domingo, 27 de dezembro de 2020

Soberania ambiental - a nova onda verde

 


A chegada de Joe Biden à Casa Branca promete colocar em ação um esforço inédito no combate ao aquecimento global. Muitas empresas brasileiras estão prontas para explorar as oportunidades. 

Já o governo Bolsonaro... A menos de 30 dias da posse do democrata Joe Biden como presidente dos Estados Unidos, o comitê que cuida dos preparativos da cerimônia ainda não divulgou todos os detalhes do que deverá acontecer em 20 de janeiro. Com os números da pandemia piorando a cada dia, os organizadores precisam reinventar um evento marcado historicamente por juntar a elite política e econômica próxima ao novo mandatário e uma multidão em frente ao Capitólio, sede do Congresso em Washington. Não está certo nem se Donald Trump participará da transmissão do cargo. Até o momento, o atual presidente ainda não reconheceu a vitória de Biden, e parece pouco provável que compareça — mas, como se trata de Trump, nada pode ser descartado.

Se ainda sobram dúvidas a respeito do dia da posse, há algumas certezas sobre o que deverá acontecer depois que Biden estiver no comando. Uma guinada na política ambiental é dada como certa. Foi repetido à exaustão, antes e depois da eleição, que uma das principais prioridades da nova administração será combater o aquecimento global — uma política que deverá reverberar por todos os cantos, inclusive no Brasil. Para tirar o plano do papel, Biden prometeu recolocar os Estados Unidos no Acordo de Paris, pacto ambiental que reúne cerca de 200 países, e, acima de tudo, aplicar US$ 2 trilhões na descarbonização da economia ao longo de seu mandato, mais do que a soma do que será investido pela União Europeia e pela China nessa área no mesmo período. Os setores prioritários serão os de energia, transportes, construção, automobilístico, conservação e agricultura sustentável. Para Cullen Hendrix, pesquisador do Peterson Institute for International Economics, um centro de estudos em Washington, os Estados Unidos vão reassumir sua posição de liderança global no tratamento da mudança climática.

É verdade que Biden vai precisar de apoio do Congresso americano para tornar a maior parte disso realidade, mas, como mostrou uma recente pesquisa de opinião do Pew Research Center, não faltará pressão popular. Mais de 60% dos americanos dizem sentir os efeitos do aquecimento global e mais da metade dos eleitores republicanos e democratas são favoráveis a iniciativas para combatê-lo. A equipe ambiental de Biden, chefiada por John Kerry, ex-secretário de Estado no governo de Barack Obama, acredita que o capital que deverá ser adicionado pelo setor privado e por governos locais pode fazer o montante total ultrapassar os US$ 5 trilhões até o final de 2024. O mundo nunca viu investimentos dessa magnitude para proteger o meio ambiente. E não é somente dinheiro. Em um paper recente, as pesquisadoras Alice Hill e Madeline Babin, do Council on Foreign Relations, um centro de estudos americano, argumentam que a presença de Kerry como um assessor do mais alto escalão envia “sinais poderosos” ao mundo.

De todos os ângulos que se olhe, as metas de Biden são arrojadas. Uma delas é chegar a 2035 com toda a produção de eletricidade livre de carbono. Outra gigante será fazer com que todas as emissões de gases do efeito estufa sejam anuladas, o chamado “zero líquido”, no máximo até a metade do século. “O governo Biden provavelmente apoiará políticas que incentivem a inovação da tecnologia de energia, criando uma transição para a energia limpa não apenas nos Estados Unidos, mas globalmente”, disse Patricia Koman, pesquisadora de ciências da saúde ambiental e professora da Faculdade de Engenharia da Universidade do Michigan. Na opinião de Koman, podem se beneficiar empresas americanas e também as de outros países com soluções, produtos e serviços ecologicamente corretos.

No Brasil, parte do empresariado se prepara para essa nova corrida da inovação verde. “O potencial brasileiro é enorme. E não é que vai tudo começar do zero. As inovações já estão em velocidade acelerada. Um compromisso maior da maior economia do planeta com a agenda ambiental amplia em muito nosso potencial”, disse Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS). “Os projetos de Biden na área ambiental têm uma abordagem muito diferente do que vimos em outros países. É um governo mais focado em negócios”, afirmou Davi Bomtempo, responsável pela área de meio ambiente e sustentabilidade da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Para Priscila Claro, professora de responsabilidade social no Insper, uma instituição de ensino de São Paulo, muitas empresas brasileiras que são parceiras de companhias americanas ou que exportam vão ganhar com a mudança de governo nos Estados Unidos, mas há chances de novos negócios também para startups com modelos alternativos de preservação da floresta ou de exploração de algum produto de forma sustentável.

