Zequinha mal esperou o apresentador do circo solicitar, ao microfone,
duas crianças da plateia para participar de um número com o palhaço
Pirlipimpim. Num repente, desgarrou-se dos braços da mãe e correu em direção ao
tablado. O garoto de apenas sete anos era uma graça. Desinibido, era a atração
nas festas de aniversário. Cantava, dançava, recitava, contava piadas e
apresentava pequenos esquetes concebidos por ele, sem auxílio de quem mais
experimentado na lida. Os versos e esquetes conseguia elaborar na forma de
cordel, estilo que assimilara como que por osmose do pai. O velho José, desde
sempre, entoava em seus ouvidos versos populares para embalá-lo no sono.
Dia sim e o outro também a molecada acorria à casa do menino prodígio,
intimando-o para a pelada que invariavelmente iniciava às 16 para só findar no
escuro, ao redor das 19 horas. Isso porque Maria Santa surgia do nada, varinha
fina que garimpava no pé de amora determinando o término da brincadeira.
Todavia, antes de se apresentar, a mãe permanecia escondida, encantada com os
dribles ligeiros do filho, as arrancadas fulminantes, os passes precisos e os
gols incrivelmente encantadores que colocavam os arqueiros prostrados no chão
de terra batida.
Como a pobreza do lugar era extrema, ainda no colo Zequinha seguia com
os pais para a feira livre onde exploravam banca de frutas de época. Com nove
meses já gritava “lalanja feguês por um leal a duza”. Dois anos e conseguia
devolver o troco corretamente se o freguês pagasse com nota de um, dois, cinco
ou dez reais. Com três anos de idade e já tomava conta da banca de frutas,
sozinho, liberando os pais para uma outra barraca que a família montara para
comercializar deliciosos pastéis de carne e queijo, estalados na hora.
O velho José professava a fé espírita, Maria Santa a católica, e jamais
se desentenderam com as diferenças religiosas. De modo que incutiram no filho uma
fina percepção quanto ao ecumenismo; e que o respeito e a generosidade eram os ingredientes
milagrosos capazes de unificar as pessoas. E assim ensinaram os benefícios da
compreensão, da indulgência, da tolerância religiosa, condições indispensáveis para
alcançar paz no seio dos indivíduos e dos povos.
- Religião, mulher e time de
futebol cada um tem o seu e não se discute – pontificava compenetrado o pai.
- Devemos respeitar a escolha de
cada um - complementava a mãe.
A chegada da idade escolar foi encontrar a família apreensiva. Zequinha
mais eufórico que alarmado. Ansiava, aluno, envergar o uniforme, possuir o
próprio caderno de caligrafia, manusear seus livros de figuras engraçadas, cativar
o estojo de lápis coloridos. Como ocorria com os meninos que adorava observar,
vestidos de bermuda azul e camiseta branca com finas listras vermelhas
dirigindo-se falantes ao educandário municipal.
Porém, do alto de sua tenra idade observava também inúmeras outras
crianças, muitas de seu tamanho e idade, que chamava pelo nome e sobrenome,
vizinhos de rua, outrora de peladas, escravizados pelo crack, pelo oxi, pela
lata de cola de sapateiro comprimida no nariz; passos, trejeitos e voz fadados
à eterna embriaguês. A mãe orientava: “quem não vai pra escola se perde na cola
e no solvente de tinta”. E que a vida, nas ruas, transformava os filhos em
crianças-zumbis, despojados de vontade e alma, com o coração partido em
pedaços. E repetia o mantra incansavelmente para alertar o filho.
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