O 17 de abril se tornou o Dia Internacional de Luta Camponesa
Há exatos 25 anos, em 17 de abril de 1996, uma
quarta-feira, centenas de trabalhadores rurais acampavam com suas famílias no
local conhecido como curva do S, na atual BR-155, município de Eldorado dos
Carajás, região sudeste do Pará, quando foram cercados por policiais militares
vindos do quartel de Parauapebas, de um lado, e do batalhão de Marabá, pelo
outro.
O plano dos trabalhadores era marchar até Belém para reivindicar a desapropriação da Fazenda Macaxeira, no município vizinho de Curianópolis, apontada como improdutiva pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Naquele dia específico, com poucos alimentos para seguir viagem, eles decidiram bloquear a estrada em protesto. Por determinação do governo estadual, a Polícia Militar foi então enviada para liberar a via.
“Ficamos no
fogo cruzado, bala de um lado, bala de outro, muito mato pra gente poder
correr”, conta Maria Zelzuita, de 56 anos, sobrevivente do massacre de Eldorado
dos Carajás. Ela disse à Agência Brasil que, ao virar para trás, antes de
fugir, viu uma companheira de marcha com o maxilar sangrando: ao gritar
"reforma agrária", a mulher teria sido atingida por tiros.
A ação policial resultou em 19 mortos, alguns com
característica de execução, segundo laudos oficiais posteriores. Outras 79
pessoas ficaram feridas, duas das quais acabariam morrendo no hospital.
Registradas pelo cinegrafista Raimundo Osvaldo Araújo, da TV Liberal, imagens
do massacre mostraram os trabalhadores rurais reagindo com foices e facões
enquanto eram alvejados. Ao fundo, podia-se ouvir o apelo da repórter Marisa
Romão, que aos gritos de “tem mulheres e crianças” tentou pedir aos policiais
que parassem de atirar.
A comoção dentro e fora do país foi tamanha que o 17
de abril se tornou o Dia Internacional de Luta Camponesa. Todos os anos, desde
o massacre, a Via Campesina, união camponesa internacional composta por 182
movimentos sociais, promove na data uma mobilização global. Neste ano, no
contexto da pandemia de covid-19, o tema escolhido foi a defesa da soberania
alimentar, com eventos previstos em dezenas de países.
Pandemia
“O massacre do Eldorado dos Carajás foi o primeiro
grande momento de popularização da questão agrária”, frisa João Paulo
Rodrigues, integrante da direção nacional do MST. No Brasil, o 17 de abril
impulsionou mobilizações que historicamente já eram realizadas no mês pelo movimento.
Nos últimos 25 anos, a data foi marcada por marchas, bloqueios e ocupações de
terras consideradas improdutivas.
É no aniversário do massacre que o movimento “dialoga
com a sociedade as bandeiras da reforma agrária popular, as bandeiras da
produção, as bandeiras de uma sociedade mais justa e igualitária”, disse Marina
dos Santos, também da direção nacional do MST. Desde o ano passado, contudo, no
contexto da pandemia de covid-19, a orientação é evitar aglomerações e “focar
nas ações de solidariedade”, afirmou ela.
Para este sábado, estão programados atos de doação de
alimentos em todos os estados. Desde o início da pandemia, o movimento afirma
ter doado mais de 4 mil toneladas de comida para combater a insegurança
alimentar, sobretudo em periferias de regiões metropolitanas.
Outra parte da programação do 17 de abril migrou para
a internet. O ato solene que costumava ocorrer todos os anos na curva do S,
onde o “monumento das castanheiras queimadas” marca o ponto exato do massacre,
neste ano voltará a ser realizado somente de modo virtual, com uma transmissão
ao vivo pelas redes sociais.
“Neste ano de pandemia estamos em casa, mas o povo não
tá calado, o movimento não tá calado”, assegurou a sobrevivente Maria Zelzuíta,
que até hoje mora no assentamento 17 de abril, a pouco mais de 18 km da curva
do S. Assim como faz há 25 anos, ela afirmou que irá ao local, mesmo que
sozinha, para prestar homenagem às vítimas do massacre que, assim como ela,
“tinham o sonho de uma terra, tinham um sonho de trabalhar”.
Situação atual
Passados 25 anos do massacre de Eldorado dos Carajás,
o advogado José Batista Afonso, que atua em nome da Comissão Pastoral da Terra
(CPT) no sudeste do Pará, frisa que a violência na disputa pela terra segue
bastante presente na região. “Aqui não passa um ano sem ter assassinato de
camponeses”, afirmou ele à Agência Brasil.
“Continua tendo uma concentração muito grande de
conflitos sem solução. Nós temos mais de 200 fazendas em situação de conflito
pelo domínio da área. Tem fazendeiros, grileiros, madeireiros e, no meio, mais
ou menos 16 mil famílias de trabalhadores rurais”, disse o advogado.
Uma das razões para a continuidade das mortes é a
impunidade, avalia a CPT. Segundo levantamento da entidade, que é ligada à
Igreja Católica e também a outras denominações religiosas, de 1.468
assassinatos no campo, somente 117 foram analisados por algum juiz, de qualquer
instância, entre os anos de 1985 e 2018.
Nesse quesito, mesmo tendo resultado em duas
condenações, Eldorado dos Carajás ainda costuma ser citada como exemplo de
impunidade. Para os movimentos sociais, a investigação do caso falhou por não
ter individualizado as condutas dos policiais envolvidos e ter poupado a cúpula
do governo do Pará. “Quantos realmente apertaram o gatilho e foram responsáveis
pelas mortes? Além dos executores, quem é que determinou [a operação]?”,
indagou José Batista Afonso. “Essa investigação não chegou nesse nível nunca”,
afirmou ele.
O julgamento do caso levou quase duas décadas até que
se esgotassem todos os recursos possíveis. Dos 155 policiais que tiveram
participação no episódio, somente dois foram condenados: o major José Maria de
Oliveira, comandante da operação, com pena de 158 anos e 4 meses de prisão; e o
coronel Mário Colares Pantoja, comandante do batalhão de Marabá, com pena de
228 anos de prisão. Ambos foram presos em 2012, 16 anos após o massacre.
Pantoja, que após ser beneficiado por um habeas corpus
cumpria prisão domiciliar, morreu em novembro do ano passado, vítima de
covid-19.
Da
Agência Brasil
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