A chegada de Joe Biden à Casa Branca promete colocar em ação um esforço inédito no combate ao aquecimento global. Muitas empresas brasileiras estão prontas para explorar as oportunidades.
Já o governo Bolsonaro... A menos de 30 dias da posse do democrata Joe Biden
como presidente dos Estados Unidos, o comitê que cuida dos preparativos da
cerimônia ainda não divulgou todos os detalhes do que deverá acontecer em 20 de
janeiro. Com os números da pandemia piorando a cada dia, os organizadores
precisam reinventar um evento marcado historicamente por juntar a elite
política e econômica próxima ao novo mandatário e uma multidão em frente ao
Capitólio, sede do Congresso em Washington. Não está certo nem se Donald Trump
participará da transmissão do cargo. Até o momento, o atual presidente ainda
não reconheceu a vitória de Biden, e parece pouco provável que compareça — mas,
como se trata de Trump, nada pode ser descartado.
Se ainda sobram dúvidas a respeito do dia da posse,
há algumas certezas sobre o que deverá acontecer depois que Biden estiver no
comando. Uma guinada na política ambiental é dada como certa. Foi repetido à
exaustão, antes e depois da eleição, que uma das principais prioridades da nova
administração será combater o aquecimento global — uma política que deverá
reverberar por todos os cantos, inclusive no Brasil. Para tirar o plano do
papel, Biden prometeu recolocar os Estados Unidos no Acordo de Paris, pacto
ambiental que reúne cerca de 200 países, e, acima de tudo, aplicar US$ 2
trilhões na descarbonização da economia ao longo de seu mandato, mais do que a
soma do que será investido pela União Europeia e pela China nessa área no mesmo
período. Os setores prioritários serão os de energia, transportes, construção,
automobilístico, conservação e agricultura sustentável. Para Cullen Hendrix, pesquisador
do Peterson Institute for International Economics, um centro de estudos em
Washington, os Estados Unidos vão reassumir sua posição de liderança global no
tratamento da mudança climática.
É verdade que Biden vai precisar de apoio do
Congresso americano para tornar a maior parte disso realidade, mas, como
mostrou uma recente pesquisa de opinião do Pew Research Center, não faltará
pressão popular. Mais de 60% dos americanos dizem sentir os efeitos do
aquecimento global e mais da metade dos eleitores republicanos e democratas são
favoráveis a iniciativas para combatê-lo. A equipe ambiental de Biden, chefiada
por John Kerry, ex-secretário de Estado no governo de Barack Obama, acredita
que o capital que deverá ser adicionado pelo setor privado e por governos
locais pode fazer o montante total ultrapassar os US$ 5 trilhões até o final de
2024. O mundo nunca viu investimentos dessa magnitude para proteger o meio
ambiente. E não é somente dinheiro. Em um paper recente, as pesquisadoras Alice
Hill e Madeline Babin, do Council on Foreign Relations, um centro de estudos
americano, argumentam que a presença de Kerry como um assessor do mais alto
escalão envia “sinais poderosos” ao mundo.
De todos os ângulos que se olhe, as metas de Biden
são arrojadas. Uma delas é chegar a 2035 com toda a produção de eletricidade
livre de carbono. Outra gigante será fazer com que todas as emissões de gases
do efeito estufa sejam anuladas, o chamado “zero líquido”, no máximo até a
metade do século. “O governo Biden provavelmente apoiará políticas que
incentivem a inovação da tecnologia de energia, criando uma transição para a
energia limpa não apenas nos Estados Unidos, mas globalmente”, disse Patricia
Koman, pesquisadora de ciências da saúde ambiental e professora da Faculdade de
Engenharia da Universidade do Michigan. Na opinião de Koman, podem se
beneficiar empresas americanas e também as de outros países com soluções,
produtos e serviços ecologicamente corretos.