A Suzano, a maior produtora de celulose do mundo e uma das primeiras na fabricação de papel, investe atualmente cerca de R$ 300 milhões por ano em pesquisas. Uma de suas apostas é a substituição do plástico por produtos vegetais. A meta é, nos próximos dez anos, vender 10 milhões de toneladas de produtos com origem florestal para substituir o plástico. As possibilidades vão muito além dos já conhecidos canudos e copos de papel. “Hoje, 70% das roupas consumidas no mundo têm origem fóssil, pois contêm poliéster. A tecnologia pode substituir isso por produtos de origem vegetal, algo que já ocorre com a viscose, mas há muito mais espaço. Também podemos tentar substituir alguns materiais usados na construção”, afirmou Marcelo Bacci, diretor financeiro da papeleira, atento à abertura de novas oportunidades no mercado americano. “Os Estados Unidos vão preparar a infraestrutura do país para aguentar temperaturas mais altas, o clima mais instável e o aumento do nível do mar. Isso é importante, porque vai dar saltos tecnológicos grandes, não só em engenharia, mas também nas cidades”, disse Natalie Unterstell, mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard, diretora do Instituto Talanoa e colunista de ÉPOCA.

A petroquímica Braskem, uma sociedade entre a Odebrecht e a Petrobras que está sendo colocada à venda, conseguiu desenvolver, em parceria com a dinamarquesa Haldor Topsoe, a garrafa PET vegetal, feita a partir do açúcar. “Essa é uma daquelas inovações disruptivas. O mercado para esse tipo de material é imenso”, contou Gustavo Sergi, diretor de Químicos Renováveis da empresa. Sergi disse que, antes de definir onde será a primeira fábrica do novo material, o MEG, é preciso avançar um pouco mais nas pesquisas. Esse tipo de inovação só é possível porque a Braskem decidiu, em 2007, investir maciçamente em novas tecnologias do chamado “plástico verde”. De lá para cá, desenvolveu, a partir do etanol, produtos como polietileno verde. A fábrica no Rio Grande do Sul é a maior do mundo com essa tecnologia. Em 2018, foi a vez do EVA verde, material usado nos solados de tênis e sapatos. “A posse de Biden vai ampliar as possibilidades de negócios. O ambiente se tornará muito menos hostil para essas novas tecnologias”, disse Sergi.

A Marfrig, produtora de proteína animal, anunciou o plano de investir R$ 500 milhões em dez anos em avanços ambientais. “Estamos com tecnologias de monitoramento e originação que, no médio prazo, permitirão ao consumidor final saber toda a história do animal por meio de um simples QR Code”, contou Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade e Comunicação da Marfrig. Poder rastrear a carne é sensível para uma empresa que atua num setor famoso por estar à frente da destruição das florestas. Mesmo as companhias sem presença em áreas recentemente desmatadas sofrem com a oposição de parte do movimento ambientalista ao consumo de carne. Disposta a mostrar suas credenciais verdes, a Marfrig também está desenvolvendo tecnologias para reduzir a emissão de gases do rebanho. “Estamos exportando algumas dessas tecnologias para nossas plantas nos Estados Unidos”, afirmou Pianez. “Temos condições de mostrar ao mundo que é possível a produção de carne com conservação, graças à tecnologia”, sustentou.

Nesse novo movimento do governo americano, uma das áreas de maior potencial para as empresas brasileiras é a energética. Considerado a “Arábia Saudita da biomassa”, o Brasil tem um setor com uma reputação já consolidada. A companhia MDC, com sede no Rio de Janeiro, começou atuando apenas com gás natural, mas recentemente, passou a focar em soluções de energia para baixo carbono, produzindo biometano. “A eleição de Joe Biden vai impulsionar esses mercados globalmente. Já vemos nossos clientes querendo atuar com mais força na agenda ambiental”, afirmou Manuela Kayath, presidente da MDC, que produz 20% de todo o gás do Ceará. Para Kayath, as novas tecnologias criadas a partir do plano de Biden podem beneficiar o mundo todo. “Vai ser um ambiente propício a negócios e inovação”, disse.

Referência internacional em estudos sobre mudanças climáticas, o cientista Carlos Nobre acredita que os investimentos e a disputa entre americanos e chineses devem fazer o preço de novas tecnologias despencar e, com preços mais acessíveis, aumentar sua utilização na sociedade. “A energia solar, por exemplo, é intermitente, pois não há sol à noite. Mas há projetos pilotos nos quais parte da energia solar gerada durante o dia é usada para aquecer um líquido e, à noite, o vapor movimenta turbinas elétricas. Você acaba tendo usinas solares funcionando 24 horas. Mas ainda é preciso investir muito para reduzir os custos. É a mesma coisa com o hidrogênio, considerado o combustível gasoso do futuro. É algo ainda caro, mas Biden promete investir para baratear”, explicou Nobre. Outro setor com potencial de se popularizar é o dos carros elétricos.

