A chegada do papa
Francisco ao Canadá no próximo domingo (24), onde se espera que ele peça
desculpas aos povos indígenas por mais de um século de abuso em escolas
administradas pela Igreja, gera esperança, mas também cautela.
A AFP entrevistou três
membros de comunidades indígenas: uma artista, um líder comunitário e um
ex-aluno de um dos internatos onde as crianças sofreram a política de
assimilação que os isolava de suas famílias, língua e cultura.
A seguir, um resumo dessas
conversas:
- "Sentimentos
mistos" -
Cantora, compositora e
ativista da comunidade Salluit Inuk, no extremo-norte, Elisapie Isaac se tornou
uma voz para seu povo.
"Tenho sentimentos
mistos sobre a chegada do papa", diz a cantora de 45 anos, que
recentemente fez um apelo ao primeiro-ministro de Québec, François Legault, nas
redes sociais para que reconheça o "racismo sistêmico" nessa
província canadense.
"Digo a mim mesma que
deve ser bom para os sobreviventes sentir que há ação, saber que algo está por
vir. Mas também digo a mim mesma que os devotos provavelmente foram os piores
para os nativos", afirmou, acrescentando que "é muito fácil" se
desculpar agora, décadas depois do ocorrido.
"Ainda sofremos muito
pelos traumas, que passam de geração para geração", garantiu a artista,
que hoje mora em Montreal e se mostra encantada ao ver que hoje as pessoas
querem aprender e entender a história indígena.
Para Isaac, é o momento de
instituições como a Igreja Católica fazerem sua parte, caso contrário “é muito
difícil avançar como sociedade e conviver, sentir que há equilíbrio e
harmonia”.
- "Um longo
caminho" -
Wilton 'Willie' Littlechild
comemorou seu 78º aniversário em 1º de abril de 2022, no mesmo dia em que ele e
uma delegação indígena se encontraram com Francisco em Roma. Na reunião, o
pontífice se desculpou e prometeu repetir o pedido no Canadá.
"Não poderia ter
recebido um presente de aniversário melhor", diz Littlechild, que passou
14 anos em um dos internatos, desde os 6 anos.
Durante viagens ao Vaticano,
convidaram o papa a ir ao Canadá e pedir desculpas, pessoalmente, à sua
população indígena de mais de 1,6 milhão de pessoas. Deste total, quase um
terço se identifica como católicos romanos.
"Para curar (...)
precisamos de um pedido de desculpa", declarou à AFP.
Ao longo de sua vida, Littlechild
trabalhou incansavelmente pelas comunidades nativas, inclusive nas Nações
Unidas, onde participou da elaboração da Declaração da ONU sobre os Direitos
dos Povos Indígenas.
O homem afirma que
sobreviveu à sua educação no internato por meio dos estudos e esportes.
"O esporte salvou minha
vida, o hóquei salvou minha vida", enfatiza, lembrando de saídas noturnas
para tentar esquecer o abuso.
E, por fim, "eu
perdoei".
- "Definitivamente não
é o fim" -
Billy Morin, líder da Nação
Enoch Cree, uma comunidade indígena perto de Edmonton, de cerca de 2.700
habitantes, diz estar "esperançoso" de que a visita de Francisco
ajude a curar as feridas deixadas pela fracassada política governamental de
assimilação forçada pela educação.
"Nem todos querem que o
papa se desculpe. Eles não se importam", afirmou.
"Mas, para muitos
idosos, é um momento de desfecho (...) um momento de cura, um momento de
celebração, um momento de reflexão".
Aos 35 anos, Morin se
mostrou grato por ter evitado ser enviado para um internato, como fizeram com
seus avós.
Mas, assim como muitos povos
indígenas do Canadá, não escapou desse legado doloroso, que deixou um trauma
intergeracional, muitas vezes manifestado em alcoolismo e distanciamento
emocional, que continua afetando sua família e comunidade.
"Nossos avós e meus
pais tiveram que reaprender a ser bons pais", disse esse pai de quatro
filhos, que somente agora está aprendendo a língua que acredita ser de seus
antepassados.
Morin considera a visita de
Francisco “uma coisa boa (...) porque, se não fizesse isso, este assunto
estaria sempre pendente”.
Este é apenas "um
passo" em uma "jornada de cura", afirmou. "Definitivamente
não é o fim".
AFP, Anne-Sophie THILL,
Geneviève Normand, Marion Thibaut
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