Julgamento será um divisor de águas
para o tribunal
O TSE poderia decidir contra a cassação da chapa Dilma-Temer por
ausência de provas? Segundo essa tese, que vem ganhando destaque na imprensa,
tudo o que veio à tona na Lava Jato deveria ser descartado. A ação original
proposta pelo PSDB em janeiro de 2015 teria objeto mais restrito, argumenta-se,
e esses outros elementos só vieram à tona muito tempo depois.
Ou seja, o TSE deveria julgar fingindo que não sabe de nada,
desconsiderando todas as provas testemunhais, documentais e periciais
produzidas ao longo destes dois anos e reproduzidas nos processos eleitorais,
em nome de uma barreira processual .
Para uma nação em crise, que anseia por uma decisão judicial sobre
as eleições de 2014, seria frustrante.
Além disso, e mais grave, a tese mal esconde uma esperteza e um
sério risco.
As ações propostas logo após as eleições, é certo, não contêm a
descrição exata de boa parte dos fatos que se tornaram conhecidos a partir da
Lava Jato. Nem poderiam. A lei eleitoral é draconiana neste sentido: ações que
discutem a legitimidade das eleições devem ser propostas no máximo 15 dias
depois da diplomação.
Esse prazo curto evita que perdedores inconformados prolonguem nos
tribunais a disputa das urnas. Mas traz um problema: quando os abusos ocorrem,
dificilmente se conhece a sua dimensão exata no estreito prazo da lei. E, neste
caso, há duas opções: ou não se propõe a ação e os eventuais abusos ficam
impunes, ou ela é proposta com o pouco que se sabe para não se perder o prazo.
Quando isto acontece e as provas não aparecem, o destino é a improcedência.
A Lava Jato se encarregou de produzir provas devastadoras dos
abusos genericamente alegados na ação do PSDB. E o TSE, por pelo menos duas
vezes, deliberou expressamente pela possibilidade de que estas provas
produzidas em Curitiba e em Brasília, sob a homologação do Supremo, fossem
compartilhadas e trazidas para a seara eleitoral.
A última vez em que isto aconteceu, em abril passado, a corte
unanimemente considerou relevante trazer aos autos depoimentos de novos
delatores (João Santana e Mônica Moura), além de conceder mais prazo para as
defesas se manifestarem sobre os documentos trazidos pela colaboração da
Odebrecht.
Em outras palavras, a Lava Jato já havia entrado oficialmente nas
ações eleitorais. O TSE há muito já entendeu que, para decidir se houve ou não
abuso nas eleições de 2014, precisaria levar em conta aquele acervo imenso de
provas. Por isso mesmo, aliás, que esse processo vem se arrastando por tanto
tempo: para que os dados fossem processados nas ações eleitorais, dentro das
regras.
Recuar agora seria, no mínimo, contraditório. Para não dizer
leviano. Desmoralizaria a justiça eleitoral como um todo, em um momento delicado
da democracia brasileira.
Em defesa dessa perigosa tese, afirma-se que “a Lava Jato traz
prova de outros abusos” que não os descritos pelo
PSDB na ação de 2015, ou seja, está fora do limites formais do conflito levado
ao conhecimento do judiciário.
Contudo, “abuso” é um conceito aberto na lei. Sua gravidade e seu
impacto na legitimidade da eleição se faz no caso concreto. E a própria lei
autoriza o tribunal a levar em conta fatos públicos, mesmo que não mencionados
expressamente no pedido inicial.
Mais do que decidir se Temer fica ou não, o país está esperando
que o TSE diga expressamente se o uso intenso de caixa 2, se a remessa de
dinheiro para o exterior para pagar marqueteiros, se o emprego de dinheiro
indiretamente vindo de estatais, dentre tantos outros fatos, configuram ou não
hipóteses do que a Constituição chama abstratamente de abuso do poder econômico
em eleições. Este é o papel da justiça eleitoral.
O julgamento que se inicia nesta semana será, para o TSE, o
equivalente ao que foi o Mensalão para o Supremo: um divisor de águas. Se o
tribunal cumprir o seu papel, esse caso poderá servir como precedente
fundamental para o futuro do combate à fraude eleitoral. Sem Mensalão,
dificilmente teríamos Lava Jato. Se o TSE, ao julgar o processo de cassação da
chapa Dilma-Temer, deixar de lado os fatos desvendados pela Lava Jato,
ignorando o passado, ameaçará também o futuro do combate à corrupção no Brasil.
Ao dar seu veredicto sobre as eleições de 2014, o TSE vai nos permitir antever
como serão as próximas eleições.
Depois de ouvir tantos delatores afirmarem que não há eleição sem
caixa 2 e de conhecermos as cifras bilionárias envolvidas nisso, é mesmo
difícil explicar como tanto descalabro foi possível sem que as instâncias
fiscalizadoras agissem para evitar ou reprimir. É um debate que precisará ser
feito, tanto sobre a eficácia da lei, como dos métodos da justiça eleitoral. A
seu tempo.
Mas tudo isso depende de a justiça eleitoral se reafirmar como instância
confiável de regulação das eleições, enfrentando o julgamento de terça-feira em
toda sua extensão e profundidade.
A Lava Jato revelou as práticas ilícitas que abasteceram os cofres
das eleições de 2014. Os responsáveis começam a ser punidos pelos crimes
cometidos pela justiça comum. Mas isso não basta. Esses crimes afetaram
gravemente o próprio processo eleitoral. E é sobre isso que o TSE deve julgar.
Decidir sobre o direito ignorando os fatos permite que, no futuro, os fatos
ignorem mais uma vez o direito. É esse o risco que a democracia brasileira
corre.
Por Silvana Batini, no Jota