Desde que soubemos os
resultados dos ensaios clínicos em fase III da Pfizer/BioNTech e da Moderna,
tenho refletido sobre como as estratégias de imunização em diferentes países
podem interagir com as desigualdades existentes, multiplicando-as. São muitos
os canais, mas esboçarei aqui os que mais me preocupam.
O primeiro deles é óbvio:
as vacinas de última geração, as que utilizam o RNA mensageiro para induzir uma
resposta imune, são vacinas relativamente caras, o que significa que países
mais pobres dificilmente terão acesso a elas — isso sem considerar os desafios
de armazenamento e distribuição associados a essas vacinas. Portanto, é
bastante provável, quase certo na verdade, que a população dos países mais
ricos tenha mais proteção para a Covid-19 do que a população dos países mais
pobres.
Raciocínio semelhante se
aplica ao Brasil. O país fez acordo para a produção e distribuição de duas
vacinas: a da AstraZeneca/Oxford, em associação com a Fiocruz, e a CoronaVac,
parceria da Sinovac com o Butantan. Essas vacinas, entretanto, ainda não têm
resultados claros sobre sua eficácia, isto é, sobre o grau de proteção que
conferem. A CoronaVac não publicou tais resultados provenientes do ensaio
clínico, enquanto a AstraZeneca teve problemas significativos de transparência
nos dados e de dosagem durante os ensaios conduzidos no Reino Unido. Os dados
de eficácia que juntaram as informações obtidas dos ensaios no Brasil com as do
Reino Unido não foram conclusivos a ponto de dar uma boa margem de confiança
sobre o grau de proteção. Diante desses problemas e da constatação de que as
campanhas de imunização com as vacinas de última geração estão começando em
vários países, o governo brasileiro anunciou a compra de 70 milhões de doses da
vacina da Pfizer, que requer cadeias de ultrarrefrigeração para armazenamento.
Contudo, apenas 8,5 milhões de doses estarão disponíveis no primeiro semestre,
pois o planejamento do Ministério da Saúde
foi falho. Como a vacina é dada em duas doses, apenas 4,3 milhões de pessoas
receberão a vacina cuja eficácia já é conhecida no primeiro semestre de 2021.
Haverá, portanto, racionamento. E não é difícil imaginar que aqueles que
receberão as vacinas de ponta serão os mais ricos, não os mais pobres
desproporcionalmente afetados pela doença.
Há mais. No dia 1º de
dezembro, o governo brasileiro anunciou um “plano” para a campanha de vacinação
prevendo tão somente o uso da vacina da AstraZeneca. Como sabemos, a
politização da CoronaVac, ou da “vacina chinesa”, chegou às raias do absurdo.
Bolsonaro chegou a dizer que não compraria a CoronaVac, deixando o país
praticamente à deriva com apenas uma opção de vacina.
Em nota recente, o
Observatório Covid-19, rede da qual faço parte, avaliou o plano do governo
brasileiro como um “esboço rudimentar” repleto de falhas e lacunas. Diz a nota:
“São marcantes a falta de ambição, de senso de urgência e de comprometimento em
oferecer à população brasileira um plano de vacinação competente, factível, que
contemple as diversas vacinas em teste no Brasil, com transparência e em
articulação com estados e municípios”.
Diante desse quadro, é
razoável imaginar que, em algum momento, clínicas e redes privadas façam
acordos com os laboratórios responsáveis pelas vacinas de última geração,
disponibilizando-as para a população que pode pagar por elas. O restante da
população brasileira, os vulneráveis, os trabalhadores essenciais, as
cuidadoras, as pessoas que precisam sair para trabalhar, ficarão a ver navios.
Essa é a mesma população que hoje não poderá contar com o auxílio emergencial a
partir de 1º de janeiro de 2021 e é também a população que depende do SUS. O
SUS, por sua vez, ficará sem os recursos de que necessita, porque no dia 1º de
janeiro voltará a valer a camisa de força do teto de gastos, já que o Decreto
de Calamidade que o suspende também haverá de expirar.
Essas são as pessoas que
assistirão não apenas ao resto do mundo recebendo as vacinas, como também a
seus conterrâneos abastados sendo inoculados. Nesse cenário, não é difícil
imaginar um quadro de convulsão social, aquele que talvez tenhamos conseguido
evitar em 2020 a despeito do governo: afinal, não foi Bolsoguedes quem apoiou e
fez acontecer o auxílio emergencial.
Vejo poucas pessoas
preocupadas com a possibilidade de que a falta de estratégia em relação às
vacinas possa ser um multiplicador de desigualdades. É hora de pensar nisso com
a devida urgência.
Por Monica de Bolle, na Revista Época
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