sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Sobre o olhar angelical

     O pai de Santo Cleomar Patrício, indignado com o sofrimento e a dor da gente simples do lugar, resolveu radicalizar. Já não conseguia confortar milhares de pessoas que acorriam de todos os rincões do planeta, em busca de cura para os males do corpo e da alma. Era uma gente simples, mas angustiada, carente de paz, carinho, conforto e guarida. 

    Cleomar Patrício, o médium espírita mais famoso das redondezas, resolveu que, doravante, não mais se permitiria incorporar caboclos, caciques e garotinhos peraltas, espíritos que erravam por seu terreiro de umbanda. Estava inconformado com o que considerava certa indolência dessas potestades que aconselhavam e orientavam os fiéis apenas sobre trivialidades, mas sobre a vida dura e injusta que levavam, negligentemente contemporizavam. Os frequentadores, pacientemente, não arredavam pé do Centro Espírita. Multiplicavam as preces e insistiam ilimitada e eternamente nas oferendas e, ainda assim, não conseguiam romper o círculo de miséria, injustiça e sofrimento que as consumiam.

   Por isso, o médium amado por todos era um poço de revolta e inquietação. Indignava-se com o tratamento fleumático que as entidades dispensavam à sua gente. Inicialmente, queixava-se a elas na intimidade das orações mais reclusas. Como permanecessem insensíveis aos seus clamores, passou aos questionamentos e, depois, encetou ásperas discussões – não importando que fosse em público - se valendo de palavras ácidas, impropérios, insultos, tratamento incompatível com seu temperamento sempre afetuoso e fraterno. Foi quando decidiu se impor de forma categórica. Nas sessões espíritas, só permitiria em seu corpo incorporar entidades comprometidas socialmente, que ostentassem um passado de lutas revolucionárias, que as vidas tivessem sacrificado em virtude de causas nobres e populares. Preferencialmente, que as pelejas travadas as tivessem projetado para além mar. Chegou ao extremo: daria as costas às sondagens de personalidades cuja importância não fosse categórica, peremptória na história revolucionária.

   Esperava assim corresponder, com maior apreço, às expectativas daquela gente abandonada, cujos sonhos fragmentavam-se no dia a dia entrecortado por aflições e agonia.

   Para enfrentar o novo desafio mergulhou com intensidade nas pesquisas, aprofundou as investigações científicas, perscrutou as biografias das personalidades que concederam suas vidas à defesa dos fracos e oprimidos.  Esquadrinhou a história dos povos, a formação das nacionalidades, o perfil dos justiceiros leais ao ideário libertário. Investigou todos os movimentos brasileiros se detendo com especial interesse na Guerra de Antônio Conselheiro e no movimento de Zumbi dos Palmares. Adentrou as revoluções francesa e mexicana; a norte americana e a francesa; reviveu, de 1917, a esperança soviética; cerrou fileiras com Solano Lopes nas suas incursões pela América Latina. Padeceu com árabes e indianos o domínio colonialista inglês e sorveu o cálice da amargura com os judeus e ciganos, vítimas preferenciais da hedionda repressão nazista. Aliou-se com bravura aos povos vítimas da insanidade dos países imperialistas. Desnudou os meandros das ciências políticas e pode compreender os ardis e a teia de armadilhas que certas elites, invariavelmente, lançam mão para manter o povo, por todo o sempre, na medonha escravidão da ignorância, ao largo do conhecimento e do saber.


   O Pai de Santo Cleomar Patrício transformou-se, empreendeu uma completa metamorfose. Emergiu dos livros e das investigações como um homem renovado, renascido das cinzas, estuário da virtude e dignidade humanas, depositário do que a humanidade reproduzira de mais nobre e justo sobre a face da terra.


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