Com
poucos dias de intervalo, a desembargadora Marília de Castro Neves, do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro, recebeu uma ameaça à sua carreira e um prêmio.
A
ameaça, no dia 24 de novembro, foi a decisão do Conselho Nacional de Justiça de
abrir processo disciplinar contra ela. O prêmio, no dia 30, foi sua eleição
para o Órgão Especial do tribunal a que serve. A desembargadora, para quem não
está ligando o nome à pessoa, é aquela que lançou contra Marielle Franco a
mentira de que manteria ligações com o narcotráfico e fora eleita vereadora com
o voto de organizações criminosas. Por isso, e por ter pregado o fuzilamento do
ex-deputado Jean Wyllys, será investigada no CNJ. Seus pares no tribunal não
viram aí motivo suficiente para lhe barrar o ingresso no mais prestigioso órgão
da instituição.
Dizia-se
antigamente que de barriga de mulher, urna e cabeça de juiz nunca se sabe o que
há dentro. O ultrassom devassou os segredos da barriga da mulher e as pesquisas
de opinião já antecipam com razoável precisão o que contém as urnas. A cabeça
de juiz, seus próprios donos se têm encarregado de expô-la. A desembargadora
Marília era assídua nas redes sociais. Por meio delas, além de assacar contra a
memória de Marielle e a vida de Wyllys, revelou seu voto na campanha de 2018.
“Go, Bolsonaro, go. Let’s make Brazil great again”, postou, na linha Trump.
Como um dos 25 integrantes do Órgão Especial, ao qual cabe julgar as
autoridades com prerrogativa de foro, podem lhe cair no colo as rachadinhas de
Flávio Bolsonaro.
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Uma dupla
ameaça paira sobre a democracia brasileira: fala-se muito de general e fala-se
muito de juiz. Do general Leônidas Pires Gonçalves, o último do ciclo militar,
ao general Eduardo Villas Bôas, patrono oculto da candidatura Bolsonaro, correu
um período em que só os iniciados sabiam o nome do comandante do Exército. No
regime bolsonariano, somos induzidos a conhecer os generais como na ditadura.
Os juízes, em época alguma, se expuseram como hoje. O desembargador Bernardo
Moreira Garcez, colega da desembargadora Marília Neves no Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro, distinguiu-se dias atrás por uma escapada até Brasília, em
atendimento a convocação do presidente da República. A desculpa esfarrapada de
que o presidente queria convidá-lo para participar de um certo “Comitê de
Modernização do Ambiente de Negócios” não colou. Sobra a gritante realidade de
que também ele pode se ver às voltas com o processo das rachadinhas.
Não faltam os
despautérios de juízes. O desembargador paulista Eduardo Siqueira foi filmado a
rasgar a multa e ofender o guarda que o autuou em Santos por não usar máscara.
O juiz Marcelo Bretas, da Lava-Jato carioca, coadjuvou Bolsonaro em dancinhas
numa cerimônia evangélica. O ex-juiz Wilson Witzel foi eleito governador do Rio
de Janeiro em parte pelos atributos de seriedade e probidade identificados com
a profissão, e sabe-se no que deu. E há o caso, emblemático entre todos, do
ex-juiz Sergio Moro. De herói fundador da saga lavajatista, ele começou a cair
no dia aziago em que aceitou participar do governo que, com suas sentenças,
ajudara a eleger.
Moro anuncia
agora que integrará a diretoria da consultoria Alvarez & Marsal, um gigante
internacional encarregado, entre outros, dos processos de recuperação judicial
das empreiteiras Odebrecht, Queiroz Galvão e OAS. A primeira conclusão é que
arranjou excelente emprego,
capaz até de levá-lo a morar ou passar longas temporadas em Nova York, onde
fica a sede da empresa. A segunda, que ficam congelados, talvez até para além
de 2022, os planos de se arriscar na roleta eleitoral. A terceira, para
perturbar-lhe a alegria, é a suspeita de que seu recrutamento pela consultoria
obedeça à estratégia de salvar as empreiteiras – as mesmas das quais foi o
algoz. Moro deu um passo sem volta ao deixar a magistratura, fez aposta
arriscada ao abraçar o bolsonarismo e tentou a redenção ao romper com ele. Por
trás do temperamento contido e da fisionomia triste, viveu uma montanha-russa
de emoções.
Ao
aposentar-se do STF, o ministro Cezar Peluso queixou-se de que estavam sendo
deixadas de lado “as virtudes tradicionais do magistrado”, e explicou que
virtudes seriam essas: “certa reserva no comportamento, circunspecção,
gravidade, prudência”. Envenenam a profissão, hoje, a comichão da exibição
pública e o vírus da militância política.
Por Roberto Pompeu de Toledo, na Revista Veja
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