No Brasil, parte do empresariado se prepara para
essa nova corrida da inovação verde. “O potencial brasileiro é enorme. E não é
que vai tudo começar do zero. As inovações já estão em velocidade acelerada. Um
compromisso maior da maior economia do planeta com a agenda ambiental amplia em
muito nosso potencial”, disse Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial
Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável
(CEBDS). “Os projetos de Biden na área ambiental têm uma abordagem muito
diferente do que vimos em outros países. É um governo mais focado em negócios”,
afirmou Davi Bomtempo, responsável pela área de meio ambiente e
sustentabilidade da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Para Priscila
Claro, professora de responsabilidade social no Insper, uma instituição de
ensino de São Paulo, muitas empresas brasileiras que são parceiras de
companhias americanas ou que exportam vão ganhar com a mudança de governo nos
Estados Unidos, mas há chances de novos negócios também para startups com
modelos alternativos de preservação da floresta ou de exploração de algum produto
de forma sustentável.
A Suzano, a maior produtora de celulose do mundo e
uma das primeiras na fabricação de papel, investe atualmente cerca de R$ 300
milhões por ano em pesquisas. Uma de suas apostas é a substituição do plástico
por produtos vegetais. A meta é, nos próximos dez anos, vender 10 milhões de
toneladas de produtos com origem florestal para substituir o plástico. As
possibilidades vão muito além dos já conhecidos canudos e copos de papel.
“Hoje, 70% das roupas consumidas no mundo têm origem fóssil, pois contêm
poliéster. A tecnologia pode substituir isso por produtos de origem vegetal,
algo que já ocorre com a viscose, mas há muito mais espaço. Também podemos
tentar substituir alguns materiais usados na construção”, afirmou Marcelo Bacci,
diretor financeiro da papeleira, atento à abertura de novas oportunidades no
mercado americano. “Os Estados Unidos vão preparar a infraestrutura do país
para aguentar temperaturas mais altas, o clima mais instável e o aumento do
nível do mar. Isso é importante, porque vai dar saltos tecnológicos grandes,
não só em engenharia, mas também nas cidades”, disse Natalie Unterstell, mestre
em políticas públicas pela Universidade Harvard, diretora do Instituto Talanoa
e colunista de ÉPOCA.
A petroquímica Braskem, uma sociedade entre a
Odebrecht e a Petrobras que
está sendo colocada à venda, conseguiu desenvolver, em parceria com a
dinamarquesa Haldor Topsoe, a garrafa PET vegetal, feita a partir do açúcar.
“Essa é uma daquelas inovações disruptivas. O mercado para esse tipo de
material é imenso”, contou Gustavo Sergi, diretor de Químicos Renováveis da
empresa. Sergi disse que, antes de definir onde será a primeira fábrica do novo
material, o MEG, é preciso avançar um pouco mais nas pesquisas. Esse tipo de
inovação só é possível porque a Braskem decidiu, em 2007, investir maciçamente
em novas tecnologias do chamado “plástico verde”. De lá para cá, desenvolveu, a
partir do etanol, produtos como polietileno verde. A fábrica no Rio Grande do
Sul é a maior do mundo com essa tecnologia. Em 2018, foi a vez do EVA verde,
material usado nos solados de tênis e sapatos. “A posse de Biden vai ampliar as
possibilidades de negócios. O ambiente se tornará muito menos hostil para essas
novas tecnologias”, disse Sergi.
A Marfrig, produtora de proteína animal, anunciou o
plano de investir R$ 500 milhões em dez anos em avanços ambientais. “Estamos
com tecnologias de monitoramento e originação que, no médio prazo, permitirão
ao consumidor final saber toda a história do animal por meio de um simples QR
Code”, contou Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade e Comunicação da
Marfrig. Poder rastrear a carne é sensível para uma empresa que atua num setor
famoso por estar à frente da destruição das florestas. Mesmo as companhias sem
presença em áreas recentemente desmatadas sofrem com a oposição de parte do
movimento ambientalista ao consumo de carne. Disposta a mostrar suas
credenciais verdes, a Marfrig também está desenvolvendo tecnologias para
reduzir a emissão de gases do rebanho. “Estamos exportando algumas dessas
tecnologias para nossas plantas nos Estados Unidos”, afirmou Pianez. “Temos
condições de mostrar ao mundo que é possível a produção de carne com
conservação, graças à tecnologia”, sustentou.