É claro que a vida das empresas brasileiras seria muito mais fácil se o governo de Jair Bolsonaro não tivesse transformado o país em um pária na questão ambiental. Apelidado de Nero pela imprensa internacional, o presidente adotou uma política literalmente incendiária. Entre agosto do ano passado e julho de 2020, a Amazônia perdeu 11.088 quilômetros quadrados, a maior área dos últimos 12 anos. Pelas estimativas da ONG Greenpeace, mais de 600 milhões de árvores desapareceram. “O Brasil se posicionou como principal vilão internacional na área ambiental. Hoje, quando se pensa em chefes de governo que atacam o meio ambiente, a primeira pessoa que vem à cabeça é Bolsonaro. É preciso mudar essa narrativa, mas isso não é feito com declarações em lives”, disse Leonardo Paz, do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Um dos desafios dos segmentos mais avançados do agronegócio brasileiro é se desvincular dos responsáveis pelas queimadas no Norte e no Centro-Oeste. “A mancha da ilegalidade enevoou o brilho de nossa sustentabilidade no agronegócio. Podemos ser uma potência ambiental e no agronegócio”, disse o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, atualmente coordenador do Centro de Agronegócio na Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas. “Já somos uma das agriculturas mais sustentáveis do mundo, mas estamos sofrendo com criminosos que estão destruindo o meio ambiente e nossa reputação.” Rodrigues é um dos que cobram mais ação do governo.

O Brasil é um dos países que menos poluem por hectare. Um dos maiores produtores de grãos, é apenas o número 44 no ranking dos grandes usuários de pesticidas. Nos últimos 40 anos, aumentou em cinco vezes a produção de alimentos e menos de duas vezes a área plantada, tudo com base em tecnologia. “O Brasil está hoje nas cordas neste debate do agronegócio sustentável, tomando umas no fígado de vez em quando. O certo era estarmos no centro do ringue”, afirmou Celso Luiz Moretti, presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Uma das pesquisas da estatal reforça quem diz que a Amazônia tem potencial para se tornar a versão brasileira do Vale do Silício, meca da inovação americana. Técnicos fizeram uma expedição por 7 mil quilômetros de rios da Amazônia coletando micro-organismos. Já nos laboratórios em Manaus, foi estudado como eles produzem substâncias que podem ser utilizadas para o controle de doenças em plantas. “Estamos falando de bioeconomia, recursos naturais para resolver problemas do dia”, afirmou Moretti, um crítico do desmatamento.

Essa virada na imagem do agronegócio dificilmente ocorrerá enquanto as florestas estiverem ardendo e os órgãos de proteção ambiental continuarem sendo enfraquecidos. O Fundo Amazônia, criado em 2008, tem a função de receber recursos de doadores estrangeiros para apoiar projetos de proteção. Logo no início de sua gestão no comando do Ministério do Meio Ambiente, Ricardo Salles alegou supostas irregularidades na destinação e execução dos recursos e iniciou um processo de mudança no sistema de governança do fundo. As mudanças não foram bem-vistas pelos principais doadores do fundo, Alemanha e Noruega, e, em 2019, os dois países suspenderam seus repasses. “Esse era um mecanismo muito bem avaliado e que ficou paralisado”, lamentou Adriana Erthal Abdenur, cofundadora da Plataforma Cipó, um instituto de pesquisa. Some-se a isso o fato de o Brasil ter entregado metas de redução de CO2 consideradas tímidas ao Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. O governo prevê neutralizar as emissões de carbono da economia apenas em 2060, quando já há países e blocos debatendo antecipar essas metas para 2050.

Num debate com Trump no final de setembro, Biden citou a destruição das florestas no Brasil e avisou que, caso o país não aceitasse ajuda para frear o desmatamento, haveria “consequências econômicas significativas”. Mais de um mês depois, Bolsonaro, num evento no Palácio do Planalto, afirmou que “quando acaba a saliva, tem de ter pólvora”, ao se referir à fala de Biden. Bolsonaro pode ter dado início a uma das melhores séries de memes do ano nas redes sociais, mas, acima de tudo, perdeu mais uma grande chance de ficar calado. “Se o novo governo americano cumprir a promessa de ter uma política agressiva em relação às mudanças climáticas, os Estados Unidos poderão se juntar à União Europeia e formar um bloco sólido para cobrar novas posturas de países como o Brasil. Se isso ocorrer, o Brasil vai ficar mal com alguns de seus principais parceiros comerciais num momento em que as relações com a China também não são boas”, disse Guilherme Casarões, professor de relações internacionais na Fundação Getulio Vargas de São Paulo.

Na contramão dos especialistas, o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), diz não ver motivos para se preocupar com a mudança na forma como a comunidade internacional vê o Brasil na área ambiental e a troca de farpas com Biden. Segundo ele, as críticas seriam feitas por atores com pouca legitimidade. “Não há motivos para nos preocuparmos. Uma coisa é o que você fala quando está em campanha. Outra coisa é o que acontece depois que você assume. Precisamos esperar o que o presidente eleito fará”, afirmou. Uma parcela do meio empresarial está pronta para aproveitar a nova onda verde. Já o governo Bolsonaro e parte do Congresso preferem continuar usando a tática do avestruz. Diante dos riscos, nada como a tranquilidade de estar com a cabeça enterrada num buraco.

Por Henrique Gomes Batista, Alfredo Mergulhão e Leandro Prazeres, Revista Época


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