jovens yazidis, a minoria religiosa considerada pelos
fundamentalistas muçulmanos como indigna de qualquer consideração, abaixo até
de cristãos e judeus.
“Eram mais bonitas do que é possível imaginar”,
contou Ahmed. Eram também suas escravas sexuais. Ele passava cada noite com
uma. “Às vezes pareciam assustadas, mas nunca disseram não”.
Eram todas virgens quando foram dadas a Ahmed, que
tem 40 anos, depois da batalha de Sinjar. Na época, as yazidis, escolhidas
entre as mais bonitas e jovens, a partir dos 8 anos de idade, eram dadas como
recompensa por feitos no campo de batalha. Depois, passaram a ser vendidas.
Além de ser julgado por sequestro e estupro, Ahmed
também tem entre dez e doze homicídios na ficha. Eram homens e meninos, também
yazidis, na maioria agricultores, presos numa escola primária da região de
Sinjar. “Atirei neles dentro da escola”, disse Ahmed.
De repente, do nada, ele acrescenta: “Fizeram
lavagem cerebral em mim”.
VINGANÇA TRIBAL
Todos os profissionais do ramo sabem que não
existem culpados nas cadeias: a esmagadora maioria dos presos, em qualquer
lugar, se diz inocente. Mesmo quando culpados, sempre existe uma desculpa e
Ahmed é um caso típico numa situação extremamente atípica.
Ele foi preso em Mosul, depois dos combates e
bombardeios que deixaram a cidade iraquiana com aparência de Hiroshima do
deserto. Existem milhares de outros como Ahmed. Alguns foram fuzilados no ato
da rendição, mas as autoridades iraquianas querem demonstrar disciplina e
alguma aparência de operacionalidade do estado.
Não é difícil imaginar a pressão de aliados como os
Estados Unidos para que o princípio da vingança tribal seja controlado e a
eterna roda do “nós contra eles” não provoque os efeitos de sempre.
Quando sunitas estão no comando, xiitas são
perseguidos e – e vice-versa. No Iraque, por exemplo, o regime de Saddam
Hussein era de maioria sunita, embora politicamente laico. Os xiitas sofreram o
peso da mão hedionda de Saddam. Cristãos e outras minorias ficaram
relativamente protegidos, desde que fieis ao regime e obedientes a um processo
de “arabização” de nomes e costumes.
A invasão americana inverteu a relação de forças.
Os xiitas ascenderam ao poder, especialmente nas regiões do sul do país, onde
são majoritários. Os expurgos também mudaram de direção.
ANJO MÍTICO
É para tentar evitar erros assim que a forma de
tratamento dos militantes presos do Isis precisa ser levada iam consideração.
Um extermínio em massa, que seria a reação “normal” para os padrões locais,
perpetuaria a sensação de injustiça e insuflaria algum tipo de reação.
Os ultra-fundamentalistas do Estado Islâmico são
sunitas empenhados numa forma extrema de praticar a religião muçulmana. Por causa
desse “purismo”, consideram os xiitas heréticos. Quando o Estado Islâmico tomou
Mosul, entre outras atrocidades, exterminou 600 xiitas que estavam nas cadeias
locais.
Os yazidis, uma religião pré-islâmica, são vistos
como piores ainda: mais do que idólatras, adoradores do demônio por causa de
crenças antigas num anjo mítico que é comparado a uma entidade satânica. Para
complicar, etnicamente são curdos, um povo mais próximo dos persas, atuais
iranianos.
Esta exclusão terrível faz parte da história dos yazidis,
feita de perseguições e extermínios. Mas nunca aconteceu nada como a súbita
ascensão e expansão do Estado Islâmico, um grupo ultra-radical que atraiu
militantes do mundo todo, vindos desde a Chechênia até os bairros da zona leste
de Londres.
Criados na contemporaneidade da Europa Ocidental ou
nos costumes tradicionalistas da Ásia Central, tinham muito em comum além da
adesão fanática à ideologia político-religiosa do Isis. Queriam o poder,
exercido de maneira sem limites quando sancionado pelo grupo. E queriam meninas
e mulheres para usar como escravas sexuais.
A distribuição ou venda de jovens – as mulheres
mais velhas eram usadas como escravas domésticas ou simplesmente eliminadas com
os homens – transformou-se num dos fatores de atração de militantes.
Existe até uma fatwa, ou sentença religiosa, que se
tornou infame. Ela detalha em que condições as crianças e adultas tomadas
prisioneiras podem ser escravizadas, remetendo a uma prática tribal do tempo do
profeta Maomé, no século sexto da era cristã. A única “janela de proteção”,
temporal, é para mães de crianças de até um ano.
MORTE NO CATIVEIRO
Algumas dessas meninas e mulheres suicidaram-se
para escapar à violência sexual. Muitas arranhavam o rosto e o corpo ou
cobriam-se de cinzas, tentando parecer feias e causar rejeição a seus
torturadores. Outras foram compradas de volta por suas famílias. Em casos
raros, mulheres de combatentes, compungidas ou enciumadas, soltaram as vítimas
da escravidão.
Poucas conseguiram escapar por seus próprios meios,
como Lamiya Haji Bashar, que aparece com o rosto cheio de cicatrizes na foto
acima. São resultado dos ferimentos provocados por uma mina na qual pisou
quando fugia pelo deserto, na quarta tentativa de escapar. Ficou cega de um
olho.
Lamiya e Nadia Murad são algumas das poucas vítimas
do terror sexual que se apresentam em público, de rosto aberto, pois a
violência sexual estigmatiza as vítimas e suas famílias. Lamiya contou que era
submetida a estupros seguidos e diários, passada entre incontáveis militantes.
Muitas vezes desmaiava.
Apesar as várias derrotas sofridas pelo Estado
Islâmico, ainda existe um número considerável de yazidis em seu poder. Muitas
já morreram durante o cativeiro pois é impossível distinguir entre vítimas e
algozes durante os combates. A batalha final, que já se configura apesar do
intervalo atual, será em Raqqa.
Quando se cansou das suas escravas, Mohamed Ahmed
as vendeu a outros combatentes, pelo equivalente a 200 dólares cada uma.
Amontoados em celas na região de Mosul, onde o calor agora no verão chega a 50
graus, existem cerca de 5 000 outros “Ahmeds”. Um número mais ou menos
equivalente ao de yazidis escravizadas.
O que fazer com eles?
Por Vilma Gryzinski, na Veja.com
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