Gilmar Mendes abraça Michel Temer durante cerimônia no TSE (Fabio Rodrigues Pozzebom//Reprodução) |
A maior vitória do ministro que se
promoveu a Juiz dos Juízes pode ter sido também a última
Uma imensidão de brasileiros descobriu na semana
passada que o Tribunal Superior Eleitoral é presidido por um ministro da defesa
de réus soterrados pela avalanche de provas do crime. Quem acompanha a
trajetória de Gilmar Mendes sabe disso pelo menos desde 2008, quando esse
mato-grossense de Diamantino assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal
— e passou a mostrar que o professor de Direito Constitucional era a fachada
que camuflava um doutor em absolvição de culpados.
Em 27 de agosto de 2009, por exemplo, Gilmar
conseguiu arquivar “por falta de provas” a denúncia que identificava Antonio
Palocci como o mentor da violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo
Costa, que testemunhara as frequentes aparições do ainda ministro da Fazenda na
suspeitíssima “República de Ribeirão Preto”. Para inventar o estupro
encomendado sem mandante, valeu-se do duplo papel de presidente da corte e
relator do caso.
O relator negou-se a enxergar a catarata de
evidências. O presidente foi o primeiro a votar pelo sepultamento da
bandalheira. A mentira venceu por 5 a 4 porque Gilmar, como reafirma o vídeo
abaixo, não viu nada de mais. Talvez aceitasse a denúncia se Palocci fosse
pessoalmente à agência da CEF, obrigasse o gerente a mostrar-lhe a conta e
convocasse uma entrevista coletiva para confessar o que fizera. Como não agiu
assim, sobrou para o caseiro.
Por ter contado a verdade, Francenildo perdeu o
emprego, o sossego, a mulher e a chance de conseguir trabalho fixo em Brasília.
O culpado ficou dois meses deprimido com a perda do emprego, elegeu-se deputado
federal, coordenou a campanha de Dilma Rousseff, virou chefe da Casa Civil,
teve de cair fora do primeiro escalão por ter enriquecido como facilitador de
negociatas disfarçado de “consultor”, voltou ao palco para ajudar a candidata à
reeleição e acabou no pântano drenado pela Lava Jato.
Preso em Curitiba desde 26 de setembro de 2016,
Palocci tentou recentemente escapar pela trilha que começa na Segunda Turma do
STF. O malogro da tentativa de ser resgatado da cela pela trinca formada por
Gilmar, Lewandowski e Toffoli convenceu o ex-ministro a buscar um acordo com o
Ministério Público Federal. No momento, o Italiano da Odebrecht ensaia a delação premiada
que assombra as madrugadas de Lula. Promete fazer revelações que comprometem
banqueiros e empresários. Tomara que não se esqueça do Poder Judiciário.
Em dezembro de 2009, enquanto Palocci saboreava o
regresso à Câmara dos Deputados, Gilmar valeu-se de um habeas corpus para
devolver à liberdade o médico Roger Abdelmassih, engaiolado desde agosto pela
autoria de pelo menos 56 crimes sexuais contra 37 pacientes e condenado a 278
anos de prisão. Convencido de que o popstar da inseminação artificial já não
ameaçava ninguém por ter sido proibido de exercer a profissão, decidiu que
quatro meses de confinamento estavam de bom tamanho.
Em 2011, a polícia comunicou à Justiça que
Abdelmassih havia regularizado o passaporte e pediu autorização ao STF para
prendê-lo antes que fugisse. De novo, Gilmar garantiu-lhe o direito de ir e
vir, que usou em 2011 para ir embora do Brasil e não voltar. Foi recapturado
três anos mais tarde, quando saboreava a vida mansa no Paraguai. Hoje é um dos
hóspedes do presídio de Tremembé.