Nesse novo movimento do governo americano, uma das
áreas de maior potencial para as empresas brasileiras é a energética.
Considerado a “Arábia Saudita da biomassa”, o Brasil tem um setor com uma
reputação já consolidada. A companhia MDC, com sede no Rio de Janeiro, começou
atuando apenas com gás natural, mas recentemente, passou a focar em soluções de
energia para baixo carbono, produzindo biometano. “A eleição de Joe Biden vai
impulsionar esses mercados globalmente. Já vemos nossos clientes querendo atuar
com mais força na agenda ambiental”, afirmou Manuela Kayath, presidente da MDC,
que produz 20% de todo o gás do Ceará. Para Kayath, as novas tecnologias
criadas a partir do plano de Biden podem beneficiar o mundo todo. “Vai ser um
ambiente propício a negócios e inovação”, disse.
Referência internacional em estudos sobre mudanças
climáticas, o cientista Carlos Nobre acredita que os investimentos e a disputa
entre americanos e chineses devem fazer o preço de novas tecnologias despencar
e, com preços mais acessíveis, aumentar sua utilização na sociedade. “A energia
solar, por exemplo, é intermitente, pois não há sol à noite. Mas há projetos
pilotos nos quais parte da energia solar gerada durante o dia é usada para
aquecer um líquido e, à noite, o vapor movimenta turbinas elétricas. Você acaba
tendo usinas solares funcionando 24 horas. Mas ainda é preciso investir muito
para reduzir os custos. É a mesma coisa com o hidrogênio, considerado o
combustível gasoso do futuro. É algo ainda caro, mas Biden promete investir para
baratear”, explicou Nobre. Outro setor com potencial de se popularizar é o dos
carros elétricos.
É claro que a vida das empresas brasileiras seria
muito mais fácil se o governo de Jair Bolsonaro não tivesse transformado o país
em um pária na questão ambiental. Apelidado de Nero pela imprensa
internacional, o presidente adotou uma política literalmente incendiária. Entre
agosto do ano passado e julho de 2020, a Amazônia perdeu 11.088 quilômetros
quadrados, a maior área dos últimos 12 anos. Pelas estimativas da ONG
Greenpeace, mais de 600 milhões de árvores desapareceram. “O Brasil se
posicionou como principal vilão internacional na área ambiental. Hoje, quando
se pensa em chefes de governo que atacam o meio ambiente, a primeira pessoa que
vem à cabeça é Bolsonaro. É preciso mudar essa narrativa, mas isso não é feito
com declarações em lives”, disse Leonardo Paz, do Núcleo de Prospecção e
Inteligência Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Um dos desafios dos segmentos mais avançados do
agronegócio brasileiro é se desvincular dos responsáveis pelas queimadas no
Norte e no Centro-Oeste. “A mancha da ilegalidade enevoou o brilho de nossa
sustentabilidade no agronegócio. Podemos ser uma potência ambiental e no
agronegócio”, disse o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, atualmente
coordenador do Centro de Agronegócio na Escola de Economia da Fundação Getulio
Vargas. “Já somos uma das agriculturas mais sustentáveis do mundo, mas estamos
sofrendo com criminosos que estão destruindo o meio ambiente e nossa
reputação.” Rodrigues é um dos que cobram mais ação do governo.
