Em Portugal, crescem casos de xenofobia contra
“zucas” (brasileiros), fenômeno impulsionado pela crise econômica provocada
pela pandemia
Escolas e universidades públicas de boa qualidade, taxas de criminalidade
baixas, clima ameno, praias belíssimas, gastronomia mundialmente reconhecida,
mesmo idioma, proximidade das grandes capitais europeias... A lista dos
atrativos de Portugal parece não ter fim para um número crescente de
brasileiros. De milionários que chegam ao país como investidores aos que entram
com visto de turista com a intenção de ficar e trabalhar, os “zucas”, como os
portugueses chamam quem nasceu no Brasil, não param de chegar. Já são 151 mil.
Em 2016, eram quase a metade disso.
Como nada é perfeito, muitos brasileiros têm histórias de discriminação para
contar, um problema antigo, mas que ganhou força com o coronavírus. Um perfil
no Instagram batizado de Confissões da Feup, a sigla para Faculdade de
Engenharia da Universidade do Porto, foi denunciado em outubro. O perfil era
pródigo em frases xenófobas e racistas. “Antes, as brasileiras da Feup eram um
regalo para os olhos. Agora, são uma cambada de feministas que querem pênis
português e não admitem.” Já o perfil Apanhei Covid na Feup publicou uma imagem
do coronavírus, a bandeira do Brasil e brasileiros representados como macacos
no campus da faculdade. Contatada por ÉPOCA, a assessoria de imprensa da
Universidade do Porto (UP) informou que “iniciou um processo disciplinar
interno e irá remeter suas conclusões ao Ministério Público (MP)”.
Segundo dados do MP, de janeiro a outubro, foram abertos 102 inquéritos dessa
natureza. Ainda no final de outubro, os muros de instituições de ensino
superior e secundário de Lisboa foram pichados com frases como “Zucas, voltem
para as favelas”, depois apagadas pelos próprios alunos. “O aumento da
xenofobia e do discurso de ódio foi potencializado pela crise econômica trazida
pela pandemia, mas estava presente na sociedade portuguesa”, disse Cynthia de
Paula, psicóloga e presidente em Lisboa da Casa do Brasil, organização voltada
à comunidade brasileira.
De 2017, ano em que a emigração brasileira voltou a crescer em Portugal, a
2019, as queixas de xenofobia feitas por brasileiros à Comissão para a
Igualdade e Contra a Discriminação Racial aumentaram 311%. Neste ano, o número
parcial de todas as nacionalidades indica, até agosto, um aumento de 38% em
relação a 2019. Uma brasileira que faz parte do Núcleo de Estudantes
Internacionais da Universidade do Porto e pediu para não ser identificada
afirmou que casos de xenofobia não são raros. Mas, segundo ela, os piores
momentos são fora das salas de aula. Um que ela não esquece aconteceu quando
era recém-chegada e foi pedir informações na rua. “O homem começou a insinuar
que queria ter relações sexuais comigo. Eu, claro, disse que não. E ele
rebateu: ‘Por que não? Você é brasileira, você é puta’.”
O aumento do número de casos de intolerância em diferentes cidades de Portugal
comprova a tese de antropólogos e cientistas políticos: a pandemia trouxe crise
econômica e, consequentemente, um salto na discriminação. “Os empregos dos
nacionais estão em perigo e os faz temer a imigração. Claro que há outras
questões envolvidas, como a ameaça ao modo de vida e aos costumes”, explicou o
cientista político André Freire, coordenador do Centro de Investigação e
Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (IUL). Para o
antropólogo brasileiro Otávio Raposo, do Centro de Investigação e Estudos de
Sociologia do IUL, o número recorde de brasileiros residentes oficialmente em
Portugal acirrou a concorrência por vagas no mercado de trabalho. “A discriminação da
sociedade portuguesa visava negros, ciganos e imigrantes em geral. E agora está
voltada para os brasileiros, que são mais numerosos e muito mais concorrentes
aos empregos que os ciganos. Viraram um ingrediente de ameaça”, disse Raposo.
Preconceito, discriminação e xenofobia costumam atingir a comunidade brasileira
como um todo, mas um relato reforça a ideia de que, quando o brasileiro é gay e
preto ou pardo, a intolerância pode rapidamente descambar para a violência. O
brasileiro Wesley Elias dos Santos contou que foi estuprado no banheiro de um
restaurante em Lisboa na madrugada de 9 de fevereiro. “Saí de um bar gay e fui
para um restaurante. Tinha bebido cerveja e desci para o banheiro. Três homens
vieram atrás. Aparentavam ser portugueses jovens e um deles me deu um murro.
Roubaram minha carteira e me bateram. Depois veio a violência sexual. Escutava
eles falando ‘paneleiro’ (bicha). Eu estava bêbado e medicado. Quando acordei,
estava no hospital”, afirmou Santos, ex-atendente de telemarketing em Lisboa.
Agentes da Polícia de Segurança
Pública (PSP) fizeram a ocorrência no local do crime e conduziram
Santos ao hospital, onde uma médica atestou: “Aconteceu por volta das 3 horas,
com penetração anal e ejaculação”. Dias depois, ao solicitar em uma delegacia
da PSP uma declaração do roubo de seu título de residência, Santos disse ter
sido vítima de discriminação. “Escutei de um senhor fardado: ‘Portugal dos portugueses
ainda não está acostumado com isso’.” Santos não pediu para o policial explicar
porque entendeu que “isso” queria dizer brasileiro e gay.
Santos foi chamado à sede
da Polícia Judiciária (PJ), que coordena a investigação, para assistir às imagens
do circuito interno de câmeras do restaurante. “Fui questionado na PJ se isso
não aconteceu porque eu queria, porque estava tentando seduzi-los. Duvidaram de
mim. Se quisesse sedução, teria ficado no bar gay”, disse. Em nota, a PSP negou
qualquer tipo de discriminação e informou que “a vítima apresentava um discurso
pouco coerente, mostrando-se algo confusa com toda a situação”. Questionada por
ÉPOCA, a PJ não respondeu. Desde o início da pandemia, houve mais de 2.400
atendimentos a portugueses e estrangeiros nas instituições de apoio aos crimes
contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros
(LGBTI) que integram a Rede Nacional de Apoio a Vítimas. Foi uma dessas que
ofereceu apoio psicológico a Santos. Com medo, ele se mudou para a Dinamarca.
Por Gian Amato, na Revista
Época
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