Nos anos seguintes, a agenda sempre sobrecarregada
de Gilmar Mendes não deixou de abrir espaço para atendimentos de emergência a
amigos do Estado natal, sobretudo aos que reconhecem e festejam a influência do
ministro. Em 10 de maio de 2013, ao receber a medalha da Ordem do Mérito de
Mato Grosso, o homenageado incluiu nesse grupo de elite o governador Silval
Barbosa: “Somos amigos há muito anos, sempre tivemos conversas proveitosas”,
diz Gilmar no vídeo abaixo. Uma dessas conversas proveitosas ocorreria um ano
mais tarde, quando a residência de Silval foi alvo de um mandado de busca e
apreensão executado pela Polícia Federal.
Ao vasculharem a casa do político investigado no
Supremo Tribunal Federal por corrupção, os agentes da PF encontraram uma
pistola com registro vencido. Depois de pagar a fiança fixada em R$ 100 mil,
Silval teve prontamente atendido o pedido de socorro a Gilmar, como atesta o
áudio abaixo.
— Governador, que confusão é essa!!!??? — ouve-se a
voz de Gilmar Mendes num tom que desenha um buquê de pontos de exclamação e
interrogação.
— Barbaridade, ministro, isso é uma loucura! —
ouve-se a voz de Silval Barbosa num tom de quem faz o possível para simular
espanto.
— Que coisa! Tô sabendo isso agora! — Gilmar
continua perplexo.
— É… é uma decisão aí do Toffoli — começa o cortejo
de palavras desconexas, frases truncadas e explicações incoerentes,
interrompido a cada meia dúzia de sílabas por vírgulas bêbadas e reticências
que denunciam a ausência de álibis. Entre um e outro hum-hum rosnado por
Gilmar, o governador menciona Blairo Maggi, uma delação premiada e denúncias
envolvendo a campanha eleitoral de 2010 que nem sabe direito quais são. Precisa
conferir o processo. — É uma loucura, viu? — recita com voz chorosa.
— Que loucura!, que loucura! — concorda Gilmar,
antes de avisar que o socorro está a caminho. — Eu vou ver. Vou agora para o
TSE conversar com o Toffoli.
O governador repete o falatório incongruente. O
ministro do STF reitera a promessa de ajuda:
— Eu vou lá e, se for o caso, depois a gente
conversa — combina Gilmar, que se despede com “um abraço de solidariedade”.
Silval pôde dormir em sossego enquanto desfrutou do
foro privilegiado. Terminado o mandato, ficou exposto a instâncias do
Judiciário fora do alcance do nada santo protetor de corruptos. Em 17 de
setembro de 2015, depois de ficar foragido por dois dias para escapar da prisão
preventiva decretada pela juíza Selma Arruda, Silval entregou-se à Justiça.
Passados quase dois anos, continua engaiolado. Mas não parece figurar na agenda
de preocupações do especialista na absolvição de culpados.
Gilmar, que vive prometendo marcar encontros com
“as prisões alongadas ocorridas em Curitiba”, não deu as caras na cadeia que há
quase dois anos aloja Silval. Feroz inimigo de delações premiadas, decerto não
gostou de saber que o ex-governador negocia um acordo com a Justiça que o
obrigará a contar tudo o que sabe. A amizade entre essas duas celebridades
mato-grossenses pode estar perto do fim.
Como reiterou a entrevista publicada pela Folha nesta
segunda-feira, Gilmar vê no espelho uma figura onipotente, onisciente e
onipresente. Mas mesmo quem pode muito não pode tudo. Já não pode, por exemplo,
livrar Aécio Neves da enrascada em que se meteu com a divulgação da conversa
telefônica em que tentou conseguir R$ 2 milhões de Joesley Batista — e mostrou
ao país que um ex-candidato à Presidência da República também sabe falar um
subdialeto de encabular o mais desbocado brigão de cortiço.
Até então, o senador mineiro figurou na lista VIP
dos clientes do ministro. Aos integrantes desse grupo é permitido até pedir que
um ministro do Supremo interfira em votações no Senado, como atesta a gravação
abaixo reproduzida, que registra o diálogo entre entre Gilmar e Aécio ocorrido
em 26 de abril deste ano. Ou pode, como fez Michel Temer, pedir ao presidente
do TSE que o absolva por excesso de provas. Foi a maior vitória do Juiz dos
Juízes. Talvez tenha sido a última.
Por Augusto Nunes, na Veja.com
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