sábado, 23 de julho de 2022

Esperança e preocupação entre povos indígenas antes da visita do papa ao Canadá

 


A chegada do papa Francisco ao Canadá no próximo domingo (24), onde se espera que ele peça desculpas aos povos indígenas por mais de um século de abuso em escolas administradas pela Igreja, gera esperança, mas também cautela.

 

A AFP entrevistou três membros de comunidades indígenas: uma artista, um líder comunitário e um ex-aluno de um dos internatos onde as crianças sofreram a política de assimilação que os isolava de suas famílias, língua e cultura.

A seguir, um resumo dessas conversas:

- "Sentimentos mistos" -

Cantora, compositora e ativista da comunidade Salluit Inuk, no extremo-norte, Elisapie Isaac se tornou uma voz para seu povo.

"Tenho sentimentos mistos sobre a chegada do papa", diz a cantora de 45 anos, que recentemente fez um apelo ao primeiro-ministro de Québec, François Legault, nas redes sociais para que reconheça o "racismo sistêmico" nessa província canadense.

"Digo a mim mesma que deve ser bom para os sobreviventes sentir que há ação, saber que algo está por vir. Mas também digo a mim mesma que os devotos provavelmente foram os piores para os nativos", afirmou, acrescentando que "é muito fácil" se desculpar agora, décadas depois do ocorrido.

"Ainda sofremos muito pelos traumas, que passam de geração para geração", garantiu a artista, que hoje mora em Montreal e se mostra encantada ao ver que hoje as pessoas querem aprender e entender a história indígena.

Para Isaac, é o momento de instituições como a Igreja Católica fazerem sua parte, caso contrário “é muito difícil avançar como sociedade e conviver, sentir que há equilíbrio e harmonia”.

- "Um longo caminho" -

Wilton 'Willie' Littlechild comemorou seu 78º aniversário em 1º de abril de 2022, no mesmo dia em que ele e uma delegação indígena se encontraram com Francisco em Roma. Na reunião, o pontífice se desculpou e prometeu repetir o pedido no Canadá.

"Não poderia ter recebido um presente de aniversário melhor", diz Littlechild, que passou 14 anos em um dos internatos, desde os 6 anos.

Durante viagens ao Vaticano, convidaram o papa a ir ao Canadá e pedir desculpas, pessoalmente, à sua população indígena de mais de 1,6 milhão de pessoas. Deste total, quase um terço se identifica como católicos romanos.

"Para curar (...) precisamos de um pedido de desculpa", declarou à AFP.

Ao longo de sua vida, Littlechild trabalhou incansavelmente pelas comunidades nativas, inclusive nas Nações Unidas, onde participou da elaboração da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

O homem afirma que sobreviveu à sua educação no internato por meio dos estudos e esportes.

"O esporte salvou minha vida, o hóquei salvou minha vida", enfatiza, lembrando de saídas noturnas para tentar esquecer o abuso.

E, por fim, "eu perdoei".

- "Definitivamente não é o fim" -

Billy Morin, líder da Nação Enoch Cree, uma comunidade indígena perto de Edmonton, de cerca de 2.700 habitantes, diz estar "esperançoso" de que a visita de Francisco ajude a curar as feridas deixadas pela fracassada política governamental de assimilação forçada pela educação.

"Nem todos querem que o papa se desculpe. Eles não se importam", afirmou.

"Mas, para muitos idosos, é um momento de desfecho (...) um momento de cura, um momento de celebração, um momento de reflexão".

Aos 35 anos, Morin se mostrou grato por ter evitado ser enviado para um internato, como fizeram com seus avós.

Mas, assim como muitos povos indígenas do Canadá, não escapou desse legado doloroso, que deixou um trauma intergeracional, muitas vezes manifestado em alcoolismo e distanciamento emocional, que continua afetando sua família e comunidade.

"Nossos avós e meus pais tiveram que reaprender a ser bons pais", disse esse pai de quatro filhos, que somente agora está aprendendo a língua que acredita ser de seus antepassados.

Morin considera a visita de Francisco “uma coisa boa (...) porque, se não fizesse isso, este assunto estaria sempre pendente”.

Este é apenas "um passo" em uma "jornada de cura", afirmou. "Definitivamente não é o fim".

AFP, Anne-Sophie THILL, Geneviève Normand, Marion Thibaut


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