Bezerra da Silva já não suportava o mormaço e a visão de sempre, a mesma
paisagem amorfa e insossa das paredes encardidas do quarto insalubre em
Tijuana. Estava ali havia uma semana, recluso, prisioneiro de seus projetos e aspirações.
Sete dias sem arredar pé, sem sair do quarto sequer para uma ligeira refeição.
Nem a janela permitiram abrir, de modo que o sol virou efemeridade e o ar,
recluso como ele, sem fresta para renovar, se tornara viciado, intragável,
doentio.
No cortiço em que se empilhavam dezenas de minúsculos quartos mal cabia
a cama de solteiro. Nos cubículos se amontoavam pelo menos outros cem
brasileiros, todos aguardando dia e hora em que seriam levados à tão sonhada
fronteira.
Enquanto o comando não era dado os dias transcorriam modorrentos. Nada
oprimia mais que a infindável espera. Nada a fazer senão aguardar, esperar;
aguardar e esperar, cadenciando a respiração para que a aflição e o desespero
não resvalassem para a loucura. Às vezes o ímpeto era arrombar a porta e sair
rua afora, correndo, se embebedando da mais inebriante liberdade, se
embriagando com os raios do sol e as rajadas de brisa fresca. Mas a lembrança
de tudo o que ficou para trás os recompunham aos olhos da sensatez e da
prudência. Diziam da polícia e dos traficantes mexicanos horrores maiores que
os que pairavam sobre a guarda de fronteira norte-americana. Então, o bom senso
recomendava quietude, determinava a paciência ilimitada dos monges
tibetanos.
- Vó, vou fazer um pedido que
envergonha, mas tenho que fazer – falou Bezerra da Silva num só fôlego para não
perder a coragem, e completou antes que a última poção de ar lhe escapasse do
pulmão. – Preciso que a vó venda o lote pra passagem, tenho que comprar a de
ida e a de volta, é assim que funciona.
Desde a decisão de partir para os Estados Unidos, Bezerra da Silva iniciara
uma obstinada poupança de recursos. Economizava tudo o que fosse possível
guardando até mesmo as ninharias e menores moedas. Rompeu o namoro com Brigit,
a francesinha que sequestrara seu coração; afastou-se dos amigos e de tudo que
gerasse gasto, qualquer despesa. Passou a viver como um urso hibernando, economizando
todos os centavos, toda a energia. Fazia até oito biscates por dia, e três
horas por noite era o máximo que se permitia dormir. Trabalhou de garçom,
segurança de boate, porteiro de hotéis baratos, guarda noite de espeluncas,
lavador de pratos, personal trainer, guia de cegos, malabarista de sinaleiro,
fazendo o que de honesto lhe rendesse alguns trocados. Vendeu sua coleção de
gibis, depois a de CD’s e finalmente a de 387 DVD’s. Por fim vendeu a guitarra
Fender, o único patrimônio que restara e que de fato importava.
Da mãe solicitou que vendesse a aliança de diamantes, presente dos
trinta anos de casamento. Do pai obteve o dinheiro da venda de um relógio
Tissot, herança que nas sucessivas gerações passava de pai para filho. Até que
reuniu forças para incomodar a avó, sempre solidária, sempre atenciosa. Chorou
antes, no instante, e após solicitar que vendesse o único patrimônio herdado do
avô Ciríaco. A idosa matriarca, sem dizer palavra, foi até o quarto e de lá
veio com a escritura do terreno.
- Enxugue essas lágrimas,
Bezerrinha; estava mesmo guardando esse lote para você – disse, acossada pela
idade, mas satisfeita por poder ser útil e auxiliar o amado neto na materialização
dos sonhos.
O primeiro contato com o coiote se revestiu das piores impressões. O
mexicano compunha a perfeita caricatura do bandido dos velhos filmes de faroeste.
Franzino, sem os dentes da boca, perneta, e uma enorme cicatriz acima do
supercílio direito. Ostentava na cabeça um lenço de pirata com a imagem de Che
Guevara. Sem abrir a porta do quarto, falou do lado de fora. – Prepare-se que
chegou a hora, e não esqueça que minha obrigação é só impedir que se percam no
deserto – então deu o comando tão ansiosamente esperado. – Vamos embora.
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