"Pandemia escancarou desigualdade tecnológica entre alunos das redes pública e privada" |
Além de problemas para acessar a internet, estudantes enfrentam falta de apoio familiar e dificuldade de estudar sozinhos. A sensação que fica é de um ano letivo perdido, escreve o fundador do projeto social Salvaguarda.
"Meu último ano de ensino médio foi completamente
perdido."
Esta foi a resposta de uma aluna quando perguntei o
que ela sentia sobre o fato de as aulas terem deixado de ser presenciais em
2020. Lembrando agora, ouvi de milhares outros a mesma constatação.
A mudança do modelo de ensino presencial para o online
devido à pandemia de covid-19 escancarou a desigualdade tecnológica entre
alunos das redes pública e privada. A falta de recursos necessários para manter
os estudos no novo modelo tornou-se a preocupação principal, e muitas vezes a
única, de muitos que estudam em escolas públicas. No entanto, sei que,
infelizmente, este é apenas um entre muitos desafios. Num cenário hipotético em
que todos tivessem acesso à internet e a um celular ou computador, ainda
haveria obstáculos para manterem os estudos? A resposta é sim.
"Nunca aprendi a estudar sozinha, e isso só
piorou com a pandemia e a junção com a convivência familiar pra atrapalhar
tudo." Ouvi essa frase de uma aluna de uma escola pública do Maranhão. Ela
sintetiza dois pontos muito relevantes no contexto pandêmico sobre os quais
pouco, ou nada, foi falado: a importância do núcleo familiar e de saber
estudar.
Pela primeira vez, a sala de aula foi substituída
integralmente por algum cômodo da casa e isso ressignificou a relevância e a
influência dos membros do núcleo familiar na vida escolar dos estudantes. Uma
aluna me disse recentemente que recebe o apoio incondicional dos pais para que
haja silêncio e lugar adequado para estudar em casa, apesar de nenhum deles ter
sequer concluído o ensino médio. Segundo ela, eles sempre foram trabalhadores
braçais – o pai já cortou cana e a mãe é faxineira – e justamente por isso
sonham com um futuro com mais possibilidades para a filha. O apoio deles deu
resultado: ela foi aprovada na Unicamp.
Já outros estudantes escutaram falas do tipo:
"Vai na padaria para mim", "Vem lavar a calçada" e
"Não ajuda em nada, só estuda" no momento em que, em dias normais,
deveriam estar dentro de uma sala de aula. Um me contou que sua mãe diz que é
importante estudar, mas é a primeira a não fazer silêncio quando ele pede.
Nesses casos, o apoio em potencial que os pais poderiam oferecer aos filhos é
limitado pela falta de informação e de proximidade deles com o universo dos
estudos, tornando muito difícil entenderem que tipo de ambiente é necessário para
manter a concentração, quanto tempo leva para entender cada assunto e que
também existe o cansaço mental.
Há algumas realidades, infelizmente não poucas, em que
os pais não podem ou não conseguem apoiar os filhos. Muitos estudantes precisam
assumir um papel de protagonismo no sustento financeiro da família. Às vezes,
os pais até tentam poupar os filhos dessa preocupação, mas estes logo percebem
a frustração dos genitores por não saberem como pagarão contas tão básicas,
como água ou luz. A crise econômica afeta diretamente as famílias e,
consequentemente, os estudantes. Como se concentrar nos estudos quando se ouve
os pais tentando pensar em uma forma de pagar as contas? Como continuar
trilhando um caminho de investimento no longo prazo quando a incerteza de
sobrevivência é atual?
De forma geral, noto claramente que, para os alunos
que não têm a oportunidade e o privilégio de encontrar apoio no núcleo
familiar, todos os desafios são amplificados e se concentrar para estudar
parece impossível. Já os que encontram esse apoio têm todos esses desafios
atenuados ou, até mesmo, extinguidos. Ou seja: o núcleo familiar pode ser um
catalisador ou extintor dos obstáculos existentes.
Somada ao contexto familiar, o saber estudar é outra
variável muito relevante. O modelo de ensino atual, infelizmente, é
ultrapassado e não possibilita o protagonismo do estudante. Muitos, vão à
escola sem entender como a instituição pode contribuir para o seu
desenvolvimento pessoal e profissional e não conseguem enxergar a relação dos
conteúdos ensinados com o mundo que conhecem. A metodologia atual, muitas
vezes, constrói um aluno passivo no processo de aprendizagem.
"A gente fica tão acostumado a só copiar e ouvir
que na hora de algo prático ninguém sabia muito o que fazer." É assim que
uma aluna me descreveu sua vida escolar até antes da pandemia. No modelo
online, todos se encontram dentro de suas casas e sem a segurança da zona de
conforto que a sala de aula oferecia. No entanto, ele requer um certo
protagonismo que simplesmente nunca foi desenvolvido neles. O que fazer? O que
estudar? Como estudar? Como se organizar? Como pesquisar um assunto?
Simplesmente não fazem ideia. Nunca foram ensinados
sobre isso. São tomados por um sentimento de impotência, incapacidade e
solidão, como bem explicado por outra estudante: "Eu levei uns dois anos
para aprender a estudar sozinha. Ninguém veio e me deu uma luz, sozinha fui
tentando. E tô tentando até hoje."
Por
Vinícius de Andrade, na Deutsche Welle
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