O Brasil é um dos países que menos poluem por
hectare. Um dos maiores produtores de grãos, é apenas o número 44 no ranking
dos grandes usuários de pesticidas. Nos últimos 40 anos, aumentou em cinco
vezes a produção de alimentos e menos de duas vezes a área plantada, tudo com
base em tecnologia. “O Brasil está hoje nas cordas neste debate do agronegócio
sustentável, tomando umas no fígado de vez em quando. O certo era estarmos no centro
do ringue”, afirmou Celso Luiz Moretti, presidente da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Uma das pesquisas da estatal reforça quem diz
que a Amazônia tem potencial para se tornar a versão brasileira do Vale do
Silício, meca da inovação americana. Técnicos fizeram uma expedição por 7 mil
quilômetros de rios da Amazônia coletando micro-organismos. Já nos laboratórios
em Manaus, foi estudado como eles produzem substâncias que podem ser utilizadas
para o controle de doenças em plantas. “Estamos falando de bioeconomia,
recursos naturais para resolver problemas do dia”, afirmou Moretti, um crítico
do desmatamento.
Essa virada na imagem do agronegócio dificilmente
ocorrerá enquanto as florestas estiverem ardendo e os órgãos de proteção ambiental
continuarem sendo enfraquecidos. O Fundo Amazônia, criado em 2008, tem a função
de receber recursos de doadores estrangeiros para apoiar projetos de proteção.
Logo no início de sua gestão no comando do Ministério do Meio Ambiente, Ricardo
Salles alegou supostas irregularidades na
destinação e execução dos recursos e iniciou um processo de mudança no sistema
de governança do
fundo. As mudanças não foram bem-vistas pelos principais doadores do fundo,
Alemanha e Noruega, e, em 2019, os dois países suspenderam seus repasses. “Esse era um mecanismo muito
bem avaliado e que ficou paralisado”, lamentou Adriana Erthal Abdenur, cofundadora
da Plataforma Cipó, um instituto de pesquisa. Some-se a isso o fato de o Brasil
ter entregado metas de redução de CO2 consideradas tímidas ao Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. O governo prevê
neutralizar as emissões de carbono da economia apenas em 2060, quando já há
países e blocos debatendo antecipar essas metas para 2050.
Num debate com Trump no final de setembro, Biden
citou a destruição das florestas no Brasil e avisou que, caso o país não
aceitasse ajuda para frear o desmatamento, haveria “consequências econômicas
significativas”. Mais de um mês depois, Bolsonaro, num evento no Palácio do
Planalto, afirmou que “quando acaba a saliva, tem de ter pólvora”, ao se
referir à fala de Biden. Bolsonaro pode ter dado início a uma das melhores
séries de memes do ano nas redes sociais, mas, acima de tudo, perdeu mais uma
grande chance de ficar calado. “Se o novo governo americano cumprir a promessa
de ter uma política agressiva em relação às mudanças climáticas, os Estados
Unidos poderão se juntar à União Europeia e formar um bloco sólido para cobrar
novas posturas de países como o Brasil. Se isso ocorrer, o Brasil vai ficar mal
com alguns de seus principais parceiros comerciais num momento em que as
relações com a China também não são boas”, disse Guilherme Casarões, professor
de relações internacionais na Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
Na contramão dos
especialistas, o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o
deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), diz não ver motivos para se preocupar
com a mudança na forma como a comunidade internacional vê o Brasil na área
ambiental e a troca de farpas com Biden. Segundo ele, as críticas seriam feitas
por atores com pouca legitimidade. “Não há motivos para nos preocuparmos. Uma
coisa é o que você fala quando está em campanha. Outra coisa é o que acontece
depois que você assume. Precisamos esperar o que o presidente eleito fará”,
afirmou. Uma parcela do meio empresarial está pronta para aproveitar a nova onda
verde. Já o governo Bolsonaro e parte do Congresso preferem continuar usando a
tática do avestruz. Diante dos riscos, nada como a tranquilidade de estar com a
cabeça enterrada num buraco.
Por Henrique Gomes Batista,
Alfredo Mergulhão e Leandro Prazeres, Revista Época
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